Efemérides | A suspensão dos jornais diários de Lisboa em junho de 1919

Entre 19 de Junho e 3 de Julho de 1919, os principais jornais diários com sede em Lisboa foram suspensos por iniciativa concertada entre as respetivas empresas, que nesse período co-editaram o diário A IMPRENSA, que hoje fica acessível na Hemeroteca Digital, aqui.

O ano 1919 foi um ano marcado por muita agitação política e social, quer no plano nacional, quer internacional, em resultado do fim da I Grande Guerra e das negociações de paz subsequentes, da luta política desencadeada pelo confronto entre as diversas perspetivas de reconstrução, mas também do impacto da revolução russa nas massas trabalhadoras.

O lock-out aconteceu cinco meses depois do início da publicação do diário A Batalha, órgão da União Operária Nacional (U.O.N.), a 23 de Fevereiro de 1919. O jornal alcançou imediatamente uma grande recetividade entre o operariado (urbano e agrícola) e, por isso mesmo, vinha cumprindo com grande eficácia a sua missão de informar, mas também de doutrinar, organizar e mobilizar as classes profissionais. Daí que tenha sido percecionado como uma ameaça pelo patronato e pelo poder político e governativo, e por isso mesmo, alvo de medidas repressivas.

Na origem direta do lock-out encontramos precisamente uma ação de protesto da classe gráfica contra o encerramento pelas autoridades da U.O.N. e d’A Batalha, no dia 18 de Junho (imagem 1); protesto que se expressou na recusa em trabalhar enquanto o governo não desbloqueasse a situação.


 



imagem 1:
"A gréve em Lisboa", clichés Serra Ribeiro.
Illustração Portugueza, n.º 697, 30 de junho de 1919, p. 515
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(coleção Illustração Portugueza na Hemeroteca Digital acessível aqui)

 

Mas na verdade o conflito vinha de trás: o encerramento da U.O.N. e do seu jornal aconteceu na sequência de uma greve geral de 48 horas (17 e 18 de Junho) que fora convocada em Lisboa, como «demonstração de solidariedade» para com os trabalhadores da Companhia União Fabril (C.U.F.), em greve desde 25 de Maio, por motivo do despedimento dos trabalhadores mais empenhados na organização do respetivo sindicato; a greve geral contou com a adesão da Federação dos Trabalhadores do Livro e do Jornal, associada da U.O.N., pelo que durante esses dois dias não saíram jornais diários na cidade, com exceção de O Século, que terá sido o único que chegou às bancas – o que nos diz que os seus trabalhadores ou parte deles não concordaram com a greve geral. Mas não foram poupados ao lock-out que foi iniciado a 19 de Junho, no mesmo dia em que o governo mandou desbloquear a sede da U.O.N. e de A Batalha.

 

Nesta ação ofensiva participaram as empresas de 14 jornais diários, a saber:

A Capital (1910-1938, vespertino); Diário de Notícias (1864-…, matutino); A Época (1919-1927, matutino); Jornal do Comércio (1853-1976, matutino); Jornal da Tarde (1918-1919, vespertino); A Luta (1906-1923, vespertino); A Manhã (1917-1922, matutino); O Mundo (1900-1927, matutino); A Opinião (1916-1923, vespertino); Portugal (1917-1920, vespertino); República (1911-1927, matutino); O Século (1881-1978, matutino); A Vanguarda (1912-1929, vespertino); Vitória (1919-1922, matutino).

 

Na sua maioria, estes jornais eram órgãos de partidos republicanos ou de fações e dissidências, que se combatiam diariamente, e no entanto, em face de um ‘inimigo’ comum, a U.O.N. e A Batalha, relativizaram os seus antagonismos e definiram uma reação conjunta: o lock-out, que foi anunciado e justificado através de um Boletim da Imprensa, não datado (mas que segundo as notícias foi distribuído no dia seguinte, 20 de Junho, e da co-edição de A Imprensa, iniciada a 21 de Junho, que nas suas 13 edições diárias foi sobretudo canal de uma campanha contra o ‘sindicalismo revolucionário’, que vinha ganhando terreno nas organizações operarias desde a revolução russa de 1917. Em cabeçalho, consta que era “Impresso em sete rotativas” e que tinha “cinco tiragens diárias”, além de se proclamar “o jornal de maior circulação em Portugal”. Os números da coleção da Hemeroteca são assinalados como “1.ª tiragem” e revelam que os dois primeiros saíram das oficinas de O Século e os restantes das do Diário de Notícias – alteração que se reflete no grafismo, desde logo no tipo usado no cabeçalho.

Em termos responsabilidade editorial, competia a uma Comissão Diretora composta por Augusto de Castro (do Diário de Notícias), Hermano Neves (d'A Vitória), João Pereira da Rosa (d'O Século) e Manuel Guimarães (d'A Capital). Quanto ao cargo de editor, coube a António Maria Lopes (d'O Século) nos dois primeiros números, passando no n.º 3 para Acúrcio das Neves, do Diário de Notícias, quando a administração, redação e oficinas transitaram para as instalações desse jornal.

Esta reação pronta, concertada e elaborada das empresas jornalísticas encontra explicação no facto de o conflito com a classe gráfica - resultante da convocação da greve geral e do encerramento de A Batalha e da U.O.N. - ter eclodido durante o processo de negociações laborais que, desde finais de Maio, fora iniciado entre as empresas e os sindicados e federações da classe gráfica; quer isto dizer que, desde aquela data, as empresas estavam organizadas numa “Comissão de Defeza das Emprezas Jornalísticas”, que fazia publicar na imprensa convocatórias para reuniões, assinadas por Emílio Segurado, que era Administrador d'A Luta (imagem 2).

imagem 2:
"Comissão de Defeza das Emprezas Jornalisticas".
A Capital : diário republicano da noite, n.º 3136, 31 de maio de 1919, p. 1
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(coleção A Capital : diário republicano da noite na Hemeroteca Digital acessível aqui)






   
 
 
                       
 
                      
 
                       

A Imprensa
N.º 1 (21 Jun. 1919)-n.º 12 (3 Jul. 1919)
acessível aqui
 

No dia 3 de Julho, um Acordo celebrado entre as Empresas Jornalísticas e a Federação dos Trabalhadores do Livro e do Jornal, e intermediado pela Associação dos Trabalhadores de Imprensa, pôs fim ao conflito e no dia seguinte os jornais reapareceram nas bancas; em termos gerais, a Federação da “classe gráfica” comprometeu-se a não impor “a suspensão dos jornais quando qualquer deles seja impedido de circular”; por sua vez, as Empresas Jornalísticas reconheceram à Federação o seu direito de “defender os interesses morais e económicos da classe gráfica, especialmente quando se trate da paralisação do trabalho provocada por assaltos ou suspensão violenta de qualquer jornal”, mas «sem prejudicar as empresas alheias ao conflito», e também se comprometeram a retomar as negociações interrompidas para «ultimar as reclamações pendentes»; ficou ainda assente “que as empresas jornalísticas não [eram] obrigadas a pagar aos operários gráficos os dias em que estes se conservaram em greve, mas, levantando-se dúvidas sobre se, num determinado momento, houve greve ou lock-out, ambas as partes entregaram a resolução dessas dúvidas á decisão de um arbitro que não pertencerá a nenhuma das classes, mas da confiança dos litigantes”, mas que seria “respeitada em absoluto por ambas as partes.” (imagem 3 e 4).

 

imagem 3:
"Explicação d'uma attitude" ; "Accordo entre as Emprezas Jornalisticas e a Federação do Livro e do Jornal".
A Capital : diário republicano da noite, n.º 3153, 4 de julho de 1919, p. 1
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(coleção A Capital : diário republicano da noite na Hemeroteca Digital acessível aqui)

imagem 4:
"Entre as empresas jornalisticas e a classe grafica ficou ontem solucionado o conflito: explicação d'uma atitude".
Diário de Notícias, n.º 19250, 4 de julho de 1919, p. 1
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FICHA TÉCNICA

A suspensão dos jornais diários de Lisboa em junho de 1919
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