O caso deu-se durante o fim-de-semana de 25 e 26 de Novembro de 1967 e afetou a região de Lisboa e Vale do Tejo, ou seja o território ocupado pela (ainda) capital do império e os concelhos em seu redor. Estes, ao longo dos anos, tinham acumulado uma população crescente ‒ marcada pelo desenraizamento, o baixo nível de escolarização e a miséria ‒ que vivia em bairros de lata, construídos nos terrenos vazios, de preferência perto dos cursos de água. O problema social e urbanístico estava à vista de quem o quisesse ver e não havia lápis azul capaz de o apagar ou esconder. Expunha-se e impunha-se ostensivo ainda que não se pudesse falar dele ou denunciá-lo. E a sua negação, por cegueira voluntária, induzida ou forçada, não o resolvia, pelo contrário permitira que se ampliasse e aprofundasse continuamente.

Quanto às inundações na região de Lisboa eram um fenómeno frequente, sobretudo nos meses do outono, com origem numa precipitação excecional em quantidade e intensidade. Mas também ocorriam noutras estações do ano e mais do que uma vez, e tinham por saldo elevados estragos materiais e vitimas mortais. Portanto, os humores da natureza estavam estudados, traduzidos em tabelas estatísticas, gráficos de barras, muitos números… A precariedade e desigualdade social, a debilidade económica do país e a insustentabilidade financeira do Estado eram também uma evidência. Mas quem podia alterar o curso da “vida” tinha outras prioridades políticas: manter o poder e sustentar uma guerra para salvar as terras do ultramar.

É inegável que naquele sábado de 25 de Novembro de 1967 a chuva foi inusitada. À noite, os níveis de precipitação já haviam superado o histórico das estatísticas e o volume de água que galgou as margens foi maior que o habitual. Mas a concentração, a fragilidade e a desorganização da ocupação humana do território também tinham atingido o inusitado, o desumano e o insustentável. E a catástrofe aconteceu para surpresa de muitos e desgraça de muitos mais. Escondê-la ou ignorá-la era impossível, ainda que a censura o tentasse. O seu estrondo ouviu-se para lá das fronteiras, gerando um movimento de solidariedade à escala global. Perante a enormidade do drama que se lhe apresentava o regime ficou praticamente bloqueado, incapaz de prestar socorro às vítimas e planear e dirigir a reconstrução do que as águas tinham destruído.

A sociedade civil, mormente os estudantes, tomaram a iniciativa. Auto organizados em batalhões de voluntários ajudaram a limpar os destroços, a angariar bens e fundos para auxiliar os feridos e os desalojados, a vacinar para prevenir surtos de doenças. Esse contacto de proximidade com o país real contribuí para a sua forte e rápida consciencialização e politização. A verdade é que a passagem da água pusera a nú o país que éramos, de facto, para lá da propaganda, das inaugurações, dos eventos sociais, do futebol.

E precipitou ou acelerou a ruína do regime.

Em Setembro de 1968, Salazar pediu a demissão, invocando problemas de saúde. Marcelo Caetano assumiu a presidência do governo. Em julho de 1969, a expensas do Ministério das Obras Públicas, o anfiteatro do Laboratório Nacional de Engenharia Civil recebeu o Colóquio sobre Política de Habitação, cujo objetivo era «obter sugestões para a resolução de forma intensiva e coordenada ao nível nacional do problema da carência da habitação.» O itálico é nosso e pretende assinalar uma mudança na postura do poder político: abertura à sociedade e assunção de uma carência do país. Mais de 300 técnicos debateram o problema exaustivamente. Só em Lisboa, concluíram, era preciso construir 500 mil casas! No ano seguinte, curiosamente, no dia 26 de Novembro de 1969, foi publicado no Diário do Governo o decreto-lei que extinguiu a Policia Internacional de Defesa do Estado ou PIDE, substituindo-a pela Direção-Geral de Segurança ou DGS. Mudança de pouca monta, é certo, mas que ficou associada ao início da “Primavera marcelista”. Mas o país precisava e queria mais e com urgência. O tempo das reformas já se esgotara, como a história hoje nos ensina.

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