BIOGRAFIA
José Augusto Neves Cardoso Pires
nasceu às quatro da tarde do dia 2 de outubro de 1925 na aldeia
de São João do Peso, concelho de Vila de Rei. Os pais,
residentes em Lisboa, na Calçada de Arroios, eram ambos oriundos
da Beira Baixa e resolveram que o filho nasceria ali. O pai,
José António Neves, oficial da Marinha, onde se alistara ainda
antes da implantação da República, era de origens bastante
humildes e enviuvara cedo da primeira mulher. A mãe, Maria Sofia
Cardoso Pires, era natural de Cardigos, nascida numa família de
pequenos proprietários rurais.
A infância do pequeno José foi passada
no 1º andar do nº 7 da rua Carlos José Barreiros, em Arroios,
para onde a família entretanto se mudara. Em 1932, com seis anos
de idade, e já após o nascimento dos irmãos Maria de Lurdes, em
1927, e António Nuno, em 1931, entrou para a escola primária nº
14, no Largo do Leão, onde teve como professora Leonor de Jesus
Coelho. Entretanto, o pai já fora promovido a tenente e,
naqueles anos, as condições económicas da família foram
melhorando paulatinamente.
As brincadeiras na rua com outros
miúdos da sua idade, as idas ao cinema para ver fitas de
cowboys, cujas histórias depois eram recriadas para os amigos, e
os passeios pelo Chiado aos domingos, de mão dada com o pai,
marcaram aquele tempo. A infância de José foi marcada pela
religiosidade da mãe, uma mulher muito devota que até ao fim da
vida permaneceu uma provinciana deslocada na cidade, o que cedo
criou no filho mais velho o desejo de transpor os limites da
vida pequeno-burguesa que os pais tinham idealizado para a
descendência. A mãe de José levava-o à igreja de São Jorge de
Arroios – “uma das mais pobres igrejas de Lisboa, embora cheia
de claridade e simpática”, no dizer de um cronista – que ficava
quase à porta de casa. Quando ia para a escola, era acompanhado
pela criada, Maria, uma rapariga que a família mandara vir lá da
terra para servir em casa, o que, juntamente com a obrigação
decretada pela mãe de usar caneleiras, eram causa de grande
humilhação para o pequeno José.
A 1 de Agosto de 1936, José Cardoso
Pires fez exame e foi admitido no Liceu Camões. Esse foi um ano
em que o aparelho de repressão e doutrinação do Estado Novo
conheceu um grande impulso com a abertura do campo do Tarrafal e
a criação da Mocidade Portuguesa e da Legião Portuguesa. Anos
mais tarde, o escritor recordaria o ambiente do liceu como o de
um espaço concentracionário, mas aí talvez fosse mais o seu lado
rebelde e a sua ânsia de liberdade a falarem.
Cardoso Pires nunca foi um aluno
excecional. Os seus companheiros de turma, que haveriam de ter
carreiras ligadas às letras, Luiz Pacheco e Jaime Salazar
Sampaio, brilhavam nas notas. Ele destacava-se, sim, nas
ocasionais brigas e nos jogos de futebol. Baixote, o que o
atormentava, compensava esse handicap com uma agilidade de
pugilista e um feitio brigão que manteve ao longo da vida. Aos
poucos, o gosto pela escrita começou a concorrer com outros
interesses. Estreou-se n’O
Pinguim, um jornal escolar dirigido por Luiz Pacheco, com o
conto Aventuras do Mosquito Zig-Zague. Datam dessa altura as
suas primeiras paixões literárias, como o escritor colombiano
Vargas Vila e, acima de todos, o escritor francês Pierre Loti,
pseudónimo de Julien Viaud. Sobre este haveria de escrever um
pequeno ensaio para A
Cidade dos Rapazes, publicado a 23 de fevereiro de 1943, e
intitulado “Loti, O Sonhador”. Neste jornal dirigido à juventude
publicou no nº 6 o conto “A Palmeira do Areal”, assinado com
Cardoso Pires.
Concluídos os estudos liceais, tentou
enveredar pelo jornalismo. Recorreu para tal a Joaquim Manso,
diretor do Diário de Lisboa, e irmão da primeira mulher do pai de Cardoso
Pires. A tentativa não correu bem. Joaquim Manso destruiu a
visão idealista que o jovem tinha do jornalismo ao dizer-lhe que
era um mundo em que imperavam as trocas de favores. A desilusão
empurrou-o para o curso de Matemáticas Superiores, na Faculdade
de Ciências de Lisboa, contrariando também a vontade do pai de
que se alistasse na Marinha. Mas se havia fascínio por aquela
área não foi suficiente para prosseguir os estudos e Cardoso
Pires acabou por desistir do curso ainda antes de completar o
segundo ano.
Em 1945, com dezanove anos, iniciou,
com Luiz Pacheco, uma colaboração com o jornal
Globo, onde faziam
recensões literárias. A 15 de março desse ano publicou o conto
“Alvorecer”, o primeiro onde já se notam alguns dos traços do
futuro escritor. A 1 de junho saiu o primeiro nº da página
universitária Novos Horizontes, um suplemento juvenil daquele
jornal, dirigido por Luiz Pacheco e pelo próprio Cardoso Pires.
Nesse mesmo mês, saíram, na revista
Afinidades, do
Instituto Francês, as suas primeiras críticas literárias
assinadas.
Contudo, Cardoso Pires devia intuir
que esta vida de literato não era fato que lhe assentasse bem.
Para o que queria escrever, e
O Dia Cinzento, livro
de contos de Mário Dionísio publicado um ano antes, terá sido um
dos modelos, faltava-lhe experiência. A carreira do pai na
Marinha, a possibilidade de aventura e o facto de, naquele ano,
ter sido criado o posto de praticante de piloto sem curso, que
dispensava qualquer formação prévia, levaram-no a alistar-se na
Marinha Mercante. Tal como Pierre Loti, Pires queria entregar-se
à “espinhosa missão de sulcar oceanos” e dessa forma “conhecer o
mundo que ele ardentemente desejava percorrer e observar.”
A 28 de julho de 1945, o cargueiro
Sofala, o maior da frota nacional, zarpou de Lisboa tendo como
destino final Timor com um jovem Cardoso Pires a bordo e essa
viagem, por variados motivos, haveria de ser decisiva para o seu
futuro. O comandante do navio era um experiente lobo do mar,
Gustavo Peixe, originário de Ílhavo, “um autêntico personagem de
Moby Dick”, como dele diria anos mais tarde o próprio Cardoso
Pires. Sem nada saber de navegação, o jovem praticante
acompanhava o segundo copiloto na ponte do comando e aproveitava
todos os momentos livres, que eram muitos, para pôr a leitura em
dia, sobretudo autores norte-americanos, como Erskine Caldwell e
Damon Runyon, que lia na língua original.
Tanto quanto com o que lia, Cardoso
Pires ficou impressionado com o que lhe foi dado ver e que era
muito distante da sua experiência de rapaz lisboeta. No Lobito,
onde o Sofala atracou em finais de agosto, testemunhou “o ritual
mais repugnante que alguma vez me foi dado conhecer: a
desfloração de garotas negras por marinheiros de passagem.”
Poucas semanas depois, em Durban, na
África do Sul, viu a morte pela primeira vez perto de si, como
contou mais tarde numa entrevista radiofónica: “Foi durante a
guerra, em Durban, um americano e um preto inglês ou
sul-africano envolveram-se numa rixa e eu meti-me no meio
daquilo tudo e foi a única vez na minha vida que vi uma pistola
apontada para mim – felizmente, só depois é que me apercebi de
que aquilo era uma pistola.” Mas as experiências invulgares não
se ficaram por aí. Já em Lourenço Marques testemunhou em
primeira mão o funcionamento do sistema colonial: “outra
demonstração da moral colonialista. Esta agora pública, sem
disfarces. Sentado na esplanada do café Scala, no sítio mais
central da cidade, vi, uma tarde, filas de presos a asfaltarem o
pavimento da avenida, ligados por correntes uns aos outros, como
escravos.” Foi aí, em Moçambique, que um marinheiro
cabo-verdiano, embarcado num navio norte-americano, o desafiou a
juntar-se a ele. Cardoso Pires não resistiu ao canto de sereia
da aventura e resolveu desertar. Porém, não teve muita sorte.
Quando se preparava para se juntar à tripulação do “Myomy
Baldwin” foi apanhado. A intervenção do pai, que conhecia o
diretor do porto de Lourenço Marques, foi providencial para
garantir o regresso de Cardoso Pires a Lisboa em condições
dignas. Veio então no paquete Niassa, onde conheceu o mágico
Ling-Choung, o nome de palco do artista Otávio de Matos, que
durante a viagem lhe arranjava cigarros americanos. Chegou a
Lisboa a 29 de outubro de 1945 não sem que antes se tivesse
envolvido numa zaragata a bordo, que culminou numa agressão a um
dos tripulantes. Esse comportamento haveria de lhe valer a
expulsão compulsiva da Marinha por suspeita de indisciplina.
Não que o fim de uma carreira na
Marinha o preocupasse muito. A viver sozinho, Cardoso Pires
arranjou uma série de trabalhos alimentares. Ao mesmo tempo, e
mais importante, mantinha colaborações com a imprensa e escrevia
os primeiros contos “a sério”. Em dezembro de 1945, publicou na
revista Afinidades um
ensaio muito interessante com o título “A Experiência na Criação
Literária” em que, no fundo, fazia uma síntese do seu pensamento
sobre a literatura enquanto leitor, crítico e futuro escritor. O
conto “A Esta Hora”, publicado no nº 17 da
Afinidades, em abril
de 1946, foi a materialização literária das ideias que vinha
desenvolvendo. Ainda mais importante foi a participação numa
antologia organizada pelos antigos colegas de liceu, Salazar
Sampaio e Luiz Pacheco, com o conto “Semana Inglesa”, inspirado
na prosa de Runyon e na experiência de Cardoso Pires como
apontador de cais, um dos vários empregos que foi tendo naquela
altura. Bloco, assim
se intitulava a antologia, foi apreendida pela PIDE ainda na
tipografia e não chegou a ser comercializada, num primeiro
embate, ainda que indireto, do escritor com o regime.
A 13 de agosto de 1947, após ter
estado internado no Hospital da Marinha semanas antes, José
António Neves morreu em casa. Tinha 62 anos. Poucos dias depois,
Cardoso Pires dava entrada na Escola Prática de Artilharia de
Vendas Novas para cumprir o serviço militar. Na altura já tinha
finalizado uma primeira versão de um livro de contos que
entregara a Mário Dionísio com o pedido de que este fizesse uma
apreciação crítica da obra com o título provisório de
Grau Zero. Dionísio
ficou impressionado positivamente com o livro (“A grande
qualidade de “Grau zero”, dentro do campo propriamente
literário, é aproveitar a linguagem criada pelos
norte-americanos, principalmente, sem cair como alguns deles (e
seus sequazes cá do jardim à beira mar plantado) no esquecimento
da maneira social e humana”) e prometeu que o iria ajudar a
encontrar editor.
Contudo, ainda teriam de passar dois
anos até que o livro de estreia de Cardoso Pires visse a luz do
dia, já com o título Os
Caminheiros e outros contos e com a chancela do Centro
Bibliográfico, que emprestava ao livro uma certa dignidade
editorial mas que era, na verdade, uma edição de autor para a
qual contribuíram os amigos de Cardoso Pires. O livro conheceu
uma receção entusiástica por parte da crítica. João Gaspar
Simões e o próprio Mário Dionísio não lhe pouparam elogios e
Cardoso Pires fixou-se de imediato no meio literário como um
nome a ter em conta.
Tendo passado por vários trabalhos,
aproveitava todo o tempo livre para escrever, sobretudo contos.
Ao mesmo tempo, começava a envolver-se em movimentos políticos
ligados à oposição. Apesar disso, em 1949, a PIDE, após receber
uma carta a alertar para as atividades suspeitas do jovem
“Neves”, vigiara-o e garantia que politicamente nada havia em
seu desabono. O certo é que se aproximou de figuras como Maria
Lamas, Castro Soromenho e Lyon de Castro, intelectuais com
ligações ao Partido Comunista ou à oposição ao regime. Nessa
altura, fundou com Victor Palla a coleção de bolso Os Livros das
Três Abelhas, na editorial Gleba, e começou a trabalhar como
secretário da redação na revista Eva, dirigida ao público
feminino, e onde, nos anos seguintes, publicou alguns contos
como “Uma Simples Flor nos Teus Cabelos Claros” e “Pequeno
Romance de D. Augusta Mendes dos Santos”, além de reportagens e
crónicas.
No verão de 1952, saiu, na coleção que
fundara com Victor Palla, o seu muito aguardado segundo livro,
Histórias de Amor,
rapidamente apreendido pela PIDE por indicação dos serviços da
censura. Do relatório constava o seguinte: “Imoral. Contos de
misérias sociais e em que o aspecto sexual se revela
indecorosamente. De proibir.” Para Cardoso Pires, foi um
violento golpe nas suas aspirações literárias pois percebeu que
o livro em que tinha trabalhado durante três anos iria ser
votado ao esquecimento e nem algumas críticas positivas que
surgiram na imprensa e opiniões favoráveis que lhe chegaram
através de carta podiam atenuar a sensação de esforço inútil. A
26 de outubro, inconformado, Cardoso Pires enviou uma carta aos
serviços da censura, mas a decisão de apreensão não foi
alterada. A proibição do livro teve uma única vantagem: o
infeliz prefácio com que Cardoso Pires decidiu abrir o livro (e
muito criticado por todos os que o leram por causa do seu estilo
gongórico e hermético) também haveria de cair no esquecimento.
Este revés aumentou as dúvidas que
Cardoso Pires tinha acerca do seu futuro enquanto escritor.
Dúvidas que expressava, por exemplo, em cartas enviadas a Maria
Lamas. Mas a vocação era mais forte que as inseguranças e
começou a trabalhar num novo projeto, este de uma narrativa mais
longa, que tinha o título de “As Pegadas e o Vento”, e em que se
propunha analisar os sonhos e fracassos da geração de 45. Isto
sem descurar o seu ativismo cívico. A 12 de fevereiro de 1953,
era o mais jovem dos intelectuais num jantar de homenagem ao
escritor brasileiro Jorge Amado, um “conhecido comunista”, no
aeroporto de Lisboa, onde este fizera escala a caminho do Rio de
Janeiro. Entre nomes tão destacados como Ferreira de Castro,
Alves Redol, Maria Lamas e Mário Dionísio, lá estava o jovem
Cardoso Pires.
Em março lançou-se noutro projeto,
este inspirado na sua experiência como oficial miliciano. O
primeiro título era “Hóspede da Mais Negra Providência”. Menos
de um mês depois, o irmão, António Nuno, soldado-cadete na Base
Aérea de Sintra e membro da Mocidade Portuguesa, morreu num
acidente de aviação, com o avião que pilotava a despenhar-se e
incendiar-se perto de Caneças. O episódio trágico, e que de
certa forma ilustrava as relações diplomático-militares do
regime com os Estados Unidos, reforçou ainda mais a intenção de
Cardoso Pires de escrever o livro, que seria assim uma espécie
de denúncia. No entanto, após a apreensão de
Histórias de Amor, todos os cuidados eram poucos.
No final desse ano, um novo episódio
no aeroporto de Lisboa dava conta dos esforços dos intelectuais
ligados à oposição e a perseguição e vigilância implacáveis que
a polícia política lhes movia. No dia 20 de dezembro, Maria
Lamas, de regresso de Paris e aguardada por uma multidão onde se
incluíam algumas das figuras de grande prestígio do meio
literário, foi presa. Houve uma carga policial e alguns dos
escritores presentes acabaram também por ser presos. Outros,
como Castro Soromenho e Cardoso Pires, conseguiram escapar.
Entretanto, Cardoso Pires
desdobrava-se em várias atividades, como a de tradutor, sendo
uma das suas traduções mais relevantes a da peça
A Morte de um Caixeiro
Viajante, do dramaturgo norte-americano Arthur Miller. Do
Brasil, chegava um primeiro sinal de reconhecimento no exterior,
com a inclusão do conto “Estrada 43” no volume
Maravilhas do Conto
Português, da editora Cultrix.
Em 1954, Cardoso Pires aventurou-se no
mercado editorial, uma vez mais em colaboração com Victor Palla.
A ideia era criar uma editora especializada em edições de luxo
em fascículos, um mercado para o qual, à época, as perspetivas
eram bastante animadoras. Nascia assim a Fólio – Edições
Artísticas. Mas, a nível pessoal, esse ano ainda foi mais
importante porque foi quando Cardoso Pires conheceu e se casou
com Maria Edite Pereira. Edite era irmã do escultor Vasco da
Conceição, militante comunista, que naquela altura partilhava o
atelier com o pintor Júlio Pomar, amigo de juventude de Cardoso
Pires. Foi nesse atelier que se conheceram em maio. A 8 de julho,
após um namoro-relâmpago, casaram-se na conservatória de
Arroios.
A braços com a Fólio e ainda a
colaborar com a revista
Eva, Cardoso Pires não tinha muito tempo livre para a
escrita. As possibilidades económicas da edição da versão do
Dom Quixote de
Aquilino Ribeiro, com ilustrações de Lima de Freitas, faziam-no
ponderar deixar de vez a revista
Eva. Ainda assim,
entre tantas solicitações, tinha conseguido finalizar uma
primeira versão de O Hóspede de Job. Porém, receava que a sensibilidade do tema lhe
trouxesse mais problemas com a censura e começou a pensar numa
maneira de contornar eventuais obstáculos. A ideia era simples,
embora a execução não fosse fácil: conseguir publicar o livro no
estrangeiro antes de ser editado em Portugal, o que impediria a
censura de agir quando o livro aparecesse por cá. A primeira
hipótese foi publicá-lo em França, tendo recorrido para o efeito
à intervenção de Castro Soromenho, na altura a viver em Paris.
Castro Soromenho, Maria Lamas e Mário Pinto de Andrade, a quem
Cardoso Pires tinha dado a ler o manuscrito, gostaram do livro,
mas mesmo assim não era garantido que uma editora francesa
pegasse num primeiro romance de um autor português praticamente
desconhecido no estrangeiro. Por essa razão, enquanto ia
trabalhando no romance, o escritor desenvolvia
As Pegadas e o Vento, já com um novo título,
O Anjo Ancorado, e preparava aquela que seria a sua estreia na
dramaturgia, uma peça sobre a revolta da Maria da Fonte, no
século XIX.
Em setembro de 1956, nasceu a primeira
filha de José e de Edite, Ana. Na altura viviam no Bairro das
Estacas, num apartamento na rua Bulhão Pato. Nessa época,
juntamente com Carlos de Oliveira, coordenou uma grande
antologia do conto universal encomendada pela livraria
Atlântida, de Coimbra e, pouco meses depois, iniciou o projeto
de publicação de um Fabulário de Portugal e do Brasil na Fólio.
Com a publicação de O Hóspede de Job num impasse, assinou contrato com a Ulisseia, de
Figueiredo Magalhães, pelo qual recebeu um adiantamento de doze
contos, que previa a edição do romance para breve, apesar das
dúvidas quanto aos problemas que poderia ter com a censura e sem
que estivesse prevista qualquer edição no estrangeiro. A relação
com Figueiredo Magalhães estreitou-se, Cardoso Pires começou a
colaborar de forma regular com a editora e, em março de 1958,
assinou o prefácio do livro de Norman Mailer,
Os Nus e os Mortos.
Em julho desse ano foi um dos
representantes portugueses no Congresso Mundial para a Paz, que
decorreu em Estocolmo. Não regressou logo a Portugal. Figueiredo
Magalhães tinha em mente a criação de um semanário que se
destacaria pelos artigos de fundo e por grandes entrevistas com
figuras da política internacional. Para os três primeiros
números tinha decidido que Alexandre O’Neill entrevistaria o
Presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, Castro Soromenho
entrevistaria o líder jugoslavo Tito e José Cardoso Pires iria à
Polónia entrevistar Wladislaw Gomulka, o líder da Polónia
comunista. Por isso, no final de julho, o escritor seguiu para
Berlim, à espera de indicações de Figueiredo Magalhães. Este
distraiu-se e, num telegrama, disse-lhe que tinham conseguido a
entrevista com Wladyslaw Gomulka, o líder da Polónia comunista.
Foi o suficiente para a PIDE entrar em ação. O projeto do
jornal, já aprovado pela censura e no qual o editor já tinha
investido 200 contos, foi imediatamente cancelado.
Em outubro, seis anos depois de
Histórias de Amor, Cardoso Pires voltava a publicar um livro, já na
Ulisseia. Não era O
Hóspede de Job, ainda na gaveta à espera de ventos mais
favoráveis, mas O Anjo Ancorado, o livro em que pretendia dissecar os sonhos e as
desilusões da geração que, em 1945, no final da guerra,
acreditou que o regime salazarista estaria à beira do fim. Um
mês depois, nasceu Rita Cardoso Pires, a segunda filha do casal.
O Anjo Ancorado
recebeu elogios da
crítica, mas também alguns reparos. João Gaspar Simões escreveu
no “Diário de Notícias” que “dentro da sua geração, não vejo
quem se lhe avantaje na arte segura, tensa, rápida, sóbria,
mágica, direi, mesmo, de contar uma história, de evocar um
episódio, de pôr de pé uma fábula” e que
O Anjo Ancorado era já
“uma obra excepcional: uma bela, impetuosa e sadia página da
nossa novelística contemporânea.” No entanto, não gostava do
recurso às notas de rodapé e achava que José Cardoso Pires ainda
tinha de publicar a obra que o consagrasse definitivamente. De
qualquer maneira, nesta novela, Cardoso Pires libertava-se em
definitivo da influência dos escritores norte-americanos que
tinham marcado os seus primeiros livros, sobretudo os
Caminheiros, e procurava retratar um mundo, o da pequena burguesia,
que ainda não tinha o seu espaço, e uma linguagem literária
correspondente, na literatura portuguesa. Na opinião de alguns
leitores, isso resultava num retrato desequilibrado entre
personagens da cidade e personagens da aldeia, como lhe
mencionou o advogado Fernando Barros numa carta pessoal: “Formal
e tecnicamente, acho uma verdadeira obra-prima. […] Quanto ao
pessoal humano, vinte valores para a malta de São Romão, que
também está toda aqui diante de mim […] os outros dois, se os
vir na rua, não tenho a certeza de os reconhecer. Bem sei que a
coisa é mais política, brumosa, intelectualizada.”
Cardoso Pires estava num processo de
viragem do seu projeto literário, indo beber influências a
autores portugueses dos séculos XVII e XVIII, como D. Luís da
Cunha e Cavaleiro de Oliveira, espanhóis, como Pio Baroja, e
franceses, como Roger Vailland. Em 1959, a Ulisseia publicou
Drôle de Jeu, de
Vailland, numa tradução de Hélder Macedo. O título em português,
Cabra Cega, foi uma
sugestão de Cardoso Pires que também assinou o prefácio. Nesse
texto estavam as linhas mestras do que viria a ser o ensaio
A Cartilha do Marialva.
A 11 de Março de 1959 deu-se o chamado
Golpe da Sé, uma tentativa de golpe militar para derrubar o
regime e que foi rapidamente anulada, com a maioria dos
intervenientes diretos a serem presos.
A Fólio continuava, apesar de ser uma
fonte de preocupações e dívidas. Cardoso Pires tinha desafiado
Mário Pinto de Andrade para fazer um Fabulário Africano e, ao
mesmo tempo, sondava o intelectual angolano sobre a
possibilidade de publicar
O Hóspede de Job lá fora. Após o cancelamento do projeto do
semanário, Figueiredo Magalhães congeminou a ideia de uma
publicação não periódica que lhe permitiria, de uma assentada,
escapar ao exame da censura e aproveitar os recursos. Juntou uma
equipa de luxo, liderada por Cardoso Pires e com nomes fortes
como os de Luís Sttau Monteiro, Alexandre O’Neill e os jovens
José Cutileiro e Vasco Pulido Valente, além do craque do design
Sebastião Rodrigues, e assim nasceu o
Almanaque, uma revista
única no panorama da edição portuguesa e, à época, completamente
revolucionária, cujo primeiro número saiu em outubro de 1959. A
revista era financiada pelo Grupo de Publicações Periódicas, que
pertencia aos donos da sociedade Abel Pereira da Fonseca, mas
quem dirigia o projeto era Figueiredo Magalhães, com Cardoso
Pires responsável pelos conteúdos. O ambiente no escritório da
rua da Madalena era muito mais descontraído do que o de uma
redação normal. Não havia horários rígidos, cada colaborador
trabalhava mais ou menos em autogestão, mas nenhum falhava os
prazos. Com uma tiragem de 15 mil exemplares e um preço de 15
escudos o Almanaque
era mais falado do que vendido e, também graças aos generosos
salários pagos pelo patrão, rapidamente começou a dar prejuízo.
Em novembro de 1959, dois dos
envolvidos no Golpe da Sé, o capitão Almeida Santos e o furriel
Jean-Jacques Valente, auxiliados por um cabo da GNR, fugiram do
Forte de Elvas, onde se encontravam detidos. A 31 de março de
1960, foi encontrado na praia do Guincho um cadáver que, poucos
dias depois, se confirmou ser o do capitão Almeida Santos. A
notícia fez disparar os alarmes junto daqueles que, de forma
mais ou menos direta, tinham estado ligados à conspiração. O
escritor Castro Soromenho, que tinha servido de agente de
ligação, pensou que o assassínio teria sido obra da PIDE e, com
receio de represálias, fugiu para Paris. Quase na mesma altura,
Cardoso Pires foi avisado que o seu nome teria sido mencionado
num dos interrogatórios da PIDE e também decidiu sair do país.
Foi para Inglaterra e depois passou pela Suíça, até se fixar em
Paris, em casa do escritor Jorge Reis, mas não permaneceu aí
muito tempo. A 15 de junho de 1960, partiu num voo da Lufthansa
com destino ao Rio de Janeiro. As notícias que lhe chegavam de
Portugal não eram muito esclarecedoras. Não tinha a certeza que
fosse seguro regressar, mas também não queria que circulasse a
versão que tinha saído do país por razões políticas porque isso,
sim, inviabilizaria o regresso.
No Brasil estabeleceu contacto com
alguns conhecidos, como o escritor e militante comunista Vítor
Ramos, que na altura vivia em São Paulo. Na altura, ponderou
seriamente instalar-se ali e pensou em vários projetos
editoriais e colaborações com a imprensa que lhe permitiriam
mais tarde mandar vir de Portugal a mulher e as filhas. Se,
entretanto, as coisas se desanuviassem em Portugal, tinha uma
boa justificação para a estadia no Brasil porque estaria em
representação da Ulisseia, como diretor editorial. O próprio
Figueiredo Magalhães foi ao Brasil nessa altura para estudar a
possibilidade de criar uma sucursal brasileira da editora e
estabelecer parcerias com editores e distribuidores locais
interessados no mercado português.
Em agosto de 1960, Cardoso Pires
participou, juntamente com Jorge de Sena, Lurdes Belchior e
Adolfo Casais Monteiro, no I Congresso da Crítica que decorreu
no Recife. No dia 10, sem que nada o fizesse esperar, embarcou
em Pernambuco num voo para Lisboa. Deve ter recebido notícias
encorajadoras, apesar de ter tomado algumas cautelas para o caso
de ser preso quando aterrasse na Portela, o que não sucedeu.
Trazendo consigo novas ideias dos seus contactos e colaborações
com publicações brasileiras, caso da revista
Senhor, retomou de
imediato a sua atividade como diretor do
Almanaque e, antes do
final do ano, mudou-se com a família para uma quinta em Belas.
Editorialmente, o final do ano foi
frutuoso, pois Cardoso Pires publicou
A Cartilha do Marialva,
na Ulisseia, e, após uma longa gestação, a peça sobre a Maria da
Fonte, a que deu o título de
O Render dos Heróis,
esta na Gleba, de Lyon de Castro. Apesar disso, o panorama não
era animador. É verdade que a
Cartilha foi bem
recebida, mas O Render dos
Heróis, não obstante as vendas razoáveis, levou pancada da
crítica. No Almanaque
as coisas também não corriam bem. A relação com Figueiredo
Magalhães deteriorara-se, com a publicação sempre adiada de O
Hóspede de Job e a
falta de dinheiro a complicar tudo ainda mais. Em maio de 1961,
saiu o último número do
Almanaque. A juntar a isto, os prejuízos com a Fólio eram
cada vez maiores. A casa de Belas era também outra preocupação,
não só por causa do peso nas finanças familiares, mas também
pela distância de Lisboa, onde Edite trabalhava. A única
vantagem é que, aos fins-de-semana, era o sítio ideal para
encontros coletivos, onde, além da família mais próxima, se
juntavam amigos de Cardoso Pires, como Alexandre O’Neill ou
Sttau Monteiro.
Por diversas razões, Cardoso Pires não
conseguia livrar-se destes problemas, embora no aspeto
estritamente editorial não lhe faltassem opções. Quer a Arcádia,
quer a Europa-América, tinham interesse em publicar os seus
livros. A questão era mais a de saber o que é que iria escrever.
Tinha um projeto de um romance, com o título
O Corvo Branco, que
abandonou quando a pessoa em que era inspirado o protagonista do
romance foi assassinada, num desfecho idêntico ao que o escritor
lhe reservara na ficção. Mas a realidade insistia em
intrometer-se nos projetos ficcionais de Cardoso Pires. No
outono de 1961, chegou-lhe às mãos um documento assinado pelo
médico Jean-Jacques Valente, que na época cumpria pena pelo
homicídio do capitão Almeida Santos. É que a morte deste não
tinha sido responsabilidade da PIDE e o crime tinha mesmo
contornos de natureza passional. O entusiasmo de Cardoso Pires
arrefeceu assim que percebeu que uma história sórdida a envolver
elementos que tinham estado ligados a uma tentativa de derrubar
o regime poderia ser usada por este para desacreditar as ténues
forças que se lhe opunham. Nem se pode dizer que o romance que
viria a ser Balada da
Praia dos Cães foi para a gaveta, mas diretamente para o
congelador.
Para fazer face às despesas da Fólio e
equilibrar o orçamento familiar, o ordenado de Edite não era
suficiente, o que obrigava Cardoso Pires a desmultiplicar-se em
atividades, como a da publicidade, de onde vinha uma parte dos
seus rendimentos e de muitos outros escritores da época, como
Alves Redol. A ideia de se dedicar em exclusivo à escrita
continuava a ser uma miragem.
Em março de 1962, Cardoso Pires,
juntamente com um grupo de escritores portugueses, partiu para
Florença, para participar no congresso da COMES (Communità
Europea degli Scrittori). Era um grupo heterogéneo, onde
conviviam escritores de diferentes sensibilidades políticas. Não
sendo uma organização política, a COMES pretendia estabelecer
pontes entre o Ocidente e o Leste da Europa e, em simultâneo,
ser um espaço de liberdade para os escritores de países em que
vigoravam ditaduras, não só de direita, como Portugal e Espanha,
como de esquerda, caso da União Soviética e países-satélite. No
entanto, alguns dos membros da comitiva portuguesa queriam que a
organização tivesse um cariz abertamente político e servisse de
escudo para as críticas ao regime. Agustina Bessa-Luís e Sophia
de Mello Breyner, que participaram no congresso, ficaram muito
surpreendidas com o seu carácter quase “exclusivamente
político”. Menos surpreendidos terão ficado Urbano Tavares
Rodrigues, que chefiava a delegação, Cardoso Pires e Alexandre
O’Neill. Estes últimos aproveitaram para desertar do grupo assim
que ficaram libertos de obrigações e tratar da vidinha. Partiram
para Roma, onde estabeleceram contactos com editores locais e
foi através deles que Cardoso Pires garantiu a publicação da
tradução italiana de O
Hóspede de Job, numa primeira edição mundial. Depois de
várias tentativas falhadas de publicar o livro em França e no
Brasil, a editora Lerici oferecia ao escritor português uma
proteção contra uma previsível investida da censura logo que o
romance fosse publicado em Portugal. A COMES não deve ter sido
alheia a este desfecho pois um dos seus objetivos era
precisamente o de viabilizar a publicação no exterior de autores
que eram particularmente visados pelas forças repressivas dos
respetivos regimes.
E, além do caso de
Histórias de Amor,
Cardoso Pires sabia bem que continuava sob mira da PIDE que, em
1963, tinha proibido o TEUC de levar à cena
O Render dos Heróis.
Em março, foi anunciada, uma vez mais, a publicação de
O Hóspede de Job,
desta vez na Arcádia. Anunciava-se também a edição italiana e um
livro de contos ou, mais propriamente, uma seleção de contos
revistos dos dois primeiros livros.
O Hóspede de Job e
Jogos de Azar, título do livro de contos, saíram no final de 1963.
Em carta enviada em março de 1964, Mário Dionísio dizia a
Cardoso Pires o seguinte: “considero “O Hóspede de Job” o seu
livro mais acabado, que ele se lê com um prazer crescente, que
sinto nele conseguidos alguns objectivos fundamentais que Você
certamente se propôs (integração numa tradição narrativa
portuguesa e popular, clima poético sem abandono da realidade
concreta, problemática de sentido universal bem enraizada num
caso concreto e particular, etc. etc.) e que bastaria este livro
para desmentir as tantas atoardas que continuam a visar o
realismo.”
Não foi o único com uma opinião
positiva acerca do livro. No final de abril,
O Hóspede de Job foi
distinguido com o mais importante prémio literário do país, o
Camilo Castelo Branco, atribuído pela Sociedade Portuguesa de
Escritores, a cuja direção Cardoso Pires tinha pertencido poucos
anos antes. A PIDE tinha proibido qualquer referência na
imprensa ao livro, mas, nas vésperas do anúncio do prémio,
cancelou a proibição. O prémio significava o reconhecimento da
obra e, com o valor de cinquenta contos, um precioso balão de
oxigénio financeiro para Cardoso Pires, continuamente acossado
pelos credores da Fólio. A 30 de maio daquele ano, o prémio
foi-lhe entregue num almoço de homenagem no Hotel Embaixador, em
Lisboa, que contou com intervenções do presidente do Grémio
Nacional dos Editores e Livreiros (o antepassado da APEL), do
escritor Ferreira de Castro, enquanto presidente da SPE, e do
professor Óscar Lopes, em representação do júri que atribuíra o
prémio.
O galardão teve a virtude de pôr o
foco sobre Cardoso Pires, que se desmultiplicou em entrevistas à
imprensa, onde falava dos seus hábitos de escrita, os autores
que o tinham influenciado, a música que ouvia, tudo isto
geralmente acompanhado de um whiskey, a sua imagem de marca nas
entrevistas. O prémio certamente terá ajudado a despertar o
interesse pela obra de Cardoso Pires no exterior. Em setembro de
1964, numa altura em que, segundo o escritor, o dinheiro do
prémio já estava nas mãos dos credores, a Gallimard adquiriu os
direitos para a publicação do livro em França. Muitos anos mais
tarde, Cardoso Pires diria que o prémio tinha sido crucial para
a publicação em Itália, mas já vimos que, nesse caso, os
contornos foram outros.
No início de janeiro de 1965, o Teatro
Moderno de Lisboa, uma jovem companhia apoiada pela fundação
Gulbenkian, levou à cena a peça
O Render dos Heróis,
com encenação de Fernando Gusmão, música de Carlos Paredes e a
presença no elenco de figuras como Carmen Dolores, Ruy de
Carvalho e Rui Mendes. A peça, que esteve no palco do cinema
Império, foi um enorme sucesso de público, mesmo com as
restrições da censura, que só permitia a publicidade à peça e
não a publicação de quaisquer outros conteúdos, como críticas ou
ensaios. O Render dos
Heróis viria a ser a última peça do Teatro Moderno de
Lisboa.
Em maio desse ano, a SPE, como
habitualmente, atribuiu os seus prémios. Cardoso Pires fazia
parte do júri do prémio de ensaio que foi para o livro de
Armando de Castro “A Evolução Económica de Portugal – séc. XII a
XV”. Mas foi o prémio Camilo Castelo Branco que veio agitar as
águas, não só do meio literário, mas do próprio regime. O júri,
constituído por Alexandre Pinheiro Torres, Fernanda Botelho,
Manuel da Fonseca, João Gaspar Simões e Augusto Abelaira
atribuiu o prémio a
Luuanda, obra de Luandino Vieira. Dos jurados, só Gaspar
Simões se tinha abstido, enquanto os restantes tinham votado em
Luuanda. Não demorou
muito até que a PIDE percebesse que Luandino Vieira era
pseudónimo de José Vieira Mateus da Graça, preso no Tarrafal por
terrorismo e subversão. Os jurados foram interrogados. Manuel da
Fonseca disse então que se tinha abstido, o que era falso.
Abelaira foi preso e, no dia 21 de maio, a sede da SPE foi
assaltada e destruída por membros da PIDE e da Legião
Portuguesa, ligados ao regime, e a sociedade foi extinta. Foi um
violento golpe para a oposição intelectual e conseguiu
fragmentar ainda mais um campo já de si estilhaçado.
Entretanto, em junho, saiu em França
de O Hóspede de Job,
com tradução de Jacques Fressard, que manteve uma longa amizade
com o escritor. O livro beneficiou da atenção da crítica por
razões literárias e também políticas. O “Le Populaire”, órgão do
Partido Socialista Francês, dedicou-lhe um artigo, onde
apresentava Cardoso Pires como um alvo frequente do regime e da
censura. Referia-se o fim do financiamento do Teatro Moderno
pela Gulbenkian e do silenciamento na imprensa em relação ao
nome do escritor. Era também mencionado o ardil que tinha
possibilitado a edição italiana de
O Hóspede de Job que, dessa forma, tornara praticamente inviável
qualquer hipótese de apreensão do livro.
Mais do que os problemas com a
censura, aquilo que angustiava Cardoso Pires era o livro
seguinte e a sua condição de escritor em part-time que não lhe
permitia dedicar-se em exclusivo aos livros. No início de 66, já
estava a trabalhar num novo romance com o título provisório de
O Delfim entre os Cães.
Nesse mesmo ano, foi publicada uma segunda edição revista d’A
Cartilha do Marialva. Nada disto era suficiente para animar
Cardoso Pires, desalentado com a desorganização da oposição ao
regime e preocupado com o que viria a ser o próximo romance.
Deixou crescer a barba, dizia-se que era dado a depressões,
afastara-se de grupos e de tertúlias, tinha um ar cansado.
Tinha, acima de tudo, como anotou José Gomes Ferreira no seu
diário, receio de aparecer com um livro fraco. Afinal, o sucesso
e o reconhecimento implicavam uma maior responsabilidade e
apesar das críticas favoráveis ao
Hóspede de Job, para muitos esse ainda não era o grande livro que o
talento de Cardoso Pires prometia.
Entretanto, o escritor mantinha
colaborações com a imprensa. Em 1967, no
Diário Popular,
publicou as crónicas “Os Lugares Comuns” e, um ano depois,
colaborou com o Jornal do
Fundão para criar, juntamente com Vítor Silva Tavares, o
suplemento cultural & etc. Nesse mesmo ano, ficou a cargo das
páginas literárias do
Diário de Lisboa, que revolucionou por completo. Mas, mais
importante do que tudo isso, em maio de 68, mês da revolta da
juventude em Paris, foi lançado
O Delfim, pela Moraes
Editores, de Alçada Baptista e Pedro Tamen. O lançamento do
livro decorreu no Teatro Villaret, de Raul Solnado, e foi um
verdadeiro happening que juntou figuras não só do meio literário, como
artístico, da imprensa e até da banca. Ruy de Carvalho leu
excertos do romance e, no final, serviu-se vinho tinto e pastéis
de bacalhau. Não só pelo impulso da campanha de promoção, mas
também por isso, o livro tornou-se o grande sucesso editorial
daquele ano.
As críticas foram, na sua grande
maioria, bastante positivas. Uma das mais detalhadas veio da
pena de Mário Dionísio, que a publicou no jornal
A Capital, a 3 de
julho de 1968, e onde enumerou aspetos de continuidade e de
novidade do romance no contexto da obra de Cardoso Pires:
libertação total das influências que tinham ameaçado asfixiar os
seus primeiros livros (“o ter-se libertado totalmente de certas
influências estranhas, nomeadamente americanas, que inicialmente
embaraçavam o encontro da sua voz autêntica”); a exploração das
construções meta-literárias, que já vinham das notas de rodapé a
O Anjo Ancorado (notas
que tanto irritaram Gaspar Simões), mas que aqui assumiam uma
dimensão completamente nova com a “simulação da realidade” nos
livros tão bem inventados que dir-se-iam verdadeiros; a filiação
definitiva numa tradição que vinha de Camilo, passava por
Aquilino e também alcançava contemporâneos como Carlos de
Oliveira; e os cortes no plano narrativo (“outra novidade há, e
decisiva, que consiste na substituição do estilo sobretudo
linear de narração pela adesão a modernos processos de corte,
retrocesso, saltos no tempo e no espaço (transição do capítulo
III para o IV) assimilados tão de dentro que, em muitos casos, o
leitor menos atento talvez não dê por eles.”)
Óscar Lopes afirmou que nenhum
ficcionista português contemporâneo escrevia melhor que Cardoso
Pires. Ainda mais hiperbólico, Alexandre Pinheiro Torres disse
que o livro talvez condensasse “tudo o que de positivo a nossa
ficção inventou desde que existe.” O próprio Mário Dionísio,
apesar de algumas cautelas, arriscou o veredicto após uma
segunda leitura: obra-prima. Para alguns, estes entusiasmos eram
fruto de alguma turvação do raciocínio ou do mais cristalino
amiguismo. Foi o caso de Serafim Ferreira que, no
Jornal de Notícias,
não criticou apenas os outros críticos, mas também lançou farpas
à máquina que promovera o “lançamento editorial inteligente, bem
comandado.” O Delfim ainda não era “o” romance e, para Serafim, nem se poderia
esperar que Cardoso Pires o viesse a escrever algum dia:
“Escritor fragmentado, que com dificuldade encadeia os capítulos
uns nos outros, Cardoso Pires não conseguiu, quanto a nós,
estruturar ainda um verdadeiro romance; existem páginas e
páginas onde apenas se vislumbra um discorrer desnecessário à
natural narração da história, enchem-se páginas e páginas com
descrições que não importam, que somente perturbam o fio
narrativo do livro, como se isso fosse mero propósito do autor.”
Não havia recurso possível para a sentença: Cardoso Pires estava
“longe de ser um “grande” escritor, mesmo à nossa escala
portuguesa.”
Serafim Ferreira não foi o único a
embirrar com as lateralizações “desnecessárias” do
Delfim. Gaspar Simões
já tinha desgostado das notas de rodapé do
Anjo por cortarem a magia da leitura de ficção, por atrapalharem a
naturalidade narrativa a que aludia o crítico do JN. Também
Fernando Namora, em carta datada de 4 de Julho de 1968 enviada a
Cardoso Pires, louvava a depuração, a segurança, o rigor e a
modernidade, mas apresentava uma objeção: “algumas vezes, senti
(como explicar?) que o ritmo era prejudicado por certas
especulações marginais, que, apesar de prenderem sempre pela sua
agudeza e interesse, nos conduzem a um confronto com o escritor
ágil de livros anteriores”.
Mas houve duas críticas em particular
que, por razões diferentes, entraram para a história. Em outubro
de 1968, no número 1476 da
Seara Nova, saiu uma recensão assinada por um crítico que
publicara o seu único romance havia mais de vinte anos,
trabalhava na Editora Estúdios Cor e fazia traduções. Naquela
altura, destacava-se em Lisboa pela boina à Che Guevara, a bolsa
à tiracolo e pela relação que mantinha com a escritora e
colunista Isabel da Nóbrega, ex-mulher do crítico João Gaspar
Simões. Embora tivesse estabelecido uma certa reputação como
crítico, o seu nome era absolutamente secundário no panorama
literário em Portugal. Talvez por isso, José Saramago – assim se
chamava o crítico – desferiu um violento ataque ao livro de
Cardoso Pires e à posição deste enquanto intelectual
comprometido, pondo em causa a sinceridade das suas propaladas
convicções.
No entanto, ainda mais contundente que
a crítica de Saramago foi a que Luiz Pacheco, amigo de Cardoso
Pires dos tempos do Camões, publicou na revista
Notícia, de Luanda, a
4 de Janeiro de 1969. Os dois, que se tinham iniciado quase ao
mesmo tempo nas lides literárias, tinham seguido caminhos muito
diferentes. Pacheco tornou-se paulatinamente no maldito oficial
enquanto Cardoso Pires, sempre profissional, ascendia ao cargo
oficioso de “integrado marginal”, como o próprio se definia.
Apesar disso, mantiveram algum contacto, geralmente quando
Pacheco precisava de dinheiro. Por todas estas razões, Cardoso
Pires terá ficado desgostoso, embora não propriamente
surpreendido, ao ler a crítica. Desde a primeira linha, Pacheco
deu-lhe um tom chocarreiro e maldoso, condição de maldito
oblige, mas não
gratuito. Tal como Saramago e Serafim Ferreira, Luiz Pacheco
censurava Cardoso Pires por poupar o protagonista ao seu látego
moral. Se não havia chicotadas é porque havia enlevo: “Com
efeito, a figura do Engenheiro (o marialva típico) nunca resulta
caricata. É aquela que mais se aproxima do leitor, que mais
cuidados parece ter merecido a Cardoso Pires. Diríamos, aqui e
ali, que o autor (sem bem a consciência disso) se identifica com
ela… pelo menos no-la consegue transmitir com um sopro, um calor
de humanidade que as outras (pobres títeres!) estão longe de
possuir.”
Estas críticas não foram suficientes
para apagar o essencial. Com
O Delfim, José Cardoso
Pires estabelecia-se definitivamente como um dos mais
importantes, se não o mais importante, romancista português da
sua geração. O romance, que tem como protagonista o engenheiro
Tomás da Palma Bravo, corporização cheia de nuances do marialva
fixado por Cardoso Pires na
Cartilha, entrou quase
de imediato para o cânone da literatura portuguesa, além de ter
sido um dos livros mais vendidos do ano, e começou logo a ser
traduzido para vários países.
Em 1969, o professor norte-americano
Stephen Reckert, Camoens
Professor no King’s College e que dirigia o Departamento de
Estudos Brasileiros e Portugueses, convidou José Cardoso Pires
para visiting lecturer
na universidade londrina, onde este veio a dar aulas de
literatura portuguesa e brasileira. A experiência foi marcante
para o escritor, não só pela oportunidade de respirar o ambiente
de liberdade da Londres do final dos anos 60 como também a de
testemunhar, em primeira mão, um sistema de ensino evoluído e
onde, ao contrário do que tinha esperado, encontrou grande
interesse por parte dos alunos na literatura portuguesa
contemporânea. Os deveres profissionais deixavam-lhe muito tempo
livre para o lazer, desde idas a exposições e concertos aos
jogos de futebol no estádio do Chelsea, perto do local onde
morava, e também para a escrita.
Em 1970 foi publicada a edição
francesa de O Delfim
e, um ano depois, o romance chegava às livrarias brasileiras.
Cardoso Pires fez na altura um périplo de promoção do livro por
algumas cidades brasileiras, num regresso ao país onde tinha
estado pela última vez em 1960. A presença do escritor teve
ampla cobertura mediática. Sempre com o whiskey ao lado, Cardoso
Pires era uma figura que, para usar um cliché, não deixava
ninguém indiferente. Uns jornalistas viam nele um perfil
desafiador de toureiro, outros achavam-no anafado. Uns diziam
que era um rebelde das letras, outros afirmavam que muitas
mulheres tinham assistido aos lançamentos não por interesses
literários, mas para ver o homem.
Ainda em Londres escreveu
Técnica do Golpe de Censura, um artigo de reflexão e crítica sobre a
problemática da censura em Portugal, que viria a ser publicado
em simultâneo na revista inglesa
Index e na
Esprit, em Paris, em
setembro de 1972. Uma síntese do texto foi publicada em dezembro
no suplemento cultural do jornal alemão
Die Zeit. Mas o
trabalho mais duradouro do primeiro período londrino foi mesmo o
Dinossauro Excelentíssimo, escrito a partir do Natal de 1970 num
desafio que Cardoso Pires a si mesmo se pôs de escrever um conto
infantil instigado pelas cartas e desenhos que recebia da filha
mais nova, Rita, e também por duas conferências sobre banda
desenhada a que assistira em Londres no Institute of
Contemporary Art. Claro que, sob os atavios do conto infantil,
estava uma sátira demolidora ao salazarismo e ao próprio
ditador. Para que o livro, editado em 1972 e com ilustrações de
João Abel Manta, não tenha sido apreendido pela censura terá
contribuído não tanto os novos ventos da primavera marcelista,
que entretanto já eram mais ventos de inverno, mas uma
intervenção do deputado Cazal-Ribeiro, da União Nacional, que ao
usar o livro como prova da liberdade de expressão durante um
debate na Assembleia, deu-lhe mais destaque do que aquele que
desejaria e deixou os serviços da Censura de “mãos atadas”.
Ainda não se sabia, mas o regime
estava a cair. No final de 1971, Cardoso Pires tinha
testemunhado a favor do crítico Mário Castrim no Tribunal
Plenário, e, já em 1974, depôs a favor das escritoras Maria
Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta, no
célebre julgamento das Três Marias depois da publicação do livro
Novas Cartas Portuguesas. No início de 1974, foi um dos
convidados, juntamente com Eugénio de Andrade e Manuel
Cargaleiro, para as comemorações do aniversário do Jornal do
Fundão (após este evento, Cardoso Pires visitou pela primeira
vez a sua aldeia natal, São João do Peso). Pouco antes da sua
intervenção prevista, o escritor recebeu uma notificação do
governador civil de Castelo Branco a proibi-lo de falar. Cardoso
Pires não acatou a ordem, o que motivou a intervenção da PIDE,
interrompida por ordem do mesmo governador-civil, a quem o
escritor haveria de fazer referência quando o artigo “Técnica do
Golpe de Censura” foi incluído no livro
E Agora, José?
Não foi o último “encontro” de Cardoso
Pires com o sistema de censura e repressão do Estado Novo. Em
Março, Ana, a filha mais velha, foi presa. A sua libertação
ocorreu poucos dias antes da Revolução. Finalmente, a 25 de
Abril de 1974, o regime caía. Foi Lurdes, a irmã do escritor,
que ainda de madrugada ligou a Cardoso Pires a avisá-lo de que
havia uma revolta em curso. Apesar de estar convencido de que se
tratava de uma revolta da ala mais radical do regime, o escritor
saiu de casa à procura de perceber o que se passava ao certo. Ao
chegar à zona do Jardim Zoológico, foi abordado por dois
soldados, que se lhe dirigiram com inusitada cortesia. Perplexo,
Cardoso Pires perguntou-lhes o que se passava: “Isto, meu amigo,
é a liberdade!” Como tantos outros portugueses que tinham
esperado uma vida inteira por aquele momento, Cardoso Pires
festejou a liberdade nas ruas de Lisboa. Como tinha um
entendimento profundo do significado da liberdade, no dia 26 de
abril saiu do Partido Comunista, sem ressentimentos, para, nas
suas palavras, “experimentar viver em liberdade, em democracia
burguesa”, que, de certa forma, experimentara no período que
tinha vivido em Londres.
A sua atividade cívica naqueles meses
que se seguiram ao 25 de Abril foi frenética. Era praticamente
necessária uma tomada de posição por dia em relação aos mais
variados assuntos, como na participação num abaixo-assinado
contra a nomeação de Azeredo Perdigão, presidente da Fundação
Calouste Gulbenkian, para o Conselho de Estado, ou na homenagem
póstuma na Sociedade Nacional de Belas Artes a José Dias Coelho,
antigo militante comunista morto pela PIDE. Em outubro, Cardoso
Pires foi nomeado vereador da Câmara de Lisboa e, em fevereiro
de 1975, presidente da Comissão Cultural.
Porém, naqueles meses de tensão
permanente, o cargo mais relevante que assumiu foi o de
diretor-adjunto do Diário de Lisboa, a convite de Ruella Ramos, logo em setembro de 74.
Com a necessidade de gerir várias sensibilidades e interesses
que se digladiavam na redação, Cardoso Pires viveu tempos
bastante conturbados em que passou “a vida à porrada com toda a
gente”. Opôs-se à nacionalização do jornal, para que a este não
lhe sucedesse o mesmo que tinha acontecido ao
Diário de Notícias,
então pouco mais que um órgão do PC, o que provocou a
animosidade dos elementos ligados à esquerda e à
extrema-esquerda. Desgastado pelos conflitos constantes,
resolveu sair de casa e ir viver para um quarto no hotel Fénix.
Pediu várias vezes a demissão até que, a 31 de dezembro de 1975,
abandonou finalmente o jornal.
Em 1976, integrado numa comitiva de
escritores portugueses, participou na bienal de São Paulo. Foi
mais uma tentativa de dar a conhecer a literatura portuguesa
contemporânea ao público brasileiro fora da academia, visto que
nas universidades havia interesse pela obra de escritores entre
os quais o próprio Cardoso Pires.
A situação política do país, as
múltiplas atividades profissionais e cívicas em que se envolveu,
explicam a espécie de interrupção na produção literária de
Cardoso Pires. O primeiro livro que publicou após o 25 de Abril
foi precisamente o conjunto de ensaios e textos dispersos
E Agora, José?, em 1977. Aí, o escritor incluiu, além do já
mencionado Técnica do Golpe de Censura, uma longa “Memória
Descritiva” em que refletia sobre
O Delfim, e que tinha
usado numa palestra em Londres em Maio de 71, textos de
homenagem a artistas, amigos e camaradas, como Dias Coelho ou
João Abel Manta, e reflexões sobre o país que se começava a
erguer depois de décadas do pântano da ditadura e de meses de
euforia revolucionária.
A 25 de maio de 1979 estreou no Teatro Aberto a peça
Corpo-Delito na Sala de Espelhos (que seria publicada no ano
seguinte pela Moraes, com prefácio de Eduardo Lourenço), com
encenação de Fernando Gusmão, que já havia encenado O Render
dos Heróis, mas Cardoso Pires ficou tão desiludido com o
resultado final que se afastou em definitivo da escrita para
teatro.
Nesse ano, Hélder Macedo consegue criar no King’s College, com o
apoio do ICALP e da Fundação Calouste Gulbenkian, o lugar de
escritor residente, no Departamento de Estudos Portugueses e
Brasileiros. Cardoso Pires foi o primeiro escritor a ocupar a
vaga, regressando assim a Londres. Nesta altura, voltou a
trabalhar no romance que estava na gaveta havia quase vinte
anos, sobre o caso do capitão Almeida Santos. Ainda em 1979,
publicou o livro de contos O Burro-em-Pé, com ilustrações
de Júlio Pomar e que incluía o “Dinossauro Excelentíssimo”, “O
Conto dos Chineses”, publicado originalmente no Almanaque,
e “Celeste e Làlinha: Por cima de toda a folha”.
No ano seguinte comprou um pequeno
apartamento na Caparica que passaria a ser o seu escritório, a
sua cela de monge, onde gozava do silêncio e da solidão
indispensáveis à sua escrita. Foi aí que avançou com
Balada da Praia dos Cães.
Finalmente, sentia-se com confiança para abordar em modo
literário “um crime de esquerda num regime de direita.” No
entanto, como era seu hábito, o parto foi longo. O seu
perfeccionismo foi adiando a publicação do livro e exasperando o
editor, José Carlos Vasconcelos, que ia publicar o livro na
editora O Jornal, associada ao periódico com o mesmo nome. Por outro lado,
havia uma grande expetativa em relação ao livro porque o último
romance de Cardoso Pires,
O Delfim, já era de 1968. Assim, quando o livro saiu em
1982, tornou-se um best-seller instantâneo. A imprensa
contribuiu para isso com entrevistas ao autor e reportagens
sobre o caso real em que Cardoso Pires se inspirara com
testemunhos de figuras ligadas ao acontecimento e que à época
ainda estavam vivas.
Mas o melhor ainda estava para vir. Em
1983, a herdeira da extinta SPE, a Associação Portuguesa de
Escritores decidiu recuperar o prémio que anualmente
distinguisse a melhor obra de ficção de autores portugueses
publicada no ano anterior. Cardoso Pires, com um regresso em
grande forma, estaria sempre na lista de candidatos, mas
enfrentava a forte concorrência de
Memorial do Convento,
o livro que confirmou o talento romanesco de José Saramago e lhe
abriu as portas do grande público. Estes eram os dois favoritos
à vitória embora também estivessem na corrida autores como
Augusto Abelaira, Fernando Namora e Lídia Jorge, na altura com o
seu segundo romance O Cais
das Merendas. A 6 de abril de 1983, às seis da tarde no
hotel Fénix, o mesmo hotel onde Cardoso Pires se refugiara no
período conturbado na direção do
Diário de Lisboa,
Carlos Eurico da Costa anunciou o vencedor:
Balada da Praia dos Cães.
A essa hora, Cardoso Pires estava no Apolo 70 a assistir a
Do Fundo do Coração,
de Francis Ford Coppola. O júri, composto por Maria Lúcia
Lepecki, Maria da Glória Padrão, Álvaro Salema, Óscar Lopes e
Jacinto do Prado Coelho, tomou a decisão por unanimidade. O
prémio era importante não só pelo reconhecimento literário, mas
também pelo valor pecuniário, 750 contos (o que equivaleria
atualmente a 25 mil euros), que levara Vergílio Ferreira a
dar-lhe o nome de “El Gordo”, o prémio da lotaria espanhola, e
que Cardoso Pires dizia que serviria para pagar dívidas,
recuperando também a antiga tradição inaugurada com o prémio
Camilo Castelo Branco, dezoito anos antes. O escritor festejou
em casa com a família mais próxima, três membros do júri e um
amigo muito especial, o comandante Covas, cujo nome servira para
batizar o protagonista da
Balada. A 8 de abril, Cardoso Pires recebeu o prémio das mãos do
Presidente da República, General Ramalho Eanes.
Em setembro de 1983, fez parte de uma
nova embaixada de escritores portugueses enviada ao Brasil, que
incluía Alçada Baptista, José Saramago, Egito Gonçalves, Pedro
Tamen, Almeida Faria, Assis Pacheco, Lídia Jorge e Isabel da
Nóbrega. Na comitiva seguiam também Alexandre O’Neill, com quem
Cardoso Pires tinha cortado relações, e António Lobo Antunes,
que dali em diante seria o seu grande compincha literário e, de
certa forma, seu concorrente. Por exemplo, em 1984, o grande
tradutor Gregory Rabassa declinou o convite para traduzir a
Balada por já estar
comprometido com a tradução de
Fado Alexandrino. Mas
foi a ascensão segura de José Saramago que, após o tremendo
sucesso de Memorial do
Convento, marcou aqueles anos na literatura portuguesa, para
o que contribuiu não apenas a qualidade da obra, mas também a
regularidade com que publicava novos romances, exatamente ao
contrário do “bissexto” Cardoso Pires. Mas desta vez não seria
preciso esperar tantos anos por um novo livro. Em julho de 1985,
em declarações ao Jornal
de Letras, Cardoso Pires falava do romance em que estava a
trabalhar: “atravessa o período de 1960 a 1976, e é uma reflexão
sobre o complexo de identidade português, que se liga ao
síndroma lusitano. Interessa-me, fundamentalmente, como pólo
definidor o desajustamento da afirmação.” Não revelava o título:
“Talvez já tenha. Mas não lhe posso dizer mais nada. Nunca gosto
de contar um livro, é a única coisa em que sou supersticioso.
[…] Estou aqui fechado na Costa de Caparica a trabalhar
furiosamente.”
Entretanto, a
Balada fazia o seu
percurso no estrangeiro. Em outubro de 85 saiu em Espanha, na
Seix Barral, em Fevereiro de 86 na Inglaterra, com tradução de
Mary Fitton, e, no verão desse ano, em França, na Gallimard, com
tradução de Michel Laban. Em março, o Círculo de Leitores tinha
feito uma edição de O Delfim integrada na coleção Obras-Primas do Século XX, com
prefácio de Eduardo Prado Coelho. Um ano depois, estreava em
Lisboa a adaptação cinematográfica da
Balada da Praia dos Cães,
com realização de José Fonseca e Costa e com Raul Solnado no
papel principal. O filme, uma produção luso-espanhola, foi um
sucesso estrondoso para os padrões do cinema português, tendo
sido visto por mais de 80 mil espetadores. A antestreia, no
cinema Castil, contou com a presença de inúmeras figuras do meio
artístico e da política, além, claro, do autor.
Em novembro, era publicado, na Dom
Quixote, o romance
Alexandra Alpha. Até ao fim, Cardoso Pires consideraria este
o seu romance mais pessoal. Era um romance pletórico de
situações e personagens da burguesia intelectual lisboeta dos
anos 60 e 70 e em que muitos viram apenas um
roman à clef. Tinha
sido escrito num tempo recorde, para os padrões de Cardoso
Pires, era o seu romance mais longo até à data, e haveria de ser
o último publicado em vida. Apesar de mais um sucesso de vendas,
o escritor sentiu que o livro não tinha sido bem compreendido
pelo público e por uma parte da crítica, o que não impediu que,
um ano depois, tivesse sido distinguido pela Associação de
Críticos de São Paulo.
Pode afirmar-se que os anos seguintes
foram um período de consagração mais do que de produção. Isto
apesar de, logo em 1988, ter publicado o livro de contos
A República dos Corvos,
de ter assistido a uma nova encenação da peça
O Render dos Heróis, pelo Teatro da Malaposta, em 1989, de ter
mantido colaborações regulares com a imprensa, n’O Jornal e no Público, por
exemplo. Em 1991, foi-lhe atribuído o Prémio Internacional União
Latina. Recebeu a notícia num telefonema de Jorge Amado, mas
terá sido José Saramago a sugerir o nome do camarada de letras
para receber o prémio, deixando para trás nomes como Gonzalo
Torrente Ballester ou Marguerite Duras. O valor do prémio, dois
mil e seiscentos contos, tinha o destino habitual, os credores.
Em 1992, foi-lhe atribuído o prémio
Astrolabio d’Oro, do
município italiano de Pisa, e que distinguiu outras figuras da
criação artística europeia, como o realizador espanhol Pedro
Almodóvar.
Em 1994, reuniu num livro,
A Cavalo no Diabo, as crónicas que tinha escrito para o
Público e que eram, na
sua maioria, retratos da Lisboa da sua juventude, com o regresso
aos ambientes pitorescos da Almirante Reis que tinham servido de
cenário a alguns dos seus primeiros contos. Nesse mesmo ano,
sofreu um acidente de viação perto do Parque Eduardo VII, que
terá sido consequência de um pequeno AVC, e esteve internado no
Hospital de Santa Maria. Logo no início de 1995 sofreu um
acidente vascular cerebral que o deixou sem memória durante oito
dias. Por insistência do médico que o acompanhou, João Lobo
Antunes, a experiência acabou por resultar num livro,
De Profundis, Valsa Lenta,
publicado em 1997, ano em que também publicou
Lisboa, Livro de Bordo,
uma encomenda da Expo-98.
De Profundis valeu-lhe inúmeros prémios literários e contribuiu
decisivamente para a atribuição do Prémio Pessoa no ano de 1997,
quando Portugal foi o país-convidado da feira de Frankfurt e
Cardoso Pires integrou uma extensa comitiva onde estavam todos
os grandes nomes da literatura portuguesa, como Agustina ou
Saramago.
O ano de todos os prodígios, o de
1998, veio a ser o ano da morte de Cardoso Pires. A 21 de abril,
nas vésperas da inauguração da Expo, sofreu um AVC e esteve
internado durante um mês no Santa Maria. A 8 de Julho sofreu uma
paragem cardiorrespiratória que o deixou em estado vegetativo e
sem possibilidade de recuperação. A 26 de outubro, poucas
semanas após o anúncio do prémio Nobel da Literatura para José
Saramago, morria um dos expoentes da prosa portuguesa do século
XX.
Bruno Vieira Amaral
6 de novembro, 2018
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