LENDAS E NARRATIVAS (Tomo II) A DAMA-P-DE-CABRA RIMANCE DE UM JOGRAL SECULO XI TROVA PRIMEIRA. 1 V s os que no cr des em bruxas, nem em almas penadas, nem nas tropelias de Satans, assentae-vos aqui ao lar, bem junctos ao p de mim, e contar-vos-hei a historia de D. Diogo Lopes, senhor de Biscaia. E no me digam no fim:--"n o pde ser."--Pois eu sei c inventar cousas destas? Se a conto porque a li n'um livro muito velho, quasi t o velho como o nosso Portugal. E o auctor do livro velho leu-a algures, ou ouviu-a contar, que o mesmo, a algum jogral em seus cantares. uma tradi o veneranda; e quem descr das tradi es l ir para onde o pague. Juro-vos que se me negaes esta certissima historia sois dez vezes mais descridos do que S. Thom antes de ser grande sancto. E no sei se eu estarei de animo de perdoar-vos, como Cbristo lhe perdoou. Silencio profundissimo; porque vou principiar. 2 D. Diogo Lopes era um infatigavel monteiro: neves da serra no inverno, soes dos estevaes no ver o, noites e madrugadas, d'isso se ria elle. Pela manhan cedo de um dia sereno estava D. Diogo em sua armada, em monte selvoso e agreste, esperando um porco montez, que, batido pelos caadores, devia sa r naquella assomada. Eis seno quando come a a ouvir cantar ao longe: era um lindo, lindo cantar. Alevantou os olhos para uma penha que lhe ficava fronteira: sobre ella estava assentada uma formosa dama; era a dama quem cantava. O porco fica desta vez livre e quite; porque D. Diogo Lopes no corre, voa para o penhasco. "Quem sois v s, senhora to gentil; quem sois, que logo me captivastes?" "Sou de t o alta linhagem como tu; porque venho do semel de reis, como tu, senhor de Biscaia." "Se j sabeis quem eu seja, offere o-vos a minha mo, e com ella as minhas terras e vassallos." "Guarda as tuas terras, D. Diogo Lopes, que poucas s o para seguires tuas montarias; para o desporto e folgana de bom cavalleiro que s. Guarda os teus vassallos, senhor de Biscaia, que poucos so elles para te baterem a ca a." "Que dote, pois, gentil dama, vos posso eu offerecer digno de vs e de mim; que se a vossa belleza divina, eu sou em toda a Hespanha o rico homem mais abastado?" "Rico-homem, rico-homem, o que eu te acceitra em arrhas cousa de pouca valia; mas apesar d'isso no creio que m'o concedas; porque um legado de tua me, a rica-dona de Biscaia." "E se eu te amasse mais que a minha m e, porque no te cederia qualquer dos seus muitos legados?" "Ent o se queres ver-me sempre ao p de ti n o jures que fars o que dizes, mas d -me d'isso a tua palavra." "A la f de cavalleiro, n o darei uma, darei milhentas palavras." "Pois sabe que para eu ser tua preciso esqueceres-te de uma cousa que a boa rica-dona te ensinava em pequenino, e que estando para morrer ainda te recordava." "De qu , de qu, donzella?"--acudiu o cavalleiro com os olhos faiscantes.--"De nunca dar treguas mourisma, nem perdoar aos ces de Mafamede? Sou bom christ o. Guai de ti e de mim se s dessa ra a damnada!" "No isso, dom cavalleiro,"--interrompeu a donzella a rir.--"O de que eu quero que te esqueas do signal da cruz: o que eu quero que me promettas que nunca mais has-de persignar-te." "Isso outra cousa:"--replicou D. Diogo, que nos folgares e devassides perd ra o caminho do cu. E poz-se um pouco a scismar. E scismando dizia comsigo:--"De que servem benzeduras? Matarei mais duzentos mouros e darei uma herdade a Sanctiago. Ella por ella. Um presente ao apostolo e duzentas cabe as de agarenos valem bem um grosso peccado." E erguendo os olhos para a dama, que sorria com ternura, exclamou:--"Seja assim: est dicto. V , com seiscentos diabos." E levando a bella dama nos braos, cavalgou na mula em que viera montado. S quando noite no seu castello p de considerar miudamente as frmas nuas da airosa dama, notou que tinha os p s forcados como os de cabra. 3 Dir agora alguem:--"Era por certo o demonio que entrou em casa de D. Diogo Lopes. O que l no iria!"--Pois sabei que n o a nada. Por annos a dama e o cavalleiro viveram em boa paz e uni o. Dous argumentos vivos havia d'isso: D. Inigo Guerra e D. Sol, enlevo ambos de seu pae. Um dia pela tarde D. Diogo voltou de montear: trazia um javali grande, muito grande. A mesa estava posta. Mandou conduzi-lo casa onde comia, para se regalar de ver a excellente pr a que havia preado. Seu filho assentou-se ao p delle: ao p da me D. Sol; e come aram alegremente seu jantar. "Boa montaria, D. Diogo,"--dizia sua mulher.--"Foi uma boa e limpa caada." "Pelas tripas de Judas!"--respondeu o bar o.--"Que ha bem cinco annos no colho urso ou porco montez que este valha!" Depois, enchendo de vinho o seu pichel de prata mui rico e lavrado, virou-o de golpe saude de todos os ricos homens fragueiros e monteadores. E a comer e a beber durou at a noite o jantar. 4 Ora deveis de saber que o senhor de Biscaia tinha um al o a que muito queria, raivoso no travar das feras, manso com seu dono, e at com os servos de casa. A nobre mulher de D. Diogo tinha uma podenga preta como azeviche, esperta e ligeira que mais n o havia dizer, e della no menos presada. O al o estava gravemente assentado no cho defronte de D. Diogo Lopes, com as largas orelhas pendentes e os olhos semi-cerrados, como quem dormitava. A podenga negra, essa corria pelo aposento viva e inquieta, pulando como um diabrete: o pello liso e macio reluzia-lhe com um reflexo avermelhado. O bar o, depois da saude urbi et orbi feita aos monteiros, esgotava um kirie comprido de saudes particulares, e a cada nome uma taa. Estava como cumpria a um rico-homem illustre, que nada mais tinha que fazer neste mundo sen o dormir, beber, comer e caar. E o al o cabeceava como um abbade velho em seu cro, e a podenga saltava. O senhor de Biscaia pegou ent o de um pedao de osso com sua carne e medula, e atirando-a ao al o gritou-lhe:--"Silvano, toma l tu, que s fragueiro: leve o diabo a podenga, que no sabe sen o correr e retouar." O canzarr o abriu os olhos, rosnou, poz a pata sobre o osso, e abrindo a bca, mostrou os dentes anavalhados. Era como um rir deslavado. Mas logo soltou um uivo, e cahiu, perneando meio-morto: a podenga de um pulo lhe salt ra garganta, e o al o agonisava. "Pelas barbas de D. From, meu bisav!"--exclamou D. Diogo, pondo-se em p tremulo de colera e de vinho.--"A perra maldicta matou-me o melhor alo da matilha; mas juro que hei-de escorcha-la." E virando com o p o co moribundo, mirava as largas feridas do nobre animal, que espirava. "A la f que nunca tal vi! Virgem bemdicta! Aqui anda cousa de Belzebuth."--E dizendo e fazendo, benzia-se e persignava-se. "Ui!"--gritou sua mulher como se a houveram queimado. O baro olhou para ella: viu-a com os olhos brilhantes, as faces negras, a b ca torcida e os cabellos eriados: E a-se alevantando, alevantando ao ar com a pobre D. Sol sobraada debaixo do bra o esquerdo: o direito estendia-o por cima da mesa para seu filho D. Inigo de Biscaia. E aquelle brao crescia alongando-se para o mesquinho, que de medo n o ousava bolir nem falar. E a mo da dama era preta e luzidia como o pello da podenga, e as unhas tinham-se-lhe estendido bom meio palmo, e recurvado em garras. "Jesus, sancto nome de Deus!"--bradou D. Diogo, a quem o terror dissip ra as fumaas do vinho. E travando de seu filho com a esquerda, fez no ar com a direita uma e outra vez o signal da cruz. E sua mulher deu um grande gemido, e largou o bra o de Inigo Guerra, que j tinha seguro, e continuando a subir ao alto, saiu por uma grande fresta, levando a filhinha que muito chorava. Desde esse dia no houve saber mais nem da m e nem da filha. A podenga negra, essa sumiu-se por tal arte, que ninguem no castello lhe tornou a pr a vista em cima. D. Diogo Lopes viveu muito tempo triste e aborr do, porque j n o se atrevia a montear. Lembrou-se, porm, um dia de espairecer sua tristura, e em vez de ir caa dos cerdos, ursos e zevras, sair caa de mouros. Mandou, pois, levantar o pend o, desenferrujar e polir a caldeira, e provar seus arnezes. Entregou a Inigo Guerra, que j era mancebo e cavalleiro, o governo de seus castellos, e partiu com lustrosa mesnada de homens d'armas para a hoste d'el rei Ramiro, que a em arrancada contra a mourisma de Hespanha. Por muito tempo no houve delle, em Biscaia, nem novas nem mensageiros. * * * * * TROVA SEGUNDA. 1 Era um dia ao anoitecer: D. Inigo estava mesa, mas no podia ceiar, que grandes desmaios lhe vinham ao cora o. Um pagem muito mimoso e privado, que em p diante delle esperava seu mandar, disse ento para D. Inigo:--"Senhor, porque n o comeis?" "Que hei-de eu comer, Brearte, se meu senhor D. Diogo est captivo de mouros, segundo resam as cartas que ora delle s o vindas?" "Mas seu resgate no a vossa mofina: dez mil pees e mil cavalleiros tendes na mesnada de Biscaia: vamos correr terras dos mouros: ser o os captivos resgate de vosso pae." "O perro d'elrei de Leo fez sua paz com os c es de Toledo: e so elles que tem preado meu pae. Os alcaides e potestades do rei tredo e vil n o deixariam passar a boa hoste de Biscaia." "Quereis vs, senhor, um conselho, e n o vos custar nem mealha?" "Dize, dize l , Brearte." "Porque no ides serra procurar vossa me? Segundo ou o contar aos velhos ella grande fada." "Que dizes tu, Brearte? Sabes quem minha me, e que casta de fada?" "Grandes historias tenho ouvido do que se passou certa noite n'este castello: ereis vs pequenino, e eu ainda n o era nado. Os porqus d'estas historias, isso Deus que o sabe." "Pois dir-t'os-hei eu agora. Chega-te para c, Brearte." O pagem olhou de roda de si quasi sem o querer, e chegou-se para seu amo: era a obediencia, e ainda mais um certo arripio de medo, que o fazia chegar. "V s tu, Brearte, aquella fresta entaipada? Foi por alli que minha me fugiu. Como e porqu , aposto que j t'o h o contado?" "Senhor, sim! Levou vossa irman comsigo..." "Responder s ao que pergunto! Sei isso. Agora cal-te." O pagem poz os olhos no ch o, de vergonha; que era humildoso e de boa raa. 1 E o cavalleiro come ou o seu narrar: "Desde aquelle dia maldicto meu pae poz-se a scismar: e scismava e amesquinhava-se, perguntando a todos os monteiros velhos se porventura tinham lembrana de haverem no seu tempo encontrado nas brenhas alguns medos ou feiticeiras. Aqui foi um n o acabar de historias de bruxas e de almas penadas. Havia muitos annos que meu senhor pae se no confessava: alguns havia tambem que estava viuvo sem ter enviuvado. Certo domingo pela manhan nasceu o dia, alegre como se f ra de paschoa; e meu senhor D. Diogo acordou carrancudo e triste como costumava. Os sinos do mosteiro, l em baixo no valle, tangiam t o lindamente que era um cu aberto. Elle poz-se a ouvi-los, e sentiu uma saudade que o fez chorar. "Irei ter com o abbade:"--disse elle l comsigo:--"quero-me confessar. Quem sabe se esta tristura ainda tenta o de Satan s?" O abbade era um velhinho, sancto, sancto, que no o havia mais. Foi a elle que se confessou meu pae. Depois de dizer mea culpa, contou-lhe ponto por ponto a historia do seu noivado. "Ui! filho,"--bradou o frade--"fizeste maridan a com uma alma penada!" "Alma penada, no sei:"--tornou D. Diogo;--"mas era cousa do diabo." "Era alma em pena: digo-t'o eu, filho:"--replicou o abbade.--"Sei a historia dessa mulher das serras. Est escripta ha mais de cem annos na ultima folha de um sanctoral godo do nosso mosteiro. Desmaios que te vem ao cora o pouco me espantam. Mais que ancias e desmaios costumam roer l por dentro os pobres excommungados." "Ent o estou eu excommungado?" "Dos ps at cabe a; por dentro e por fra; que n o ha que dizer mais nada." E meu pae, a primeira vez na sua vida, chorava pelas barbas abaixo. O bom do abbade amimou-o como a uma creana, consolou-o como a um malaventurado. Depois poz-se a contar a historia da dama das penhas, que minha me ... Deus me salve! E deu-lhe por penitencia ir guerrear os perros sarracenos por tantos annos quantos viv ra em peccado, matando tantos delles quantos dias nesses annos tinham corrido. Na conta no entravam as sextas-feiras, dia da paix o de Christo, em que seria irreverncia trosquiar a vil rel de agarenos, cousa neste mundo mui indecente e escusada. Ora a historia da formosa dama das serras, de verbo ad verbum como estava na folha branca do sanctoral, resava assim, segundo lembranas do abbade. 3 No tempo dos reis godos--bom tempo era esse!--havia em Biscaia um conde, senhor de um castello posto em montanha fragosa, cercado pelas encostas e quebradas de larguissimo soveral. No soveral havia todo o genero de ca a, e Argimiro o Negro (assim se chamava o rico-homem) gostava, como todos os nobres bares de Hespanha, principalmente de tres cousas boas; da guerra, do vinho e das damas; mas ainda mais do que de tudo isso, gostava de montear. Dama, possuia-a formosa, que era linda a condessa; vinho, n o havia melhor adega que a sua; caa, era cousa que na selva n o faltava. Seu pae, que fra ca ador e fragueiro, quando estava para morrer, chamou-o e disse-lhe:--"Has-de jurar-me uma cousa que no te custar nada." Argimiro jurou que faria o que seu pae e senhor lhe ordenasse. " que nunca mates fera em cama e com cria, seja urso, javal , ou veado. Se assim o fizeres, Argimiro, nunca nas tuas selvas e devezas faltar em que exercites o mais nobre mister de um fidalgo. Al m d'isso, se tu souberas o que um dia me aconteceu... Escuta-me, que um horrendo caso...." O velho n o pde acabar; porque a morte lhe cravou n'este momento as garras. Murmurou algumas palavras inintelligiveis: revirou os olhos, e feneceu. Deus seja com a sua alma! Tinham passado annos: certo dia chegou ao castello do conde um mensageiro d'elrei Wamba. Chamava-o elrei a Toledo para o acompanhar com sua mesnada contra o rebelde Paulo. Os outros nobres-homens das cercanias eram como elle chamados. Antes, por m, de partirem junctaram-se todos no castello de Argimiro para fazerem uma grande montaria com mais de cem alos, sabujos, e lebreus, cincoenta monteiros, e mo os de bsta sem conto. Era uma vistosa ca ada. Saram no quarto d'alva: correram valles e montes; bateram bosques e matos. Era, comtudo, meio dia e ainda n o haviam alevantado porco, urso, zebra ou veado. Blasphemavam de sanha os cavalleiros, praguejavam, e depennavam as barbas. Argimiro, que por longa experiencia conhecia os sitios mais profundos da espessura, sentiu l por dentro uma tenta o do diabo. "Os meus hospedes, pensava elle, n o partiro sem beberem alguns cangir es de vinho sobre uma ou duas peas de ca a. Juro-o por alma de meu pae." E seguido de alguns monteiros com suas trlas de c es, affastou-se da companhia, e deu a andar, a andar, at que se lan ou por um valle abaixo. O valle era escuro e triste: corria pelo meio uma ribeira fria e malassombrada. As bordas da ribeira eram penhascosas e faziam muitas quebradas. Argimiro chegou primeira volta do rio: parou, poz-se a olhar de roda, e achou o que procurava. Abria-se uma caverna na encosta fragosa, que descia at a estreita senda da margem por onde o cavalleiro caminhava. Argimiro entrou na bca da cova, e a um ac no entraram aps elle monteiros, mo os de bsta, al os, sabujos e lebreus, fazendo grande matinada. Era o covil de um onagro: a fera deu um gemido, e deixando as suas crias, estendeu-se no cho, e abaixou a cabe a como quem supplicava. "A ella!"--gritou Argimiro; mas gritou voltando a cara. A matilha saltou no pobre animal; que soltou outro gemido, e cahiu todo ensanguentado. Uma voz soou ento nos ouvidos do conde, e dizia:--"Orph os ficaram os cachorrinhos do onagro: mas pelo onagro tu ficars deshonrado." "Quem ousa aqui falar agouros?"--gritou o rico-homem, olhando iroso para os monteiros. Todos guardavam silencio: mas todos estavam pallidos. Argimiro pensou um momento: depois saindo da cova, murmurou:--"V com mil Satanases!" E com alegres toques de buzina e latidos da matilha fez conduzir ao castello a pra que tinha preado.[1] E tomando o seu girifalte prima em punho, ordenou aos monteiros fossem dizer aos nobres ca adores, que dentro de duas horas voltassem, porque achariam em seu pao comida bem aparelhada. Depois, seguido dos falcoeiros, come ou a encaminhar-se para o solar, lanando nebris e falc es, e ajuntando caa de volateria, que a havia por aquelles montes mui basta. 4 Dobrava a campa da torre de menagem no castello do conde Argimiro: dobrava pela linda condessa, que seu nobre marido havia matado. Andas cubertas de d a levam a enterrar ao mosteiro vizinho: os frades vo atraz das andas cantando as ora es dos finados: ap s os frades vae o rico-homem vestido de grossa estamenha, cingido com uma corda, e rasgando pelas saras e pedras os p s que leva descalos. Porque matou elle sua mulher, e porque a elle descalo? Eis o que a esse respeito refere a lenda escripta na folha branca do sanctoral. 5 Dous annos duraram guerras d'elrei Wamba: foram guerras mui de contar. E por l andou o rico-bomem com seus bucellarios, que assim se diziam ento acostados e homens d'armas. Fez estrondosas fa anhas e cavallarias; mas voltou cuberto de cicatrizes, deixando por campos de batalha gasta e consumida a sua valente mesnada. E atravessando de Toledo para Biscaia seguia-o apenas um velho escudeiro. Velho e cheio de cans e rugas tambem elle era, no de annos, mas de penas e de trabalhos. Caminhava triste e feroz no aspecto; porque do seu castello lhe eram vindas novas d'entristecer e raivar. E cavalgando noite e dia por montes e charnecas, por bosques e por jard as, imaginava no modo por que descobriria se eram falsas ou verdadeiras essas novas de mau peccado. 6 No solar do conde Argimiro, um anno depois da sua partida, ainda tudo dava mostras da magua e saudade da condessa: as salas estavam forradas de negro; de negro eram os trajos della; nos pateos interiores dos paos cresc ra a herva, de modo que se podia ceifar: as reixas e as gelosias das janellas no se haviam tornado a abrir: descantes dos servos e servas, sons de psalterios e harpas tinham deixado de soar. Mas ao cabo do segundo anno tudo apparecia mudado: as colgaduras eram de prata e matiz; brancos e vermelhos os trajos da bella condessa; pelas janellas do pa o restrugia o rudo da musica e dos saraus; e o solar de Argimiro estava por dentro e por f ra alindado. Um antigo villico do nobre conde fra quem destas mudan as o avisra. Do am-lhe tantos folgares e contentamentos; doa-lhe a honra de seu senhor, pelo que elle via e pelo que se murmurava. Eis-aqui como se pass ra o caso: 7 Longe do condado do illustre baro Argimiro o Negro, para as bandas de Galliza, vivia um nobre gardingo--como quem dissesse infan o--gentil homem e mancebo, chamado Astrigildo o Alvo. Contava vinte e cinco annos; os sonhos das suas noites eram de formosas damas; eram de amores e deleites; mas ao romper da manhan todos elles se desfaziam, que ao sa r ao campo no via sen o pastoras tostadas do sol e das neves, e as servas grosseiras do seu solar. Destas estava elle farto. Mais de cinco tinha enganado com palavras; mais de dez comprado com ouro; mais de outras dez, como nobre e senhor que era, brutamente violado. Com vinte e cinco annos, j no livro da justi a divina se lhe haviam escripto mais de vinte e cinco grandes maldades. Uma noite sonhou Astrigildo que corria serras e valles com a rapidez do vento, montado em onagro silvestre, e que, depois de correr muito, chegava alta noite a um solar, onde pedia agasalho: E que formosa dama o recebia, e que em poucos instantes um do outro se enamorava. Acordou sobresaltado; e durante o dia inteiro no pensou em outra cousa sen o na formosa dama que vra nos sonhos da madrugada. Tres noites se repetia o sonho: tres dias o mancebo scismava. Encostado varanda de um eirado, na tarde do terceiro dia, olhava triste para as montanhas do norte, que via l no horisonte como nuvens pardacentas. O sol come ou a descer no poente, e ainda elle estava embebido em seu melancholico scismar. Por acaso volveu ento os olhos para o terreiro que lhe ficava por baixo: um onagro da floresta estava ahi deitado como se fosse manso jumento: era inteiramente semelhante quelle com que havia sonhado. Sonhos de tres noites a fio no mentem: Astrigildo desceu pressa ao terreiro: o onagro quieto deixou-se enfrear e selar; e a Deus e ventura, o mancebo cavalgou nelle e deitou pela encosta abaixo. Cumpria-se tudo risca: o onagro no corria, voava. Mas o ceu come ou de toldar-se com o anoitecer: a escurido cresceu e desfechou em vento, trov es, chuva e raios. O mancebo comeava a perder o tino, e o onagro dobrava a carreira, e bufava violentamente. Parou, emfim, a horas mortas. Sem saber como, Astrigildo achou-se junto das barreiras de um solar acastellado. Tocou a sua buzina, que deu um som prolongado e tr mulo, porque elle tremia de susto e de frio. Apenas cessou de tocar, a ponte levadia desceu, muitos escudeiros sa ram a recebe-lo entre tochas, e as salas dos paos illuminaram-se. Era que tambem a condessa tinha por tres noites sonhado! * * * * * 8 A clepsidra marca a hora de sexta nocturna, e ainda dura o sarau no solar do conde de Biscaia; porque a nobre condessa e o gentil Astrigildo assistem s danas e jogos dos libertos e servos, que para elles espairecerem folgam l na sala d'armas. Mas n'um aposento baixo do solar um homem est em p com um punhal na mo, olhar furibundo, e o cabello eri ado, parecendo escutar longinqua toada. Outro homem est diante delle dizendo-lhe:--Senhor, ainda n o tempo para punir o grande peccado. Quando elles se recolherem, aquella luz que v des acol ha-de apagar-se: subi ent o, e achareis desempedido o caminho secreto para a camara, que a mesma do vosso noivado." E o que falava saiu, e d'ahi a pouco a luz apagou-se, e o homem dos cabellos hirtos e do olhar esgazeado subiu por uma ingreme e tenebrosa escada. * * * * * 9 Quando pela manhan cedo o conde Argimiro do seu balc o principal ordenava que levassem o corpo da condessa a um mosteiro de Donas, que elle fundra para ahi ter seu moimento, elle e os de sua casa, e dizia aos homens de armas que arrastassem o cadaver de Astrigildo, e o despenhassem de um grande barrocal abaixo, viu um onagro silvestre deitado a um canto do pateo. "Um onagro assim manso cousa que nunca vi:--disse elle ao villico, que estava alli ao p.--Como veio aqui este onagro?" O villico a a responder, quando se ouviu uma voz: dir-se-hia que era o ar que falava. "Foi nelle que veio Astrigildo: ser elle que o levar . Por ti ficaram orphos os filhinhos do onagro, mas por via do onagro ficaste, oh conde, deshonrado. Foste cr com as pobres feras: Deus acaba de vinga-las." "Misericordia!--bradou Argimiro, porque naquelle momento se lembrou da maldicta caada. Neste momento os homens do conde sa am com o cadaver sangrento do mancebo: o onagro, apenas o viu, saltou como um leo no meio da turba, que fez fugir, e segurando com os dentes o morto, arrastou-o para f ra do castello, e, como se tivesse em si uma legio de demonios, foi precipitar-se com elle do barrocal abaixo. Era por isso que o conde a cingido de corda e descalo ap s os frades e a tumba. Queria fazer penitencia no mosteiro por haver quebrado o juramento que tinha feito a seu pae. As almas da condessa e do gardingo cahiram de chofre no inferno por terem deixado a vida em adulterio, que peccado mortal. Desde esse tempo as duas miseraveis almas teem apparecido a muita gente nos desvios da Biscaia: ella vestida de branco e vermelho, assentada nas penhas cantando lindas toadas: elle retou ando ahi perto, na figura de um onagro. Tal foi a historia que o velho abbade contou a meu pae, e que elle me relatou a mim antes de r cumprir sua penitencia nessa guerra de mouros que lhe foi t o fatal." Assim concluiu Inigo Guerra. Brearte, o pagem Brearte, sentia os cabellos arripiarem-se-lhe. Por largo tempo ficou immovel defronte de seu senhor: ambos elles em silencio. O moo rico-homem n o podia engulir bocado. Tirou por fim da escarcela a carta de D. Diogo para a tornar a ler. As miserias e lastimas que ahi recontava eram taes, que D. Inigo sentiu o pranto gotejar-lhe abundante pelas faces abaixo. Ento ergueu-se da mesa para se r deitar. Nem o baro nem o pagem pregaram olho toda a noite; este de medroso, aquelle de desconsolado. E nos ouvidos de Inigo Guerra soavam cont nuo as palavras de Brearte:--Porque no ides serra procurar vossa me?--S por encantamento seria de feito possvel tirar das unhas dos mouros o nobre senhor de Biscaia. Rompeu, finalmente, a alvorada. * * * * * TROVA TERCEIRA 1 Mensageiros ap s mensageiros, cartas sobre cartas so vindos de Toledo a Inigo Guerra. Elrei de Le o resgatava todos os dias seus cavalleiros por cavalleiros mouros; mas no tinha wali ou kaid captivo, que podesse dar em troca por t o nobre senhor como o senhor de Biscaia. E muitos dos redemidos eram das bandas das serras: e estes, trazendo as mensagens, contavam ainda mais lastimas do velho D. Diogo Lopes, do que, se poss vel, essas de que resavam as cartas. " porta do agui o em Toledo--diziam elles--tem a mourisma um grande campo todo mui bem apalancado: aqui fazem grandes festas, guinolas, e touros nos dias dos seus perros sanctos, segundo l lhos pr gam e determinam khatibs e ulems. "Gaiolas de bestas-feras muitas ha ah , cousa mui de vr e pasmar: os tigres e le es no as rompem; romp -las mos de homens, f ra pequice smente o imagina-lo. "N'uma destas pris es, quasi n, com adovas de p s e mos, est o illustre rico-homem, que j foi capit o de grandes e lustrosas mesnadas." "Cortezes costumam ser mouros com seus captivos fidalgos. Fazem esta perraria a D. Diogo Lopes, porque j s o passados tres annos, e no ha v r seu resgate." E os peregrinos que vinham do captiveiro e relatavam taes cousas, bem ceados e agasalhados no castello, iam-se no outro dia com Deus, levando provda a escarcela, e em boa e sancta paz. Quem n o ficava em paz era D. Inigo:--"Porque no vaes tu serra?"--dizia-lhe uma voz ao ouvido.--"Porque no ides procurar vossa m e?"--repetia-lhe o pagem Brearte. Que lhe havia de fazer? Uma noite inteira levou em claro a pensar nisso. Pela manhan, a Deus e sorte, ei-lo que emfim se resolve a tentar a aventura, bem que de seu mau grado. Benzeu-se vinte vezes, para n o ter l de persignar-se. Resou o Pater, a Ave, e o Credo; porque n o sabia se em breve essas ora es seriam cousa de recordar-se. E seguido de um mastim seu predilecto, a p e com um ven bulo na mo, foi-se atrav s das brenhas por uma vereda que dizia para os pincaros tristes e ermos, onde era tradi o que a linda dama linha apparecido a seu pae. 2 Trinam os rouxinoes nos balseiros, murmuram ao longe as aguas dos regatos; ramalha a folhagem brandamente com a vira o da manhan: vae uma linda madrugada. E Inigo Guerra galga manso e manso os carris empinados, trepa de barrocal em barrocal, e apesar de seu muito esforo, sente bater-lhe o cora o com ancia desacostumada. Onde as matas faziam alguma clareira, ou as penhas alguma chapada, D. Inigo parava um pouco tomando o folego, e pondo-se a escutar. Muito havia que andava embrenhado: o sol a alto, e o dia calmoso: ao canto do rouxinol seguira o piar da cigarra. E encontrou uma fonte que rebentava de rochedo negro, e saltando de aresta em aresta vinha cahir em almacega tosca, onde o sol parecia danar no bolir das ondasinhas, que fazia o despenho da cascata. D. Inigo assentou-se sombra da rocha, e tirando a sua monteira matou a sde que trazia, e poz-se a lavar o rosto e a cabe a do suor e p, que n o lhe faltava. O mastim, depois de beber, deitou-se ao p delle, e com a lingua pendente arquejava de cansado. De repente o c o poz-se em p, e arremetteu com um grande ladro. D. Inigo volveu os olhos: um jumento silvestre pascia na orla da clareira juncto de um frondoso carvalho. "Tarik!--gritou o mancebo--Tarik!"--Mas Tarik a avante e no escutava. "Ai, deixa-o correr, meu filho! N o para o teu mastim levar a melhor desse onagro." Isto dizia uma voz que, l em cima no alto da penha, comeou de soar. Olhou: linda mulher estava ahi assentada, e com um gesto amoroso e um sorriso d'anjo para elle se inclinava. "Minha m e! minha me!--bradou Inigo Guerra alevantando-se: e l comsigo dizia: --Vade retro! Sancto Hermenegildo me valha!" E como molhra a cabe a, sentiu que os cabellos se lhe iam alando de arripiados. "Filho, na b ca palavras dces; no cora o palavras damnadas. Mas que importa, se s meu filho? Dize o que queres de mim, que ser tudo feito a teu talante e vontade." O mo o cavalleiro nem acertava a falar com medo. J a este tempo Tarik gemia uivando debaixo dos p s do onagro. "Captivo est de mouros ha annos meu pae D. Diogo Lopes:--disse por fim titubeando.--Quizera me ensinasseis, senhora, o modo como hei-de salva-lo." "Seu mal, t o bem como tu, eu sei. Se podesse ter-lhe-hia accorrido, sem que viesses requere-lo; mas o velho tyranno do ceu quer que elle pene tantos annos quantos viveu com a ... com a que sandeus chamam Dama P-de-Cabra." "N o blasphemeis contra Deus, minha me, que enorme culpa:--interrompeu o mancebo cada vez mais horrorisado. "Culpa?! No ha para mim innocencia nem culpa:--replicou a dama rindo s gargalhadas. Era um rir de dorminte, triste e medonho. Se o diabo ri, como aquelle deve de ser o rir do diabo. O cavalleiro no p de dizer mais palavra. "Inigo!--proseguiu ella--falta um anno para cumprir-se o captiveiro do nobre senhor de Biscaia. Um anno passa depressa: mais depressa eu t'o farei passar. Vs tu aquelle valente onagro? Quando uma noite acordando o achares ao p de ti, manso como um cordeiro, cavalga nelle sem susto, que te levar a Toledo, onde livrar s teu pae.--E bradando accrescentou:--Ests por isto, Pardalo?" O onagro fitou as orelhas, e em signal de approva o come ou a azurrar; comeou por onde s vezes academias acabam.[2] Depois a dama poz-se a cantar uma cantiga de bruxas, acompanhando-se de um psalterio, de que tirava mui estranhas toadas: /* Pelo cabo da vassoura, Pela corda da pol, Pela vibora que v , Pela Sura e pela Toura. Pela vara do condo, Pelo panno da peneira, Pela velha feiticeira, Do finado pela m o, */ /* Pelo bode rei da festa, Pelo capo inteiriado, Pelo infante dessangrado Que a bruxa chupou ssta; Pelo craneo alvo e lustroso Em que sangue se libou, E do irm o, que irmo matou, Pelo arranco doloroso; Pelo nome de mysterio Que em palavras se n o diz Vinde j precitos vis; Vinde ouvir o meu psalterio! E danae-me aqui na terra Uma dan a doudejante, Que entontea n'um instante O meu filho Inigo Guerra. Que elle durma um anno inteiro, Como em somno de uma hora, Juncto fonte que alli chora, Sobre a relva deste outeiro. */ Emquanto a dama cantava estas cantigas, o mancebo sentia um quebramento nos membros que crescia cada vez mais, e que o obrigou a assentar-se. E logo, logo, ouviu-se um ruido abafado como de troves e de ventanias engolfando-se em covoadas: depois o c u comeou de toldar-se, e cada vez era mais cris, at que, emfim, apenas uma luz de crepusculo o allumiava. E a mansa almacega refervia, e os penedos rachavam, e as arvores torciam-se, e os ares sibilavam. E das bolhas da agua da fonte, e das fendas dos rochedos, e d'entre as ramas dos robles, e da vastido do ar via-se descer, subir, romper, saltar ... o qu ?--Cousa muito espantavel. Eram mil e mil braos sem corpos, negros como carv o, tendo nos cotos uma aza, e na mo cada um uma especie de facho. Como a palha que o tuf o levanta na eira, aquella multido de candeias cruzava-se, revolvia-se, unia-se, separava-se, remoinhava, mas sempre com certa cadencia, como que dan ando a compasso. A D. Inigo andava a cabea roda: as luzes pareciam-lhe azues, verdes, e vermelhas, mas corria-lhe pelos membros uma languidez to suave, que n o teve animo para fazer o signal da cruz, e afugentar aquelle bando de Satanazes. E sentia-se esvaecer, e pouco a pouco adormecia, e d'alli a pouco roncava. Entretanto no castello tinham dado pela sua falta. Esperaram-no at a noite; esperaram-no uma semana, um mez, um anno, e n o o viam voltar. O pobre Brearte correu por muito tempo a serra; mas o sitio em que o cavalleiro jazia, isso que n o havia l chegar. 3 Inigo acordou alta noite: tinha dormido algumas horas; ao menos elle assim o cria. Olhou para o c u, viu estrellas: apalpou ao redor, achou terra: escutou, ouviu ramalhar as arvores. Pouco a pouco que se foi recordando do que pass ra com sua malaventurada me; porque a principio n o se lembrava de nada. Pareceu-lhe ento ouvir respirar ali perto: affirmou a vista: era o onagro Pardalo. "J agora meio enfeitiado estou eu--pensou elle:--corramos o resto da aventura, a v r se posso salvar meu pae." E pondo-se em p encaminhou-se para o valente animal, que j estava enfreado e sellado: cujos eram os arreios, isso sabia-o o diabo. Hesitou, todavia, um momento: tinha seus escrupulos--a boas horas vinham elles--de cavalgar naquelle corredor infernal. Ento ouviu nos ares uma voz vibrada, que cantava mui entoado: era a voz da terrivel Dama P -de-Cabra: /* Cavalga, meu cavalleiro, No alentado corredor; Vae salvar o bom senhor; Vae quebrar seu captiveiro. Pardalo, no comer s Nem cevada nem aveia, No ter s jantar nem ceia, Rijo e leve voltars. Nem a oute nem espora Requer elle, oh cavalleiro! Corre, corre bem ligeiro, Noite e dia a toda a hora. Freio ou sella no lhe tires, N o lhe fales, no o ferres, Na carreira n o te aterres, Para traz nunca te vires. */ /* Upa! firme!--vante, vante! Breve, breve, a bom correr! Um minuto no perder, Bem que o gallo ainda n o cante. */ "V!--gritou Inigo Guerra com uma especie de phrenesi, que nelle produz ra aquelle cantar estranho; e d'um pulo cavalgou no quedo onagro. Mas apenas se firmou na sella, pst!--ei-lo que parte! 4 Postoque em paz com os christos, os mouros de Toledo tem pelas torres, cubelos e adarves seus atalaias e vigias, e nos montes que dizem para a fronteira de Le o seus fachos e almenaras. Mas se o rei leonez soubesse como descuidosa jaz Toledo: como ao anoitecer se deixam dormir vigias, se deixam de accender fachos, quebraria seus juramentos, e faria contra aquellas partes uma repentina arrancada. Salvo ter de ir depois ao seu confessor dizer confiteor Deo, e peccavi; porque o quebrar juramento, ainda que seja a ces descridos, dizem ser feio peccado. Era a hora do luscofusco: ao sol posto os de Toledo, mirando para a banda do norte, viram l muito ao longe vir correndo uma nuvem negra, ondeando e fazendo voltas no cu, como a estrada as fazia na terra por entre os montes: dir-se-hia que vinha embriagada. Era primeiro um pontinho; depois cresc ra e crescra: quando anoiteceu estava j perto e cubria um grande espao. O almuhaden, subindo torre da mesquita, chamava os crentes de Malamede para a ora o da tarde. Mas com a sua voz esganiada misturou-se o estourar dos trov es: era como um tiple e um baixo. E passou um tufo de vento, que embrenhando-se e remoinhando nas barbas longas e brancas do almuhaden, lhe fustigou com ellas a cara. Come ou ento a cahir uma corda de chuva, que nem mo os nem velhos se lembravam de ter visto cousa semelhante em nenhuma parte. Aqui verieis os esculcas a aninharem-se nas guaritas das torres; os roldas e sobre-roldas a fugirem pelos adarves; os facheiros a sumirem-se debaixo das almenaras: os hadjis a acolherem-se s mesquitas molhados at os ossos; as velhas, que tinham sado ao vozear do almuhaden, levadas pelas torrentes das ruas tortuosas e estreitas, bradando por Mafoma e por Allah. E a agua cahindo cada vez mais! Dous unicos movimentos fazem ent o os moradores de Toledo: uns fogem, outros agacham-se. E a agua cahindo cada vez mais! O pavor quebra todos os animos: os cacizes esconjuram a procella: os faquires penitentes gritam que se acaba o mundo, e que lhes deixe os seus haveres aquelle que quizer salvar-se. E a agua cahindo cada vez mais! A salva o de Toledo foi no se terem fechado suas portas: se assim n o succedesse, dentro do recincto dos muros morria toda a mourisma affogada. 5 Na priso estava D. Diogo encostado s grades de ferro. O pobre velho entretinha-se a ouvir aquelle medonho chover; porque a noite era comprida, e elle no tinha que fazer mais nada. Mas como o terreiro ante a sua gaiola de feras era rodeado de muros, a chuva n o podia escoar-se toda, e vinha crescendo de modo que j elle sentia os p s molhados. E tambem comeou a ter medo de morrer, apesar da sua miseria. Bem sabia D. Diogo que a morte a maior dellas todas; que no era o senhor de Biscaia atheu, philosopho, nem parvo. Mas l divisa um vulto alvacento, que saltou por cima do palanque; e sente ao mesmo tempo no meio do terreiro--plash!-- E ouviu uma voz que dizia:--Nobre senhor D. Diogo, onde que v s vos achaes!"-- "Que vejo e ouo?!--exclamou o velho.--Um trajo que n o alveja, no trajo d'ismaelita; uma voz que no fala algaravia, n o d'infiel; um salto de tal altura n o de cavalleiro do mundo. Por vossa f dizei-me, sois anjo, ou sois Sanctiago?" "Meu pae, meu pae!--acudiu o cavalleiro--j n o conheceis a fala de Inigo? Sou eu que venho salvar-vos." E D. Inigo descavalgou, e travando das grossas reixas tentava allui-las: a agua dava-lhe j pelos artelhos, e elle n o fazia nada. Cheio de afflic o o mancebo quiz invocar o nome de Jesus; mas lembrou-se de como alli viera, e o bento nome expirou-lhe nos labios. Todavia Pardalo pareceu adivinhar o seu intimo pensamento; porque soltou um gemido agudo e prompto, como se o houvessem tocado com um ferro em braza. E empurrando com a cabea D. Inigo, voltou a anca para a grade. Pan!--foi o som que se ouviu. Com um s couce a reixa estava no cho, e as hombreiras de pedra tinham voado em mil rachas. Quer m'o creiam quer n o, di-lo a historia: eu com isto no perco nem ganho. D. Diogo, esse ficou-o crendo; porque uma lasca de pedra bateu-lhe nos dous ultimos dentes que tinha, e metteu-lh'os pela goela abaixo. Por isso elle com a d r no podia dizer palavra. Seu filho f -lo cavalgar ante si, e cavalgando aps elle, bradou:--Meu pae, estaes salvo!" E Pardalo de um pulo galgou de novo o palanque. Pois tinha bons quinze palmos! Pela manhan no havia signal de chuva; o ar estava limpo e sereno, e quando os mouros foram v r o que succedra a D. Diogo Lopes, n o lhe acharam sequer o rasto. 6 D. Inigo e seu pae, o velho senhor de Biscaia, passam as portas de Toledo com a rapidez da frecha: n'um abrir e fechar d'olhos ficam-lhe para traz muros, torres, barbacans e atalaias. A batega vae diminuindo: rasgam-se as nuvens, e vem-se j reluzir algumas estrellas, que parecem outros tantos olhos com que o cu espreita atrav s do negrume o que se passa c em baixo. A estrada, pelas descidas e subidas dos recostos, converteu-se em leito de torrente, nos plainos converteu-se em lago. Mas pelos lagos e torrentes o valente onagro rompia vante, bufando como um damnado. No subiram bem um monte, j descem pelo outro recosto abaixo; ainda bem no chegaram a uma clareira, j sentem em profunda floresta gotejarem-lhes em cima os ramos agitados das arvores. Pouco mais de meia-noite, e os topos nevados do Vindio recortam o ch o estrellado do cu j limpo, semelhantes aos dentes de uma serra gigante capaz de dividir crceo o hemispherio austral do hemispherio boreal. E Pardalo investe sempre em galope desfeito com as montanhas disformes, e desce aos valles temerosos, e cada vez mais ligeiro, como o seu nome o indica, parece menos quadrupede que passaro. Mas que ruido esse que sobreleva ao do vento? Que isso que, l ao longe, ora alveja ora reluz nas trevas, como uma alcateia de lobos involtos em sudarios brancos, com os olhos s descobertos, e despregando em fio pelo fundo do valle abaixo? um rio caudal e furioso, com o seu manto de escuma, e com as escamas angulosas de seu dorso eriado, onde batem e chispam os raios das estrellas em mil reflexos quebrados. Negreja sobre o rio uma ponte, ao meio desta um vulto esguio.--"Ser um marco, uma estatua?--pensaram os cavalleiros. Pinheiro no p de ser: no consta que em taes sitios nas am. Pardalo ria-se de rios; pontes, fazia tanto cabedal dellas como de um retrao de palha. Todavia, bem que podesse de um pulo salvar vinte ribeiras como aquella, foi-se direito ponte; porque no era animal que fizesse africas escusadas. Semelhante a relampago se arrojou o onagro quelle passo estreito ... Mas, t! ... Ei-lo que de repente p ra. E tremia como varas verdes, e arquejava com violencia: os dous cavalleiros olharam. O vulto esguio era um cruzeiro de pedra alevantado a meia ponte: por isso Pardalo emperrava. Ento d'entre uns altos choupos, que da margem d'al m se meneavam, um pouco mais abaixo daquelle sitio, ouviu-se uma voz fadigosa e trmula que cantava: /* Para traz, para traz, a galgar. J ! De redor, de redor vem passar C! Que n o ha nada aqui que te empea! Buz, Nem palavra, v s dous! Fugi dessa Cruz! */ "Sancto nome de Christo!--exclamou D. Diogo benzendo-se ao escutar aquella voz que bem conhecia, mas que depois de tantos annos no esperava alli ouvir, porque seu filho n o lhe dissera que meio achra para o salvar. Apenas o grito do velho soou, assim elle como D. Inigo foram bater contra o poyal do cruzeiro, onde ficaram de bru os, involtos em lodo. O onagro ao sacudi-los de si soltra um rugido de besta-fera. Sentiram ent o um cheiro intoleravel de enxofre e de carvo de pedra inglez, que logo se percebia ser cousa de Satanaz. E ouviram como um trov o subterraneo; e a ponte balanava como se as entranhas da terra se despeda assem. Apesar do seu grande terror, e de clamar pela Virgem Santissima, D. Inigo abriu um cantinho do olho para vr o que se passava. N s os homens costummos dizer que as mulheres s o curiosas. Ns que o somos. Mentimos como uns desalmados. Que veria o cavalleiro? Um fojo aberto bem proximo delle sobre a ponte, e que depois rompia pela agua. E depois pelo leito do rio; e depois pela terra dentro, dentro; e depois pelo tecto do inferno, que outra cousa no podia ser um fogo muito vermelho que reverberava daquella profundidade. Tanto era assim, que ainda l viu passar de relance um demonio com um desconforme espeto nas mos em que levava um judeu empalado. E Pardalo descia remoinhando por esse boqueir o, como uma penna cahindo em dia sereno do alto de uma torre abaixo. Aquella vista fez perder os sentidos a D. Inigo, que, indo tambem a chamar por Jesus, achou que no podia proferir este nome sagrado. De terror tanto o velho como o mo o ficaram alli em desmaio. Quando tornaram a si, com o romper do sol claro, conheceram o sitio em que se achavam. Era a ponte proxima ald a de Nusturio, no alto da qual campeava o castello construido por D. From o saxonio, avoengo de D. Diogo Lopes, e primeiro senhor de Biscaia. Nenhum vestigio restava do que alli se passra; os dous, mo dos e cheios de lodo e pisaduras, foram-se arrastando como poderam at encontrar alguns vill os, a quem se deram a conhecer, e que os levaram a casa. Festas que em Nusturio se fizeram por sua vinda, cousa que n o vos direi; porque no tarda a hora de ceiar, resar, e deitar. 7 D. Diogo pouco tempo viveu: todos os dias ouvia missa; todas as semanas se confessava. D. Inigo, por m, nunca mais entrou na igreja, nunca mais resou, e no fazia sen o ir serra ca ar. Quando tinha de partir para as guerras de Leo viam-no subir montanha armado de todas as peas, e voltar de l montado n'um agigantado onagro. E o seu nome retumbou em toda a Hespanha; porque no houve batalha em que entrasse que se perdesse, e nunca em nenhum recontro foi ferido ou derribado. Diziam bca pequena em Nusturio que o illustre bar o tinha pacto com Belzebuth. Olhem que era grande milagre! Meio precto era elle por sua m e; no tinha que vender sen o a outra metade da alma. Por oitenta por cento de lucro ne recibo de um egresso a d ahi inteira ao d mo qualquer onzeneiro, e cr ter feito uma limpa veniaga. Fosse como fosse, Inigo Guerra morreu velho: o que a historia n o conta o que ent o se passou no castello. Como no quero improvisar mentiras, por isso n o direi mais nada. Mas a misericordia de Deus grande. cautela resem por elle um Pater e um Ave. Se no lhe aproveitar, seja por mim. Amen. * * * * * [1] Um jumento silvestre n o seria mui delicado manjar para mesa moderna; mas o uso da carne asinina na idade mdia era vulgar: ainda em muitos dos nossos foraes apparece marcado entre as portagens o quanto devia pagar este genero de vianda. [2] O Diccionario da Academia, que ficou interrompido no fim da letra A, acaba na palavra azurrar. O BISPO NEGRO (1130) 1 Houve tempo em que a s abandonada de Coimbra era formosa; houve tempo em que essas pedras, ora tisnadas pelos annos, eram ainda pallidas, como as margens areentas do Mondego[1]. Ento o luar, batendo nos lan os dos seus muros, dava um reflexo de luz suavissima, mais rica de saudade que os proprios raios daquelle planeta guardador dos segredos de tantas almas, que crem existir nelle, e s nelle, uma intelligencia que as perceba. Ento aquellas ameias e torres n o haviam sido tocadas das mos de homens, desde que os seus edificadores as tinham collocado sobre as alturas; e todavia j ento ningu m sabia se esses edificadores eram da nobre raa goda, se da dos nobres conquistadores arabes. Mas, quer filha dos valentes do norte, quer dos pugnacissimos sarracenos, ella era formosa na sua singella grandeza entre as outras s s das Hespanhas. Ahi succedeu o que ora ouvireis contar. 2 Aproximava-se o meiado do duodecimo seculo. O principe de Portugal Affonso Henriques depois de uma revolu o feliz, tinha arrancado o poder das mos de sua m e. Se a historia se contenta com o triste espectaculo de um filho condemnando ao exilio aquella que o gerou, a tradi o carrega as tinctas do quadro, pintando-nos a desditosa viuva do conde Henrique arrastando grilhes no fundo de um calabou o. A historia conta-nos o facto; a tradi o os costumes. A historia verdadeira, a tradi o verosimil; e o verosimil o que importa ao que busca as lendas da patria. Em uma das torres do velho alcacer de Coimbra, encostado entre duas ameias, a horas que o sol fugia do horisonte, o principe conversava com Loureno Viegas o Espadeiro, e com elle dispunha meios e apurava tra as para guerrear a mourisma. E lanou casualmente os olhos para o caminho que guiava ao alcacer, e viu o bispo D. Bernardo, que, montado em sua nedia mula, cavalgava apressado pela encosta acima. "V des vs--disse elle ao Espadeiro--o nosso leal D. Bernardo, que para c se encaminha? Negocio grave por certo o faz sair a taes deshoras da crasta da sua s. Des amos sala d'armas e vejamos o que elle quer."--E desceram. Grandes lampadarios ardiam j na sala d'armas do alcacer de Coimbra, pendurados de cadeias de ferro chumbadas nos fechos dos arcos de volta de ferradura, que sustentavam os tectos de grossa cantaria. Pelos feixes de columnas delgadas, entre si separadas, mas ligadas nos fustes por uma base commum, pendiam corpos de armas, que reverberavam a luz das lampadas, e pareciam cavalleiros armados, que em silencio guardavam aquelle amplo aposento. Alguns homens de mesnada faziam retumbar as abobadas, passeando de um para outro lado. Uma portinha, que ficava em um angulo da quadra, abriu-se, e d'ella saram o principe e Louren o Viegas, que desciam da torre: quasi ao mesmo tempo assomou no grande portal de entrada o vulto veneravel e solemne do bispo D. Bernardo. "Guarde-vos Deus, bispo de Coimbra! Que mui urgente negocio vos traz aqui esta noite?--disse o principe a D. Bernardo. "Ms novas, senhor. Trazem-me aqui a mim letras do papa, que ora recebi." "E que quer de v s o papa?" "Que de sua parte vos ordene solteis vossa me..." "Nem pelo papa, nem por ninguem o farei." "E manda-me que vos declare excommungado, se n o quizerdes cumprir seu mandado." "E vs que intentaes fazer?" "Obedecer ao successor de S. Pedro." "Qu ? D. Bernardo amaldioaria aquelle a quem deve o bago pontifical; aquelle que o alevantou do nada? V s, bispo de Coimbra, excommungarieis o vosso principe, porque elle no quer p r a risco a liberdade desta terra remida das oppresses do senhor de Trava, e do jugo do rei de Le o; desta terra que s minha e dos cavalleiros portuguezes?" "Tudo vos devo, senhor,--atalhou o bispo--salvo minha alma que pertence a Deus, minha f que devo a Christo, e a minha obediencia que guardarei ao papa." "D. Bernardo! D. Bernardo!--disse o principe suffocado em colera--lembrae-vos de que affronta que se me fizesse, nunca ficou sem paga!" "Quereis, senhor infante, soltar vossa m e?" "No! Mil vezes n o!" "Guardae-vos!" E o bispo sau sem dizer mais palavra. Affonso Henriques ficou pensativo por algum tempo; depois falou em voz baixa com Louren o Viegas o Espadeiro, e encaminhou-se para a sua camara. D'ahi a pouco o alcacer de Coimbra jazia, como o resto da cidade, no mais profundo silencio. 3 Pela alvorada, muito antes de romper o sol no dia seguinte, Loureno Viegas passeava com o principe na sala d'armas do pa o mourisco. "Se eu proprio o vi, montado na sua boa mula, ir l muito ao longe, caminho da terra de Sancta Maria[2]! Na porta da s estava pregado um pergaminho com larga escriptura, que, segundo me affirmou um clerigo velho que ahi chegra quando eu olhava para aquella carta, era o que elles chamam o interdicto.--Isto dizia o Espadeiro, olhando para todos os lados, como quem receiava que alguem o ouvisse. "Que receias, Louren o Viegas? Dei a Coimbra um bispo que me excommunga, porque assim o quiz o papa: dar-lhe-hei outro que me absolva, porque assim o quero eu. Vem comigo s . Bispo D. Bernardo, tarde ser o arrepender-te da tua ousadia!" D'alli a pouco as portas da s estavam abertas, porque o sol era nado, e o principe, acompanhado de Loureno Viegas e de dous pagens, atravessava a igreja, e dirigia-se crasta, onde ao som de campa tangida tinha mandado ajunctar o cabido, com pena de morte para o que ahi faltasse. 4 Solemne era o espectaculo que apresentava a crasta da s de Coimbra. O sol dava com todo o brilho de manhan purissima por entre os pilares que sustinham as abobadas dos cubertos, que cercavam o pateo interior. Ao longo desses cubertos caminhavam os conegos com passos lentos, e as largas roupas ondeavam-lhes ao bafo suave do vento matutino. No topo da crasta estava o principe em p , encostado ao punho da espada, e um pouco atras delle Loureno Viegas e os dous pagens. Os conegos am chegando, e formavam um semicirculo a pouca distancia d'elrei, em cuja cervilheira de malha de ferro ferviam buliosos os raios do sol. Toda a clerezia da s estava alli apinhada, e o principe, sem dar palavra e com os olhos fitos no cho, parecia involto em fundo pensar. O silencio era completo. Por fim Affonso Henriques ergueu o rosto carrancudo e amea ador, e disse: "Conegos da s de Coimbra, sabeis a que vem aqui o infante de Portugal?" Ninguem respondeu palavra. "Se o n o sabeis, dir-vo-lo-hei eu,--proseguiu o principe:--vem assistir elei o do bispo de Coimbra." "Senhor, bispo havemos. N o cabe ahi nova elei o--disse o mais velho e auctorisado dos conegos que estavam presentes, e que era o adayo. "Amen:--responderam os outros. "Esse que v s dizeis;--bradou o infante, cheio de colera--esse jamais o ser. Tirar-me quiz elle o nome de filho de Deus; eu lhe tirarei o nome de seu vigario. Juro que nunca em meus dias por D. Bernardo ps em Coimbra: nunca mais da cadeira episcopal ensinar um rebelde a f das sanctas escripturas! Elegei outro: eu approvarei vossa escolha." "Senhor, bispo havemos. N o cabe ahi nova elei o:--repetiu o adayo. "Amen:--responderam os mais. O furor de Affonso Henriques subiu de ponto com esta resistencia:--"Pois bem!--disse elle, com a voz presa na garganta, depois de um olhar terrivel que lan ou pela assembla, e de alguns momentos de silencio.--Pois bem! Sa d'aqui, gente orgulhosa e m! Sa , vos digo eu. Alguem por vs eleger um bispo..." Os conegos, fazendo profundas reverencias, encaminharam-se para as suas cellas, ao longo das arcarias da crasta. Entre os que alli se achavam, um negro, vestido de habitos clericaes, tinha estado encostado a um dos pilares, observando aquella scena: os seus cabellos revoltos contrastavam pela alvura com a pretido da tez. Quando o principe falava, elle sorria-se e meneava a cabe a como quem approvava o dicto. Os conegos comeavam a retirar-se, e o negro a apoz elles. Affonso Henriques fez-lhe um signal com a mo. O negro voltou para tr s. "Como has nome?--perguntou-lhe o principe. "Senhor, hei nome olleima.[3]" " s bom clerigo?[4]" "Na companhia no ha dous que sejam melhores." "Bispo ser s, D. olleima. Vae tomar teus guisamentos, que hoje me cantar s missa." O clerigo recuou: naquella face tisnada viu-se uma contrac o de susto. "Missa no vos cantarei eu, senhor:--respondeu o negro com voz tr mula;--que para tal auto no tenho as ordens requeridas." "D. olleima, repara bem no que te digo! Sou eu que te mando vs vestir as vestiduras de missa. Escolhe: ou hoje tu subir s os degraus do altar-mr da s de Coimbra, ou a cabea te descer de cima dos hombros, e rolar pelas lageas deste pavimento." O clerigo curvou a fronte. "Kirie-eleyson ... Kirie-eleyson ... Kirie-eleyson!--garganteava d'ahi a pouco D. olleima, revestido dos habitos episcopaes, juncto ao altar da capella-mr. O infante Affonso Henriques, o Espadeiro e os dous pagens, de joelhos, ouviam missa com profunda devo o. 5 Era noite. Em uma das salas mouriscas dos nobres paos de Coimbra havia grande sarau. Donas e donzellas, assentadas ao redor do aposento, ouviam os trovadores repetindo ao som da viola e em tom monotono suas magoadas endechas, ou folgavam e riam com os arremedilhos satyricos dos tru es e farcistas. Os cavalleiros em p, ou falavam de aventuras amorosas, de justas e de bofordos, ou de fossados e lides por terras de mouros fronteiros. Para um dos lados, por m, entre um labyrintho de columnas, que davam sada para uma galeria exterior, quatro personagens pareciam entretidas em negocio mais grave do que os prazeres de noite de folguedo o permittiam. Eram estas personagens Affonso Henriques, Gon alo Mendes da Maia, Loureno Viegas, e Gon alo de Sousa o Bom. Os gestos dos quatro cavalleiros davam mostras de que elles estavam vivamente agitados. " o que affirma, senhor, o mensageiro--dizia Gon alo de Sousa--que me enviou o abbade do mosteiro de Tibes, onde o cardeal dormiu uma noite para n o entrar em Braga. Dizem que o papa o envia a vs, porque vos supp e hereje. Em todas as partes por onde o legado passou, em Frana e em Hespanha, vinham a lhe beijar a m o reis, principes e senhores: a elei o de D. olleima n o pde por certo ir vante..." "Ir, ir !--respondeu o principe em voz to alta que as suas palavras reboaram pelas abobadas do vasto aposento.--Que o legado tenha tento em si! N o sei eu se haveria ahi cardeal, ou apostolico[5] que me estendesse a mo para eu lh'a beijar, que pelo cotovello lh'a n o cortasse fra a minha boa espada. Que me importam a mim vilezas dos outros reis e senhores? Vilezas, n o as farei eu!" Isto foi o que se ouviu daquella conversa o: os tres cavalleiros falaram com o principe ainda por muito tempo: mas em voz to baixa, que ninguem percebeu mais nada. 6 Dous dias depois o legado do papa chegava a Coimbra: mas o bom do cardeal tremia em cima da sua nedia mula, como se maleitas o houveram tomado. As palavras do infante tinham sido ouvidas por muitos, e alguem as havia repetido ao legado. Todavia, apenas passou a porta da cidade, revestindo-se de animo, encaminhou-se direito ao alcacer real. O principe sa u a recebe-lo acompanhado de senhores e cavalleiros. Com modos cortezes guiou-o sala de seu conselho, e ahi se passou o que ora ouvireis contar. O infante estava assentado em uma cadeira de espaldas: diante delle o legado em um assento raso, posto em cima de um estrado mais elevado: os senhores e cavalleiros cercavam o filho do conde Henrique. "Dom cardeal,--come ou o principe--que viestes vs fazer a minha terra? Posto que de Roma s mal me tenha vindo, creio me trazeis agora algum ouro, que de seus grandes haveres me manda o senhor papa para estas hostes que fao, e com que guerreio noite e dia os infi is da frontaria. Se isto trazeis, acceitar-vo-lo-hei: depois, desembaraadamente podeis seguir vossa viagem." No animo do legado a colera sobrepujou o temor, quando ouviu as palavras do principe, que eram de amargo escarneo. "N o a trazer-vos riquezas,--atalhou elle--mas a ensinar-vos a f vim eu; que della parece vos esquecestes, tractando violentamente o bispo D. Bernardo, e pondo em seu logar um bispo sagrado com vossas manoplas, victoriado s por vs com palavras blasphemas e maldictas..." "Calae-vos, dom cardeal,--gritou Affonso Henriques--que ment s pela gorja! Ensinar-me a f?! T o bem em Portugal como em Roma sabemos que Christo nasceu da Virgem; to certo como v s outros romos cremos na sancta Trindade. Se a outra cousa vindes, manhan vos ouvirei: hoje podeis-vos ir." E ergueu-se: os olhos chammejavam-lhe de furor. Toda a ousadia do legado desappareceu como fumo, e, sem atinar com resposta, sau do alcacer. 7 O gallo tinha cantado tres vezes: pelo arrebol da manhan o cardeal partia aforradamente de Coimbra, cujos habitantes dormiam ainda repousadamente. O principe foi um dos que despertaram mais tarde. Os sinos harmoniosos da s costumavam acorda-lo tocando s ave-marias: mas naquelle dia ficaram mudos; e quando elle se ergueu havia mais de uma hora que o sol subia para o alto dos ceus da banda do oriente. "Misericordia! misericordia!--gritavam devotamente homens e mulheres porta do alcacer, com alarido infernal. O principe ouviu aquelle ruido. "Que vozes s o estas que soam?--perguntou elle a um pagem. O pagem respondeu-lhe chorando: "Senhor, o cardeal excommungou esta noite a cidade, e partiu: as igrejas esto fechadas; os sinos j no ha quem os toque; os clerigos fecham-se em suas pousadas. A maldic o do sancto padre de Roma cahiu sobre nossas cabe as." Outra vez soou porta do alcacer:--Misericordia! Misericordia!" "Que enfreiem e selem um cavallo de batalha. Pagem, que enfreiem e selem o meu melhor corredor!" Isto dizia o principe, encaminhando-se para a sala d'armas. Ahi envergou pressa um saio de malha, e pegou em um montante, que apenas dous portuguezes dos de hoje valeriam a alevantar do cho. O pagem tinha sa do, e d'alli a pouco o melhor cavallo de batalha que havia em Coimbra tropeava e rinchava porta do alcacer. 8 Um clerigo velho, montado em uma alentada mula branca, vindo de Coimbra seguia o caminho da Vimieira, e de instante a instante espica ava os ilhaes da cavalgadura com seus acicates de prata: em duas outras mulas am ao lado delle dous mancebos com caras e meneios de beatos, vestidos de opas e tonsurados, mostrando em seu porte e idade que aprendiam ainda as pueris ou ouviam as grammaticaes[6]. Eram o cardeal, que se a a Roma, e dous sobrinhos seus que o haviam acompanhado. Entretanto o principe partra de Coimbra s sinho. Quando pela manhan Gonalo de Sousa e Louren o Viegas o procuraram em seus paos, souberam que era partido ap s o legado. Temendo o caracter violento de Affonso Henriques, os dous cavalleiros seguiram-lhe a pista redea solta, e am j muito longe quando viram o p que elle levantava correndo ao longo da estrada, e o scintillar do sol batendo-lhe de chapa na cervilheira semelhante ao dorso de um crocodilo. Os dous fidalgos esporearam com mais fora os ginetes e breve alcan aram o infante. "Senhor, senhor, aonde ides sem vossos leaes cavalleiros, to cedo e a odadamente?" "Vou pedir ao legado do papa que se amerce de mim..." A estas palavras os cavalleiros transpunham uma assomada que encobria o caminho: pela encosta abaixo a o cardeal com os dous mancebos das opas e cabellos tonsurados. "Oh!..--disse o principe. Esta unica interjei o lhe fugiu da bca; mas que discurso houvera ahi que a igualasse? Era o rugido de prazer do tigre, no momento em que salta do fojo sobre a pr a descuidada. "Memento mei, Domine, secundm magnam misericordiam tuam!--resou o cardeal em voz baixa e tr mula, quando ouvindo o tropear dos cavallos, voltou os olhos, e conheceu Affonso Henriques. Em um instante este o havia alcanado. Ao perpassar por elle, travou-lhe do cabe o do vestido, e em um relance ergueu o montante: felizmente os dous cavalleiros arrancaram as espadas, e cruzaram-nas debaixo do golpe que j descia sobre a cabea do legado: os tres ferros feriram fogo; mas a pancada deu em v o, alis o craneo do pobre clerigo teria ido fazer mais de quatro redemoinhos nos ares. "Senhor, que vos perdeis, e nos perdeis, ferindo o ungido de Deus:--gritaram os dous fidalgos com vozes afflictas. "Principe--disse o velho chorando--n o me faas mal; que estou tua merc!"--Os dous mancebos tambem choravam. Affonso Henriques deixou descahir o montante, e ficou em silencio alguns momentos. "Est s minha merc :--disse elle por fim.--Pois bem! Vivers, se desfizeres o mal que causaste. Que seja alevantada a excommunh o lanada sobre Coimbra, e jura-me em nome do apostolico, que nunca mais em meus dias ser posto interdicto nesta terra portugueza, conquistada aos mouros por preo de tanto sangue. Em refens deste pacto ficar o teus sobrinhos. Se no fim de quatro mezes de Roma no vierem letras de ben am, tem tu por certo que as cabeas lhes voar o de cima dos hombros. Apraz-te este contracto?" "Senhor, sim!--respondeu o legado com voz sumida. "Juras?" "Juro." "Mancebos, acompanhae-me," Dizendo isto, o infante fez um aceno aos sobrinhos do legado, que com muitas lagrymas se despediu delles, e ssinho seguiu o caminho da terra de Sancta Maria. D'ahi a quatro mezes D. Colleima dizia missa pontifical na capella-m r da s de Coimbra, e os sinos da cidade repicavam alegremente. Tinham chegado letras de ben am de Roma; e os sobrinhos do cardeal, montados em boas mulas, am cantando devotamente pelo caminho da Vimieira o psalmo que come a: In exitu Israel de gypto. Conta-se, todavia, que o papa lev ra a mal no principio, o pacto feito pelo legado; mas que por fim tivera d do pobre velho, que muitas vezes lhe dizia: "Se tu, sancto padre, v ras sobre ti um cavalleiro to bravo ter-te pelo cabe o, e a espada nua para te cortar a cabe a; e seu cavallo to feroz arranhar a terra, que j te fazia a cova para te enterrar, no s mente deras as letras, mas o papado e a cadeira apostolical." * * * * * NOTA. A lenda precedente tirada das chronicas de Acenheiro, rol de mentiras e disparates publicado pela nossa Academia, que teria procedido mais judiciosamente em deixa-las no p das bibliothecas, onde haviam jazido em paz por quasi tres seculos. A mesma lenda tinha sido inserida pouco anteriormente na chronica de Affonso Henriques por Duarte Galvo, formando a substancia de quatro capitulos, que foram supprimidos na edi o deste auctor, e que mereceram da parte do academico D. Francisco de S. Luiz uma grave refuta o. Toda a narrativa da pris o de D. Theresa, das tentativas opposicionistas do bispo de Coimbra, da elei o do bispo negro, da vinda do cardeal, e da sua fuga contrastam a historia daquella epocha. A tradi o falsa a todas as luzes: mas tambem certo que ella se originou de algum acto de violencia praticado nesse reinado contra algum cardeal legado. Um historiador coevo, e, posto que estrangeiro, bem informado geralmente cerca dos successos do nosso paiz, o inglez Rogerio de Hoveden, narra um facto acontecido em Portugal, que, pela analogia que tem com o conto do bispo negro, mostra a origem da fabula. A narrativa do chronista est indicando que o acontecimento fizera certo rudo na Europa, e a propria confus o de datas e de individuos, que apparece no texto de Hoveden, mostra que o successo era anterior e andava j alterado na tradi o. O que certo que o achar-se esta conservada f ra de Portugal desde o seculo duodecimo por um escriptor que Ruy de Pina e Acenheiro no leram (porque s foi publicado no seculo decimo-setimo) prova que ella remonta entre ns, por maioria de raz o, tambem ao seculo duodecimo, embora desfigurada como j a vemos no chronista inglez. Eis a notavel passagem a que alludimos, e que se l a pag. 640 da edi o de Hoveden, por Savile: "No mesmo anno (1187) o cardeal Jacintho, ento legado em toda a Hespanha, dep s muitos prelados (abbates) ou por culpas delles ou por impeto proprio, e como quizesse depr o bispo de Coimbra, o rei Affonso (Henriques) n o consentiu que elle fosse deposto, e mandou ao dicto cardeal que sasse da sua terra, quando n o cortar-lhe-hia um p." * * * * * [1] A s velha de Coimbra no todo, ou na maxima parte uma edifica o dos fins do seculo duodecimo; mas acceit mos aqui a tradi o que lhe attribue uma remotissima antiguidade. [2] Hoje Terra da Feira, proxima do Porto, na estrada de Coimbra. [3] notavel coincidencia a seguinte: Em 1088 um presbytero, por nome Zoleima, fez uma doa o s de Coimbra. Desta doa o se lembra Fr. Antonio Brando M. L. P. 3. L. 8.? Cap. 5. pag. 13 col. 2. in fine. [4] Clerigo naquella epocha no significava s o ecclesiastico revestido do sacerdocio, mas sim qualquer individuo empregado no servio do culto. D'ahi a frequente men o nos documentos, de clerigos casados. [5] Papa. [6] Estudos menores ou preparatorios. Assim parece se chamavam na idade m dia. Darin lernt ich puerilia, diz Hans Sachs no seu Lebensbeschreibung, e o bispo do Porto, D. Pedro Affonso, affirma de seu predecessor D. Joo Gomes: erat bonus homo, et sin aliqua malitia, sed jura aliqua non audiverat, imm nec grammaticalia, quod est plus. A MORTE DO LIDADOR (1170) 1 "Pagens! que arreiem o meu ginete murzello; e v s dae-me o meu lorigo de malha de ferro, e a minha boa toledana. Senhores cavalleiros, hoje contam-se noventa e cinco annos que recebi o baptismo, oitenta que visto armas, setenta que sou cavalleiro, e quero celebrar tal dia fazendo uma entrada por terras da frontaria dos mouros." Isto dizia na sala de armas do castello de B ja Gonalo Mendes da Maia, a quem, pelas muitas batalhas que pelej ra, e por seu valor indomavel chamavam o Lidador. Affonso Henriques, depois do infeliz successo de Badajoz, e feitas pazes com elrei de Leo, o nome ra fronteiro da cidade de Bja, de pouco conquistada aos mouros. Os quatro Viegas, filhos do bom velho Egas Moniz, estavam com elle, e outros muitos cavalleiros afamados, entre os quaes D. Ligel de Flandres, e Mem Moniz, tio dos quatro Viegas. "A la f --disse Mem Moniz---que a festa de vossos annos, senhor Gonalo Mendes, ser mais de mancebo cavalleiro, que de capito encanecido e prudente. Deu-vos elrei esta frontaria de B ja para bem a haverdes de guardar, e no sei eu se arriscado sar hoje campanha, que dizem os escutas, chegados ao romper d'alva, que o famoso Almoleimar corre por estes arredores com dez vezes mais lanas do que todas as que est o encostadas nos lanceiros desta sala de armas." "Voto a Christo--atalhou o Lidador--que no cria eu que o senhor rei me houvesse posto nesta torre de B ja para estar assentado lareira da chamin , como uma velha dona, a espreitar de quando em quando por uma steira, se cavalleiros mouros vinham correr t a barbacan, para lhes cerrar as portas, e ladrar-lhes do cimo da torre da menagem, como usam os villos. Quem achar que s o duros de mais os arnezes dos infiis p de ficar-se aqui." Bem dicto! bem dicto!--clamaram, dando grandes risadas, os cavalleiros mancebos. "Por minha boa espada!--gritou Mem Moniz, atirando com o guante-ferrado s lageas do pavimento--que mente pela gorja quem disser que eu ficarei aqui, havendo dentro de dez leguas em redor lide com mouros. Senhor Gon alo Mendes, podeis montar em vosso ginete, e veremos qual das nossas lanas bate primeiro em adarga mourisca." "A cavallo, a cavallo!--gritou outra vez a chusma, com grande alarido. D'alli a pouco ouvia-se o retumbar dos sapatos de ferro de muitos cavalleiros descendo os degraus de marmore da torre de B ja, e passados alguns instantes soava s o tropear dos cavallos atravessando a ponte levadi a das fortifica es exteriores, que davam para a banda da campanha, por onde costumava apparecer a mourisma. 2 Era um dia do mez de Julho, duas horas depois da alvorada, e tudo estava em grande silencio dentro da cerca de Bja: batia o sol nas pedras esbranqui adas dos muros e torres que a defendiam: ao longe, pelas immensas campinas, que avizinham o teso, sobre que a povoa o est assentada, viam-se ondear as searas maduras, cultivadas por m os de agarenos para seus novos senhores christos. Regados por lagrymas de escravos tinham sido esses campos quando em formoso dia de inverno os sulcou o ferro do arado; por lagrymas de servos seriam outra vez humedecidos, quando no mez de Agosto a paveia, cerceada pela fouce, pendesse sobre a mo do ceifeiro: ch ro de amargura havia ahi, como cinco seculos antes o houvera: ento de christ os conquistados, hoje de mouros vencidos. A cruz basteava-se outra vez sobre o crescente quebrado; os corucheus das mesquitas convertiam-se em campanarios de ss, e a voz do almuhaden trocava-se por toada de sinos, que chamavam ora o entendida por Deus. Era esta a resposta dada pela raa goda aos filhos d'Africa e do Oriente, que diziam mostrando os alfanges:-- nossa a terra de Hespanha.--O dicto do arabe foi desmentido; mas a resposta gastou oito seculos a escrever-se: Pelaio entalhou com a espada a primeira palavra della nos cerros das Asturias; a ultima gravaram-na Fernando e Isabel com os pelouros de suas bombardas nos pannos das muralhas da formosa Granada: e a esta escriptura, estampada em alcantis de montanhas, em campos de batalha, nos portaes e torres dos templos, nos lanos dos muros das cidades e castellos, accrescentou no fim a m o da providencia:--assim para todo o sempre!" Nesta lucta de vinte gera es andavam lidando as gentes do Alemtejo. O servo mouro olhava todos os dias para o horisonte, onde se enxergavam as serranias do Algarve: de l esperava elle salva o, ou ao menos vingan a; ao menos um dia de combate, e corpos de christos estirados na veiga para pasto dos a ores bravios. A vista do sangue enxugava-lhes por algumas horas as lagrymas, embora os valentes d'Africa houvessem de fugir vencidos; embora as aves de rapina tivessem tambem abundante ceva em cadaveres de seus irmos! E este ameno dia de julho devia ser um desses dias porque suspirava o servo ismaelita. Almoleimar desc ra com seus cavalleiros s campinas de B ja. Pelas horas mortas da noite viam-se as almenras das suas atalaias nos pincaros das serras remotas, semelhantes s luzinhas, que em descampados e tremedaes accendem as bruxas em noites de seus folguedos; bem longe stavam as almen ras, mas bem perto sentiam os escutas o resfolegar e o tropear de cavallos, e o ranger de folhas seccas, e o tinir a espaos de alfange batendo em ferro de canelleira, ou de coxote. Ao romper d'alva os cavalleiros do Lidador sa am mais de dous tiros de bsta alem das velhas muralhas de B ja; tudo, porm, estava em silencio, e s aqui e alli as searas calcadas davam rebate de que por aquelles sitios tinham vagueado almogaures mouros, como o leo do deserto rodeia pelo quarto de modorra as habita es dos pastores alem das encostas do Atlas. No dia em que Gon alo Mendes da Maia, o velho fronteiro de Bja, cumpria os noventa e cinco annos, ninguem sa ra, pelo arrebol da manhan, a correr o campo; e, todavia, nunca to de perto cheg ra Almoleimar; porque uma frecha fra pregada mo em um grosso carvalho, que sombreava uma fonte, a pouco mais de tiro de funda dos muros do castello. Era que nesse dia deviam ir mais longe os cavalleiros christ os: o Lidador pedra aos pagens o seu lorig o de malha de ferro, e a sua boa toledana. 3 Trinta fidalgos, flor da cavallaria, corriam redea solta pelas campinas de B ja; trinta, no mais, eram elles; mas or avam por trezentos os homens d'armas, escudeiros e pagens que os acompanhavam. Entre todos avultava em robustez e grandeza de membros o Lidador, cujas barbas brancas lhe ondeavam como frocos de neve sobre o peitoral da cota d'armas, e o terrivel Loureno Viegas, a quem pelos espantosos golpes da sua espada chamavam o Espadeiro. Era formoso espectaculo e esvoa ar dos balses e signas, f ra de suas fundas, e soltos ao vento, o scintillar das cervilheiras, as cores variegadas das cotas, e as ondas de p, que se alevantavam debaixo dos p s dos ginetes, como as alevanta o bulco de Deus, varrendo a face da campina resequida, em tarde ardente de ver o. Ao largo, muito ao largo, dos muros de Bja. vai a atrevida cavalgada em demanda dos mouros; e no horisonte n o se vem sen o os topos pardo-azulados das serras do Algarve, que parece fugirem tanto quanto os cavalleiros caminham. Nem um pendo mourisco, nem um albornoz branco alveja ao longe sobre um cavallo murzello. Os corredores christ os volteiam na frente da linha dos cavalleiros, correm, cruzam para um e outro lado, embrenham-se nos matos, e transpem-nos em breve; entram pelos cannaviaes dos ribeiros; apparecem, somem-se, tornam a sa r ao claro: mas no meio de tal lidar apenas se ouve o trote compassado dos ginetes, e o grito monotono da cigarra, pousada nos raminhos da giesteira. A terra que pisam j de mouros; j alm da frontaria. Se olhos de cavalleiros portuguezes soubessem olhar para tr s indo em som de guerra, os que para trs de si os volvessem a custo enxergariam B ja. Bastos pinhaes comeavam j a cobrir mais ondeado territorio, cujos outeirinhos aqui e alli se alteavam suaves como seio de virgem em vio de mocidade. Pelas faces tostadas dos cavalleiros cobertos de p corria o suor em bagas, e os ginetes alagavam de escuma as redes de ferro acaireladas de ouro, que os defendiam. A um signal do Lidador a cavalgada parou; era necessario repousar, que o sol a no zenith e abrazava a terra: descavalgaram todos sombra de um azinhal, e sem desenfrear os ginetes deixaram-nos pascer alguma relva, que crescia nas bordas de um arroio vizinho. Tinha passado meia hora: por mandado do velho Fronteiro de Bja um almogavar montou a cavallo, e aproximou-se rdea solta de uma selva extensa, que corria mo direita: pouco, por m, correu; uma frecha despedida dos bosques sibilou no ar: o almogavar gritou por Jesus: a frecha tinha-se-lhe embebido no lado: o cavallo parou de repente, e elle, erguendo os braos ao ar com as m os abertas, cahiu de bruos, tombando para o ch o, e o ginete partiu desenfreado atravs das veigas, e desappareceu na selva. O almogavar dormia o ultimo somno dos valentes em terra de inimigos, e os cavalleiros da frontaria de B ja viram o seu trance do repousar eterno. "A cavallo! a cavallo!--bradou a uma voz toda a lustrosa companhia do Lidador; e o tinido dos guantes ferrados, batendo na cobertura de malha dos ginetes, soou unisono, quando todos os cavalleiros cavalgaram de um pulo: e os ginetes rincharam de prazer, como aspirando os combates. Uma grita medonha troou ao mesmo tempo alm do pinhal da direita.--"Allah! Almoleimar!--era o que dizia a grita. Enfileirados em uma longa linha, os cavalleiros arabes sa ram r dea solta de trs da escura selva que os encubria: o seu numero excedia cinco vezes o dos soldados da cruz: as suas armaduras lisas e polidas contrastavam com a rudeza das dos christ os, apenas defendidos por pesadas cervilheiras de ferro, e por grossas cotas de malha do mesmo metal: mas as lanas destes eram mais robustas, e as suas espadas mais volumosas do que as cimitarras mouriscas. A rudeza e a for a da raa gothico-romana am ainda mais uma vez provar-se com a destreza e com a percia arabes. Como uma longa fita de muitas c res, recamada de fios d'ouro, e reflectindo ao longe mil accidentes de luz, a extensa e profunda linha dos cavalleiros mouros sobresaa na veiga entre as searas pallidas que cubriam o campo: defronte delles os trinta cavalleiros portuguezes, com trezentos homens d'armas, pagens, e escudeiros cubertos dos seus escuros involtorios, e lan as em riste, esperavam o brado de accommetter. Quem visse aquelle punhado de christos, diante da copia d'infi is que os esperavam, diria que, no com brios de cavalleiros, mas com fervor de martyres, se offereciam a desesperado trance. Por m, no pensava assim Almoleimar, nem os seus soldados, que bem conheciam a t mpera das espadas e lanas portuguezas, e a rijeza dos bra os que as meneavam. De um contra dez devia ser o eminente combate; mas se havia ahi algum cora o que batesse descompassado, algumas faces descoradas, no era entre os companheiros do Lidador que tal cora o batia ou que taes faces descoravam. Pouco a pouco a planura que separava as duas hostes tinha-se embebido debaixo dos ps dos cavallos, como no torculo se embebe a folha de papel saindo para o outro lado convertida em estampa primorosa. As lan as iam feitas: o Lidador bradra Sanctiago; e o nome de Allah so ra em um s grito por toda a fileira mourisca. Encontraram-se! Duas muralhas fronteiras, balou adas por violento terremoto, desabando, no fariam mais ruido, ao bater em peda os uma contra a outra, que este recontro de infiis e christ os: as lanas topando em cheio nos escudos tiravam delles um som profundo, que se misturava com o estalar das que voavam despeda adas. Do primeiro encontro muitos cavalleiros vieram ao cho: um mouro robusto foi derribado por Mem Moniz, que lhe falsou as armas, e traspassou o peito com o ferro de sua grossa lan a. Deixando-a depois cahir, o velho desembainhou a espada, e gritou ao Lidador, que perto delle estava: "Senhor Gonalo Mendes, alli tendes, no peito daquelle perro, aberta a s teira por onde eu, velha dona assentada lareira, costumo vigiar a chegada de inimigos, para lhes ladrar como alcateia de vill os do cimo da torre de menagem." O Lidador no lhe p de responder. Quando Mem Moniz proferia as ultimas palavras, elle topra em cheio com o terrivel Almoleimar. As lan as dos dous contendores haviam-se feito pedaos, e o alfange do mouro cruzou-se com a boa toledana do Fronteiro de B ja. Como duas torres de sete seculos, cujo cimento o tempo petrificou, os dous capites inimigos estavam um defronte do outro, firmes em seus possantes cavallos: as faces pallidas e enrugadas do Lidador tinham ganhado a immobilidade que d , nos grandes perigos, o habito de os affrontar: mas no rosto de Almoleimar divisavam-se todos os signaes de um valor colerico e impetuoso. Cerrando os dentes com fora, descarregou um golpe tremendo sobre o seu adversario: o Lidador recebeu-o no escudo, onde o alfange se embebeu inteiro, e procurou ferir Almoleimar entre o frald o e a couraa; mas a pancada falhou, e a espada desceu, faiscando, pelo coxote do mouro, que j desencravra o alfange. Tal foi a primeira sauda o dos dous cavalleiros inimigos. "Brando o teu escudo, velho infiel; mais bem temperado o metal do meu arnez. Veremos agora se na tua touca de ferro se embotam os fios deste alfange." Isto disse Almoleimar, dando uma risada; e a cimitarra bateu em cima da cervilheira do Lidador com a mesma violencia com que bate no fundo do valle penedo desconforme desprendido do pincaro da montanha. O Fronteiro vacillou, deu um gemido, e os bra os ficaram-lhe pendentes: a espada ter-lhe-hia cahido no cho, se n o estivesse presa ao punho do cavalleiro por uma cadeia de ferro: o ginete, sentindo as redeas frouxas, fugiu um bom pedao pela campanha a todo o galope. Mas o Lidador tornou a si: uma forte soffreada avisou o ginete de que seu senhor n o morrra. redea solta l volta o Fronteiro de B ja; escorre-lhe o sangue, involto em escuma, pelos cantos da bca: traz os olhos torvos de ira: ai de Almoleimar! Semelhante ao vento de Deus, Gon alo Mendes da Maia passou por entre christos e mouros: os dous contendores viram-se, e, como o le o e o tigre, correram um para o outro: as espadas reluziram no ar: mas o golpe do Lidador era simulado, e o ferro, mudando de movimento no ar, foi bater de ponta no gorjal de Almoleimar, que cedeu violenta estocada; e o sangue, saindo s golfadas, cortou a ultima maldic o do agareno. Mas a espada deste tambem no err ra o golpe: vibrada com ancia, colhra pelo hombro esquerdo o velho Fronteiro, e, rompendo a grossa malha do lorig o, penetrra na carne at o osso; e ainda mais uma vez a mesma terra bebeu nobre sangue godo misturado com sangue arabe. "Perro maldicto! Sabe l no inferno que a espada de Gon alo Mendes mais rija que a sua cervilheira. E, dizendo isto, o Lidador cahiu amortecido: um dos seus homens de armas voou a soccorre-lo; mas o ultimo golpe d'Almoleimar fra o brado da sepultura para o fronteiro de B ja: os ossos do hombro do bom velho estavam como triturados, e as carnes rasgadas pendiam-lhe para um e outro lado involtas nas malhas descosidas do lorigo. 5 Entretanto os mouros am de vencida: Mem Moniz, D. Ligel, Godinho Fafes, Gomes Mendes Gedeo, e os outros cavalleiros daquella lustrosa companhia tinham practicado maravilhosas fa anhas. Mas entre todos tornava-se notavel o Espadeiro. Com um pesado montante nas mos, cuberto de p , suor e sangue, pelejava a p; que o seu agigantado ginete cah ra morto de muitos tiros de frecha e lanadas. De roda delle n o se viam seno cadaveres e membros destroncados, por cima dos quaes trepavam, para logo recuarem ou baquearem no ch o, os mais ousados cavalleiros arabes. Como um promontorio de escarpados alcantis, Loureno Viegas estava immovel e sobranceiro no meio do embate daquellas vagas de pelejadores, que vinham desfazer-se contra o terrivel montante do filho de Egas Moniz. Quando o Fronteiro cahiu, o grosso dos mouros fugia j para alem do pinhal; mas os mais valentes pelejavam ainda roda do seu capit o mal ferido. O Lidador tinha sido posto em cima d'umas andas, feitas de troncos e franas de arvores; e quatro escudeiros, que restavam vivos dos dez que comsigo trouxera, o haviam transportado para a caga da cavalgada. O tinir dos golpes era j mui frouxo, e sumia-se no som dos gemidos, pragas, e lamentos, que soltavam os feridos derramados pela veiga ensanguentada. Se os mouros, porm, levavam, fugindo, vergonha e damno, a victoria n o sara barata aos portuguezes. Viam perigosamente ferido o seu velho capit o, e tinham perdido alguns cavalleiros de conta, e a maior parte dos homens de armas, escudeiros e pagens. Foi n'este ponto, que ao longe se viu erguer uma nuvem de p, que voava rapida para o logar da peleja: mais perto, aquelle turbilh o rareou, vomitando do seio um basto esquadro de arabes; os mouros que fugiam, deram volta e gritaram: "Ali-Abu-Hassan! S Deus Deus, e Mohammed o seu propheta!" Era, com effeito, Ali-Abu-Hassan, rei de Tangere, que estava com seu exercito sobre Mertola, e que viera com mil cavalleiros em soccorro de Almoleimar. 6 Cansados do largo combater, reduzidos a menos de metade em numero, e cubertos de feridas, os cavalleiros de Christo invocaram o seu nome, e fizeram o signal da cruz. O Lidador perguntou com voz fraca a um pagem, que estava ao p das andas, que nova revolta era aquella. "Os mouros foram soccorridos por um grosso esquadro:--respondeu tristemente o pagem.--A Virgem Maria nos acuda, que os senhores cavalleiros parece recuarem j ." O Lidador cerrou os dentes com fora, e levou a m o cincta. Buscava a sua boa toledana. "Pagem, quero um cavallo. Onde est a minha espada? "Aqui a tenho, senhor. Mas estaes to quebrado de for as!.... "Silencio! A espada, e um bom ginete." O pagem deu-lhe a espada, e foi pelo campo buscar um ginete, dos muitos que andavam j sem dono. Quando voltou com elle, o Lidador, pallido e cuberto de sangue, estava em p , e dizia, falando comsigo: "Por Sanctiago, que no morrerei como vill o de Behetria, onde entrou cavalgada de mouros!" E o pagem ajudou-o a montar a cavallo. Ei-lo vae o velho Fronteiro de Bja! Semelhava um espectro erguido de pouco em campo de finados: debaixo de muitos pannos involtos no bra o e hombro esquerdo levava a propria morte; nos fios da espada, que a mo direita mal sustinha, levava porventura ainda a morte de muitos outros! 7 Para onde mais travada e accesa andava a peleja se encaminhou o Lidador. Os christ os affrouxavam diante daquella multido d'infi is, entre os quaes mal se enxergavam as cruzes vermelhas pintadas nas cimeiras dos portuguezes. Dous cavalleiros, porm, com vulto feroz, os olhos turvados de colera, e as armaduras crivadas de golpes, sustinham todo o peso da batalha. Eram estes o Espadeiro e Mem Moniz. Quando o Fronteiro assim os viu offerecidos a certa morte, algumas lagrymas lhe cahiram pelas faces, e esporeando o ginete, com a espada erguida abriu caminho por entre infiis e christ os, e chegou aonde os dous, cada um com seu montante nas mos, faziam larga pra a no meio dos inimigos. "Bem vindo, Gonalo Mendes!--disse Mem Moniz.--Quizeste assistir comnosco a esta festa de morte? Vergonha era, de feito, que estivesses fazendo teu passamento, com todo o repouso, deitado l na aga, em quanto eu, velha dona, espreito os mouros com meu sobrinho juncto desta lareira...." "Implacaveis sois v s outros, cavalleiros de Riba-Douro,--respondeu o Lidador em voz sumida,--que no perdoaes uma palavra sem malicia. Lembra-te Mem Moniz de que bem depressa estaremos todos diante do justo juiz." "Velhos sois; bem o mostraes!--acudiu o Espadeiro.--N o cureis de vans porfias, mas de morrer como valentes. Demos nestes perros, que no ousam chegar-se a n s. vante, e Sanctiago!" " vante, e Sanctiago!--responderam Gonalo Mendes e Mem Moniz: e os tres cavalleiros deram rijamente nos mouros. 8 Quem hoje ouvir recontar os bravos golpes que no mez de Julho de 1170 se deram na veiga da frontaria de B ja, nota-los-ha de fabulas sonhadas; porque ns homens corruptos e enfraquecidos por ocios e prazeres de vida afeminada, medimos por nosso animo e for as as foras e o animo dos bons cavalleiros portuguezes do seculo doze; e todavia esses golpes ainda soam atrav s das eras nas tradi es e chronicas, tanto christans como agarenas. Depois de deixar assignadas muitas armaduras mouriscas, o Lidador vibrra pela ultima vez a espada, e abr ra o elmo e o craneo de um cavalleiro arabe. O violento abalo que soffreu, fez-lhe rebentar em torrentes o sangue da ferida, que recebra das m os de Almoleimar, e cerrando os olhos, cahiu morto ao p do Espadeiro, de Mem Moniz, e de Affonso Hermigues de Bay o, que com elles se ajunctra. Repousou finalmente Gon alo Mendes da Maia de oitenta annos de combates! J a este tempo christ os e mouros se haviam descido dos cavallos, e pelejavam a p. Traziam-se assim vontade, e recrescia a crueza da batalha. Entre os cavalleiros de Bja espalhou-se logo a nova da morte do seu capit o, e no houve ahi olhos que ficassem enxutos. O despeito do proprio Mem Moniz deu logar dor, e o velho de Riba-Douro exclamou entre soluos: "Gon alo Mendes, s morto! N s todos quantos aqui somos, no tardar que te sigamos; mas ao menos, nem tu nem ns ficaremos sem vingan a!" "Vingana!--bradou o Espadeiro, com voz rouca, e rangendo os dentes. Deu alguns passos, e viu-se o seu montante reluzir como uma centelha em c u procelloso. Era Ali-Abu-Hassan: Loureno Viegas o conhec ra pelo timbre real do morrio. 9 Se j vivestes vida de combates em cidade sitiada, tereis visto muitas vezes um vulto negro, que em linha diagonal corta os ares, sussurrando e gemendo. Rapido, como um pensamento criminoso em alma honesta, elle chegou das nuvens terra, antes que vos lembrasseis do seu nome. Se encontrou na passagem angulo de torre secular, o marmore converte-se em p ; se atravessou pelas ramas de arvore basta e frondosa, a folha mais virente e fragil, o raminho mais tenro dividido, como se com cutelo subtilissimo m o de homem lhe houvera cerceado attentamente uma parte: e, todavia, no um ferro aacalado: um globo de ferro; a bomba, que passa, como a maldic o de Deus. Depois, debaixo della o ch o achata-se, e a terra espadana aos ares; e como agitada, despedaada por cem mil demonios, aquella machina do inferno estoura, e de roda della ha um zumbir sinistro: s o mil fragmentos; so mil mortes que se derramam ao longe. Ent o faz-se um grande silencio, e aps o silencio v em-se corpos destroncados, poas de sangue, arcabuzes quebrados, e ouve-se o gemer dos feridos e o estertor de moribundos.... Tal desceu o montante do Espadeiro, bto j de milhares de golpes, que o cavalleiro tinha descarregado. O elmo de Ali-Abu-Hassan faiscou, voando em pedaos pelos ares, e o ferro christ o, esmigalhando o craneo do infil, abriu-o at os dentes. Ali-Abu-Hassan cahiu. "Lidador! Lidador!--disse Loureno Viegas, com voz comprimida. As lagrymas misturavam-se-lhe nas faces com o suor, o p , e o sangue do agareno, de que ficou coberto. No p de dizer mais nada. To espantoso golpe aterrou os mouros: os portuguezes seriam j apenas sessenta entre cavalleiros e homens d'armas; mas pelejavam como desesperados, e resolvidos a morrer. Mais de mil inimigos juncavam o campo de involta com os christos. A morte de Ali-Abu-Hassan foi o signal da fugida. Os portuguezes, senhores do campo, celebravam com prantos a victoria. Poucos havia que n o estivessem feridos; nenhum que no tivesse as armas falsadas e rotas. O Lidador e os demais cavalleiros de grande conta, que naquella jornada tinham acabado, atravessados em cima de ginetes foram conduzidos a B ja. Aps aquelle tristissimo prestito am os cavalleiros a passo lento, e um sacerdote templario, que fra na cavalgada, com a espada cheia de sangue mettida na bainha, psalmeava em voz baixa aquellas palavras do livro da Sabedoria: "Justorum autem anim in manu Dei sunt, et non tanget illos tormentum mortis." * * * * * O PAROCHO DA ALDEIA (1825) PROLOGO. Como a philosophia triste e arida! s vezes, na primavera, o vento norte atira-se pelas encostas, tombando dos visos da serra, como se uma intelligencia vivesse n'elle, intelligencia de maldade e destrui o. De noite e de dia os troncos das arvores torcem-se e gemem, as ramas aoutam-nos, e despeda am-se involtas nos braos longos e flexiveis da ventania: o demonio do septentri o sibilla no meio dellas um zumbido entre de lamento e d'escarneo. Debalde o bosque estende saudoso por um momento os seus mais altos raminhos para o sol que se vae alevantando no oriente: a rajada despega de novo da cumiada da montanha; o bosque curva-se para o meio-dia; e galgando por cima daquellas mil frontes inclinadas das plantas gigantes, das rainhas magestosas da vegeta o, os turbilhes da atmosphera agitada rolam pela planicie coberta j de relva entresachada das primeiras florinhas. Ento, relva e florinhas murcham-se esmagadas pelas m os da procella, que tudo alcanam, fustigam e desbaratam. Os carvalhos frondosos e as boninas rasteiras, com a fronte pendida para a terra, como outros tantos symbolos do desalento, n o ousam ergue-la para o cu. que, rugindo, a rajada cahe da montanha em perenne catadura. s vezes, como por brinco infernal, o vento finge adormecer um instante, e depois remoinha e apruma os topos das arvores e as corolas das flores, mas para logo as vergar com mais fora, e apupar com o silvo insolente aquella rapida esperan a, que se desvaneceu to breve. E quando o vento acalma para saltar ao ponente ou ao sul. A rajada j n o silva da montanha: uma bafagem tepida vem da banda do mar; mas o ceu est toldado e o ar humido: o dia passa melancholico e pesado sobre a bonina que a nortada a outou: ella no p de saudar o sol no oriente: est pendida e murcha como a ventania a deix ra. A noite vem encontra-la n'uma especie de torpor, que existir, mas que n o vegetar, e ainda menos viver. Como a florinha do campo a alma por onde passou a procella da philosophia, esse turbilh o transitorio de doutrinas, de systemas, de opinies, de argumentos, pende desanimada e triste; e na claridade ba a do septicismo, que torna pesada e fria a atmosphera da intelligencia, no p de aquecer-se aos raios esplendidos do sol de uma crena viva. Com Kant o universo uma duvida: com Locke duvida o nosso espirito: e n'um destes abysmos vem precipitar-se todas as philosophias. A arvore da sciencia, transplantada do Eden, trouxe comsigo a dor, a condemna o e a morte: mas a sua peior peonha guardou-se para o presente: foi o scepticismo. Feliz a intelligencia vulgar e rude, que segue os caminhos da vida com os olhos fitos na luz e na esperan a postas pela religio al m da morte, sem que um momento vacille, sem que um momento a luz se apague ou a esperana se desvane a! Para ella no ha abra ar-se com a cruz em impeto de agonia, e clamar a Jesus:--"Creio, creio, oh Nazareno! Creio em ti, porque a tua moral sublime; porque eras humilde e virtuoso; porque filho da ra a soffredora e austera chamada o povo, eras meu irmo, e n o podias, to bom, t o singelo, to puro enganar teu pobre irm o. Creio, creio, oh Nazareno! porque at a hora do expirar na ignominia, at a hora da grande prova, nunca desmentiste a tua doutrina. Creio, creio, oh Nazareno! porque tu s nos explicaste o mysterio desta associa o monstruosa da saude e do ouro, do poderio e dos crimes a um lado; a da enfermidade e da pobreza, da servid o e da innocencia a outro; porque nos explicaste como os destinos humanos se compensavam alm do sepulchro. Creio, creio, oh Nazareno! porque s tu soubeste revelar a consola o extrema miseria sem horisonte, e os terrores completa felicidade sem termo na vida, collocando no logar do destino a providencia, e do nada a immortalidade! Creio, creio, oh Nazareno! porque a intensidade do teu viver um impossivel humano; a victoria da tua doutrina severa contra a philosophia e o paganismo um milagre; a gloria do teu nome de suppliciado maior que todas as glorias das mais altas e virtuosas intelligencias do mundo. Mas foste, na verdade, um Deus?" N o, o animo vulgar que nunca vacillou na f, que nunca discutiu o Verbo, nunca julgou o Christo, possuido do insensato orgulho da sciencia, esse n o sabe a dolorosa ora o do que pede a Deus o crer; ignora quanto fel encerra a interrup o contnua de cada phrase, de cada palavra daquelle tormentoso orar; ignora o que atirar-se aos ps da cruz por um impulso quasi phrenetico do cora o, sentir a voz gelida, pesada, cruel do entendimento dizer-lhe tranquillamente--quem sabe!"--e cahir desanimado no lethargo da duvida, d'onde muitas vezes bem tarde se alevanta o espirito, opprimido e quebrado, porque nelle pelejaram horas largas o instincto religioso e o demonio implacavel a que chamam sciencia. A sociedade bem injusta quando s faces do desgra ado, que assim lucta comsigo mesmo, sacode o lodo da injuria, dizendo-lhe:--hypocrita!--porque escondeu aos que o rodeiam, no as certezas, que n o as tem, mas as duvidas terriveis da intelligencia, e lhes revelou s as inspira es, os desejos, as saudades do cora o!--Hypocrita?! Tanto como o que, havendo-se transviado da estrada e cahido em fojo profundo, dorido, coberto de pisaduras e feridas, e ensanguentando as m os e o rosto nas urzes do despenhadeiro, lidasse por sar delle e voltar ao caminho suave e plano, e bradasse aos que visse ao longe:--n o vos affasteis para aqui!"--Hypocritas so aquelles que mentem aos que os escutam; que simulam a paz do descrer tranquillo, quando vae l dentro o tumultuar das incertezas. Como Satanaz elles dizem que o inferno o ceu; dizem que a irreligiosidade tem o segredo do repouso e da ventura, quando o que ella d inquieta o e desesperan a. Feliz a alma vulgar e rude que cr, e nem sequer sabe que a duvida existe no mundo! Est certa de que alm da morte ha vida; conhece as suas condi es; conhece-as como lh'as ensinaram, como conhece as condi es dos corpos. Para ella as noites n o tem os pesadellos monstruosos, nem os dias as medita es febris em que o sceptico involuntario se debate na orla do possivel, que toca por um lado nas solides do nada, por outro na immensidade de Deus. Mas ainda mais feliz a intelligencia superior s do vulgo, aquella que a Providencia destinou misso do poeta, nos annos da infancia e da juventude, antes que o arido bafo da sciencia a queimasse passando por cima della! Nesse espirito e nessa idade a religi o no est s nos preceitos e nos dogmas; est na natureza inteira. A alegria de Deus, o aspirar das fragrancias celestes, a toada suavissima dos hymnos dos anjos, descem a ella nos raios do sol quando nasce e quando desapparece; tremulam no espelhar-se da lua nas aguas; misturam-se no cicio das arvores; entretecem-se com os mil gemidos da noite; vivem nas affei es domesticas, e sanctificam o primeiro bater do cora o pelo amor. Tudo ento vioso e puro, porque a alma poetica lhe empresta vi o e pureza. As harmonias moldadas, na virilidade, pelas leis das linguas e das escholas, so apenas um eccho frouxo desses canticos da meninice e da primeira mocidade, que se evaporam sem se escreverem, que s o um oceano de delicias ineffaveis em que se embala mollemente a imagina o e o sentir do homem, a quem o mundo ha-de chamar poeta. Nessa epocha da vida elle no abstrahe do real para salvar verdadeira e intacta a sua idealidade: faz mais; derrama esta, que a seiva intima do seu viver, pelo universo, e converte-o n'uma cousa formosa, sancta, ideal, que o mundo est bem longe de ser. Depois vem outra epocha da vida, em que a felicidade mentida, mas ainda felicidade, posto que j eivada de vaga inquieta o, de ambi es desregradas, de esperanas mesquinhas e contradictorias. S o os annos qnc precedem e seguem immediatamente os vinte. Abrem-se ante ns os caminhos do mundo como uma conquista. Gloria d'artistas, poderio, opulencia, ac es generosas e grandes, amor sem termo, amizade sem perfidias, vida multiplicada indefinidamente pela infinidade de affectos; que ha, emfim, que n o sonhemos nessa epocha de fervente loucura? A innocencia morreu, a poesia intima e crente desbaratou-se, o sentimento religioso esmoreceu; mas ficam os deleites dos sentidos, que nos embriagam; os applausos das multides aos nossos hymnos descorados, que ellas ainda julgam energicos e brilhantes; applausos que nos desvairam: fica-nos uma philosophia orgulhosa e insensata, que se cr profunda, uma sciencia superficial, que se cr completa, pela qual dormimos tranquillos sobre a nega o de todas as id as mysticas, e de todas as lembranas de Deus. Desta idade em diante que chega o desfazer das illuses, at das illuses do orgulho. A poesia suave e pura da infancia e da puberdade passou: passa tamb m o iris das paixes f rvidas, das ambi es insaciaveis, da crena na propria energia. Come a ento o pardo crepusculo deste scepticismo, que, semelhante a herpes lentos, vae lavrando por todas as nossas opini es e affectos, e os prostra e subjuga. Desde essa epocha a vida tem largas horas de tedio, em que o existir uma carga pesada, porque nos falta um alicerce em que possamos firmar-nos; porque fluctuamos sobre as nevoas densas do duvidar de tudo. O materialismo incredulo j tirou das phases espirituaes dos altos engenhos argumento contra a immortalidade. Com a sua logica miope persuadiu-se de que via as enfermidades e a decadencia da alma acompanharem as enfermidades e a decadencia do corpo; que via o entendimento cachetico esmorecer com a decrepidez; quiz que elle na morte ficasse perdido e annullado entre as cinzas da sepultura. Se o materialismo soubesse que a vida das summas intelligencias a poesia, e que essa vida segue a ordem inversa do desinvolvimento physico; se conhecesse que a energia intima tem o seu apogeu nos annos debeis da infancia, e come a a desvanecer-se quando os orgos se fortalecem, elle n o teria achado a explica o do phenomeno nas suas tristes doutrinas. Nos destinos eternos dos homens iria encontrar a razo desse facto, que ent o veria sua luz verdadeira. Os olhos da alma vo-se pouco a pouco ennevoando no meio das trevas do mundo: nesta atmosphera grosseira e corrupta ella resfolga a custo, e com o diminuir dos alentos diminuem-se-lhe successivamente os brios: cada dia lhe desfolha um affecto, lhe discute uma cren a, lhe mata uma esperana, lhe traz um desengano cruel. Entre o espirito e o mundo partiram-se um a um todos os la os. Vs cr des que a mente se definha, e ella apenas dormita para despertar vigorosa ao sol da eternidade, que rompe atrs do sepulchro. Tomae-me esse octogenario tonto que foi um alto engenho: cavae no deserto do seu cora o gasto e frio, e arrancae-me de l uma daquellas paixes que ardem at o ultimo instante da existencia: vibrae uma corda das que lhe davam na idade viril um som estridente: dizei-lhe:--teu filho querido foi arrastado ao tribunal como criminoso; espera-o o supplicio se no houver uma voz eloquente que o defenda: se ella se erguer ser salvo; e tu foste na mocidade o mais eloquente dos homens!"--Dizei-lhe isto, e vereis esse engenho, que crdes moribundo, atirar-se como um tigre ao meio dos juizes, e achar toda a energia dos vinte e cinco annos para defender aquella vida que a natureza ligou sua pelas harmonias mysteriosas da paternidade. Se as palavras, se o orgo extenuado da linguagem n o podr exprimir o pensamento daquella alma remo ada subitamente, o gesto, o olhar, os meneios substituiro a lingua, e se cansados e debeis n o bastarem violencia da id a, o espirito despedaar o quasi cadaver, e despedindo-se da terra provar que, se dormitava, n o se extinguia, e que, despertando, partia o vaso fragil que j n o o podia conter. Tal o destino da intelligencia neste breve desterro: dous dias conserva as recorda es verdadeiras e puras da sua origem immortal: outros dous alumia-se ao fogo fatuo das paix es e esperanas: o resto delles revolve-se na lucta tormentosa das id as, dos affectos, dos desenganos: depois vem o dormitar da velhice, e a regenera o da morte. Eu, que j vou quem do marco, onde comea o terceiro periodo da vida humana, a s s s vezes com as minhas recorda es infantis, ponho-me a comparar o aspecto prosaico e triste, que tem actualmente para mim o universo, com as f rmas suaves e poeticas em que elle me apparecia involto nesses tempos dourados. uma compara o amarga; mas a saudade que encerra consola do seu amargor. Hoje a lua no crescente alevanta-se ao anoitecer de um dia sereno do estio, e estende o manto de lhama de prata sobre a face levemente crespa das aguas: os seus raios, transparecendo por entre o verdenegro das copas do arvoredo, que se balou am somnolentas, descem tremulos sobre o cho pardo, e mosqueam-lhe a superficie como um dorso de panthera. A vira o tenuissima da tarde passa e murmura um cicio quasi imperceptivel na folhagem. Em volta do circulo alvacento que o luar esparge no ceu, scintillam algumas estrellas no azul do firmamento, que parece o leito recamado de saphyras em que se reclina a rainha da noite. Ha quinze ou vinte annos uma tal noite tinha para mim um sem numero de mysteriosas harmonias, que eu n o sabia explicar, mas que sabia sentir. Agora sei dizer-vos o que a lua, a sua luz refracta, a noite, a vira o, o vulto das aguas encrespadas, as estrellas, e as solid es do espao; mas o que eu j no sei verter lagrymas de ineffavel contentamento, que se me escoavam tepidas pelas faces ao contemplar as harmonias immateriaes e intimas, que vagavam pela atmosphera tranquilla, como uns echos longinquos de harpa angelica, tombando de astro em astro at se derramarem na terra. Dae-me uma nota s dos canticos que eu ento escutava; dar-vos-hei em troca toda a minha estupida e inutil sciencia! Mas essa epocha da vida n o voltar mais, porque n o pde retroceder uma unica onda do rio impetuoso do tempo! Depois da ta a do mel esgotada resta a do absinthio. Que se resigne e espere aquelle que vae devorando os dias da duvida e do desalento. Chegar a hora de renascer para a poesia e para a certeza: ser a da morte. A Providencia foi ainda generosa comnosco, consentindo-nos que a espaos affastemos dos labios o calix do fel, e deixando que nestes momentos rasguem o nosso longo e tedioso crepusculo alguns raios transitorios de luz. A memoria o instante de repouso, e a saudade o claro suave que nos illumina. Recordar-se--consolar-se. * * * * * I A ALDEIA E O PRESBYTERIO. Uma das cousas que nas recorda es da juventude ainda espiram para mim poesia e saudade a imagem de um velho prior d'aldeia que conheci na minha meninice. Hoje to bondosos, t o alegres, to veneraveis, ha-os por certo ahi, e muitos: eu que no sei conhec -los. A aurola, que ent o rodeava as cans do sacerdote ancio, desvaneceu-se pouco a pouco; desvaneceu-a a experiencia do mundo, como tantas mil cren as e imagina es de outr'ora! Elle morreu j, por certo; mas vivo que fosse, eu n o sentiria ao v-lo, ao falar-lhe, aquella especie de alegria timida, de confian a receiosa que nesse tempo o bom do velho me inspirava. Parecia-me que estando ao p delle estava mais perto de Deus, cujo val do, por assim dizer, era o padre prior. No sabia o sacerdote essa lingua que eu cria falar-se no ceu, o latim, que ent o era para mim cousa mysteriosa e sancta? No trajava s vezes os trajos da crte celeste, o amicto, a casula, o pluvial, com que estavam vestidos alguns vultos de anjos pintados em tres ou quatro antiquissimos quadros do presbyterio? Quando nas suas practicas, depois da missa do dia, narrava os gosos da bemaventuran a, os tormentos do purgatorio, e os tractos intoleraveis do inferno, no juraria qualquer que elle j peregrinra largos annos al m do sepulchro, ou que voz de cima lhe revelava tantas maravilhas e to solemnes terrores? Evidentemente o velho clerigo estava mais perto dos degraus do throno divino que toda a outra gente, e, por me servir da linguagem politica, exercia em nome do c u uma delega o na terra; era uma especie de missus dominicus da Providencia. E quando elle, apezar dos meus tenros annos, me escolhia para acolyto, para estafar a por o de latim do missal, que as rubricas inexoraveis subtrahiam ao seu imperio, sorriam-me as esperanas, algum tanto vaidosas, de obter de Deus deferimento s minhas preten es infantis, como costumam sorrir ao requerente, a quem deputado de grande conta mostra familiaridade na presena de omnipotente ministro. Hoje o latim do padre prior parecer-me-hia um tanto barbaro, e talvez barbarissima a sua prosodia: nas vestes sacerdotaes acharia os trajos romanos do imperio atravessando, immutaveis como a igreja, por entre as transforma es da moda e do luxo; nos quadros do presbyterio riria da ignorancia e mau gosto do pobre pintor; e nas descrip es das venturas e tormentos da outra vida descubriria unicamente uma incarna o grosseira em imagens materiaes das revela es profundas do espiritualismo christ o. que nesse tempo tudo me chegava aos olhos da alma alumiado, risonho, variegado, porque tudo transparecia atrav s de um prisma de sete cres, da innocencia singela e credula da infancia; e hoje tudo me parece como a folha que cahiu da arvore no outono, murcho e desbotado, passando atrav s da atmosphera nevoenta e triste da sciencia e do orgulho. Ento o velho parocho affigurava-se-me mais que um homem; hoje, na escala das desigualdades humanas, provavelmente s acharia para elle um bem modesto logar. A aldeia em que o bom do clerigo pastoreava o seu rebanho espiritual estava assentada na falda de um monte, e pouco inferior a ella dilatava-se uma veiga, que ao longe, l bastante ao longe, a bater no mar. No alto da povoa o ficava o presbyterio. Era a igreja, segundo hoje se me affigura (e tenho-a bem presente) daquelle gosto duvidoso entre a architectura christan que expirava, e a da restaura o romana, que ainda se no comprehendia: era um desses templosinhos construidos nos fins do reinado de D. Manuel e durante o de D. Jo o III, de que to grande numero resta ainda pelas parochias de Portugal, e que s o mais um argumento de que os nobres conquistadores da India, donatarios das terras e padroeiros das igrejas, no voltavam do oriente com as m os vazias. A devo o nesses tempos era um objecto de luxo: edificar uma igreja ou uma capella equivalia a ter hoje um camarote em S. Carlos, ou um cocheiro com estrigas de linho na cabea e chapeu triangular. A portada da igreja, de arco tricentrico firmado em pilares polystylos de meio relevo, era o mais claro testemunho da idade provecta do presbyterio. A residencia parochial, originariamente do mesmo estylo, estava j civilisada: uma porta rectangular substitura a antiga. Esquadriadas estavam tambem as duas janellas do sobrado de differentes dimens es, e affastadas uma da outra; e nos seus postigos da esquerda via-se o moderno conforto das vidraas. N o quero dizer com este elogio morada do padre prior que a igreja tinha resistido, teimosa como um velho caturra, aos progressos da civilisa o. Pelo contrario. Estava mais alindada ainda. Uma irmandade, ou n o sei quem, que entendia na fabrica, havia pintado de ochre tudo o que era pedra, de vermelho tudo o que era azulejo. As camaras municipaes das grandes cidades, os conegos das collegiadas e s s ainda no passaram do ochre; e uma pobre irmandade da aldeia j tinha ha vinte annos vencido a mta a que apenas hoje chegam o municipio e a cathedral. O que, por m, escapou ao ochre e ao vermelho dos mesarios do burgo foram dous seculares e formosos platanos que sombreavam o portal do presbyterio: na febre amarella, que grassa t o furiosa pelo senso esthetico dos nossos magistrados populares e das nossas dignidades ecclesiasticas, admira que tenha esquecido estender o beneficio da caiadura gemada aos troncos rugosos e carrancudos das velhas arvores, que rodeiam os edificios ou as praas. Verdade que todos os dias alguma desaba sob os golpes do machado. Isto melhor: mas porque n o haveis de remoar as que v o escapando com as lindezas e alegrias canonico-municipaes? Bellos e veneraveis eram os dous platanos. O adro, cubriam-no todo com as suas sombras fechadas, e s pela volta da tarde, principalmente no outono, que algumas resteas aafroadas do sol no poente se estiravam por debaixo delles, e l am bater frouxas no limiar da igreja pul do do contnuo perpassar, e na porta de um vermelho desbotado, onde nesse tempo come avam a alvejar os remendos brancos com que as revolu es converteram os ditos dos templos em pelourinhos eleitoraes. entrada do adro alevantava-se uma grande cruz de madeira pintada de preto, em cuja haste mos devotas tinham atado um ramo de flores, e este ramo, no meio do qual havia um p de perpetuas, era a imagem das vaidades do mundo ao redor da religio do calvario, immutavel no meio dellas. As outras flores tinham-nas mirrado os ardores do estio: s restavam do morto ramilhete as immarcessiveis perpetuas. Era n'um poial que servia de base cruz, onde quella hora do pr do sol o padre prior vinha muitas vezes sentar-se; e alli estava tempo esquecido, ora alongando os olhos pelas solid es do mar, que l em baixo no fundo do extenso valle quebrava nas rochas, ora tra ando attentamente na terra com a sua grande bengala de casto de marfim diversas figuras, se geometricas n o o sei dizer, porque hoje no creio tanto na geometria do padre prior como ent o cria nas suas terriveis revela es do outro mundo tiradas do Speculum Vitae. O que, porm, eu sentia melhor do que hoje, sem ent o o saber explicar, era a suave e profunda poesia que respirava esse quadro do velho sacerdote juncto do symbolo religioso, quella luz moribunda da ultima hora do dia, em que uma curta saudade melancholica vem como percursora da noite pousar-nos sobre o cora o. N o o imaginava nesse tempo, mas imagino agora por onde vaguearia a mente do velho clerigo em quanto a bengala a d'um para outro lado cruzando linhas tortuosas e incertas. Os ultimos instantes de moribundo, os quaes elle tinha ado ado com as consola es da f; a esmola tirada da escassa congrua para enxugar lagrymas de viuvas e de orph os; os conselhos paternaes dados mocidade, salva assim por elle de largos dias de remorsos e amargura; os odios convertidos em perd o entre inimigos; as dissenses domesticas pacificadas pela concilia o do pastor; todo o bem, emfim, que por trinta ou quarenta annos elle havia semeado na aldeia, desde as ultimas casinhas de colmo que alvejavam caiadas na orla pallida dos campos at o altar do presbyterio, fructificava talvez ante os olhos da sua alma, n'esses momentos de extasi, em rica sera de esperan as, cujos fructos enthesourava no cu. Depois, a cruz hasteada juncto delle lhe viria lembrar o nada das diligencias que empreg ra, dos sacrificios que fizera para verter algum balsamo de ventura nas chagas dolorosas da vida; para remir da perdi o as ovelhas transviadas do pobre rebanho que lhe fra confiado. A cruz negra no seu eloquente silencio contava-lhe sacrificios infinitamente mais arduos que os delle, feitos, n o em proveito d'uma aldeia ou d'um povo, mas para remir o genero-humano. Por isso lhe via s vezes deixar pender a fronte calva sobre o peito, e tomar-lhe o rosto uma express o singular, inexplicavel nessa epocha para mim, mas que era o desalento que lhe gerava no espirito a terrivel compara o das suas ac es com as do Suppliciado do Calvario, ao qual tomra por modelo, e que jur ra imitar. Muitas vezes espantava-me de que se conservasse assim engolfado em seus pensamentos at que o sino das ave-marias o vinha despertar; e na minha alegria da infancia, vendo-o t o triste e carrancudo, pensava comigo, que o padre prior se a tornando com a idade tonto e aborrido. Todavia, era que o bom velho nesses momentos de medita o volvia atraz os olhos para os caminhos da sua vida, onde esperava achar alguns vestigios brilhantes de obras virtuosas; mas esses caminhos, sumidos na penumbra da cruz, n o os percebia seno como uma nuvemsinha escura e duvidosa atrav s da luz immortal das virtudes e dos beneficios do Christo. Ao tocar, porm, das ave-marias todas aquellas imagina es desconsoladas, se elle as tinha, como hoje creio, desappareciam por um movimento habitual do espirito e do corpo; este para se erguer, aquelle para orar. Sobra ada a bengala, em p, com as m os postas, segurando ao mesmo tempo entre ellas o seu chapu de tres ventos, com a cabe a um pouco inclinada para o cho, o padre prior murmurava em voz baixa aquella t o poetica ora o do despedir do dia. Os trabalhadores, que, voltando das fadigas do campo, acontecia passarem por ahi nessa occasio, descobriam-se tambem, e encostando-se ao ancinho ou enxada punham as mos e resavam at que o reverendo, acabando os latinorios, que elles am repetindo em vulgar, lhes dizia:--Boas noites, rapazes, v a cobrir."--E os ganha-pes cobriam-se, respondendo:--Guarde-o Deus, padre prior:"--E partiam: e elle assentava-se outra vez a olhar para o poente, onde o sol, que se affund ra no mar, deixava entre si e a noite, precipitando-se aps elle das alturas do c u, uma barra de vermelhido e ouro, que se estirava para um e outro lado do horisonte como tentando embargar o caminho s trevas. E alli estava scismando at que a tia Jeronyma al ava meia adufa de uma janella baixa, que dava claridade cozinha, e o chamava para a ceia, ao que promptamente obedecia, porque cumpre advertir que o padre prior n o s respeitava carga cerrada todas as tradi es do catholicismo romano, mas tambem a sabedoria tradicional do povo, que neste capitulo de ceia resa que deve ser comida sem sol, sem luz, e sem moscas, momento fugitivo do expirar do dia, que no consta deixasse j mais passar por alto a boa da tia Jeronyma. Nunca me ha-de esquecer aquella hora na aldeia, a luz crepuscular da atmosphera, as gelosias dos aposentos inferiores da residencia parochial, e a sancta velha da tia Jeronyma que teria proporcionado mais um capitulo a Chateaubriand sobre a poesia das usanas christans, se esse illustre escriptor houvesse uma vez saboreado as filh s que ella compunha para celebrar o Carnaval;--e os seus bolos da Natividade--e a sua lha e o seu anho assado da Paschoa. N o!--Saudades de tudo isso, durante a minha vida inteira, em qualquer fortuna, no meio das mais graves cogita es, nunca hei-de affastar-vos impaciente quando vierdes, como creana travessa, baralhar-me um periodo de trabalhada prosa, ou aleijar-me com um verso parvo uma estrophe soffrivel. Vinde, meus amores antigos, que para v s esta fronte no saber arrugar-se; esta bca n o ter esses monosyllabos duros e gelados com que se repellem importuna es d'indifferentes. Vinde, e demorae-vos comigo, e palrae por uma hora, por um dia, por uma semana, que vos escutarei sempre sorrindo; e quando f r ao sol posto, que os ouvidos da minha alma vos ouam reproduzir vivas, harmoniosas, melancholicas as lentas badaladas das ave-marias, n o como agora as ouo s vezes no meio do rudo confuso, aspero, estridente do povoado, mas partindo da aldeia ainda deserta dos seus moradores, rolando pela veiga, esprigui ando-se pelo prado, rumorejando pelas quebradas da encosta ou pelo pinhal do cabeo, e indo morrer l muito ao longe nas toadas duvidosas de uma cantiga de lavadeiras, ou no tinir das esquillas de um rebanho de ovelhas, que se encaminham pra o aprisco ao sibilar do pastor. Repeti-m'as assim, puras, campestres, vibradas n'um ar puro e sonoro, livres por um horisonte immenso, e ter-me-heis despertado um affecto consolador, o qual valer mais que todas as ambi es, que todos os contentamentos, que todas as esperanas do mundo. Tem-se discutido os sinos, como se discute quanto ha no universo. Desde a existencia objectiva ou material deste mundo at a legitimidade do chocalho pendurado ao pescoo da cabra retou ando pelas ruas de qualquer capital, que resta ainda ahi para se lhe trazerem pra a os prs e os contras? Das defini es possiveis do homem uma s verdadeira: o homem o animal que disputa. Os sinos tem tido amigos e inimigos: e porqu ? Pela mesma razo porque sobre tudo ha duas opini es contradictorias. que tudo tem duas faces diversas. O vento sul meigo para a arvore que veceja no recosto septentrional da montanha, e aoute da que vegeta no pendor opposto: o norte o supplicio da primeira, e grato para a segunda. N'isto est cifrada a historia das contradic es humanas. Os sinos, collocados em campanario de parochia aldeian, ou de mosteiro solitario, s o uma cousa poetica e sancta: os sinos, pendurados nas torres garridas de garridissimas igrejas das cidades de hoje, so uma cousa estupida e mesquinha. O sino um instrumento accorde com as vastas harmonias das serras e dos descampados. Assim como o orgo foi feito para reboar pelas arcarias profundas de uma cathedral gothica, para vibrar na atmosphera mal alumiada pelas frestas estreitas e ogivaes, do mesmo modo o sino foi perfilhado pelo christianismo para convocar os seus humildes sectarios occupados nos trabalhos campestres. Quando se associou o sino ao culto? Ignoramo-lo: ignoramo-lo, porque foi a religi o serva e perseguida que o sanctificou: e quando os poderosos da terra a acceitaram para si, ento entrou elle nas cidades soberbas. L converteu-se n'uma cousa insignificante e impertinente. mais um ru do intoleravel para ajunctar aos outros rudos discordes que troam por essas ruas e pra as. O sino, tornado corteso e fidalgo, semelhante ao orgo trazido para o aposento do baile, ou, o que vale quasi o mesmo, para essas salas ao divino, bonitas, vaidosas, douradinhas, que insensatos edificam para as admira es de parvos. E com estas digress es esquecemo-nos do padre prior. No importa. Deixa-lo ceiar em paz, e resar o breviario. Eram estas, entre outras, duas phases graves e s rias de todos os seus dias. Depois, emquanto a velha Jeronyma punha em ordem a casa, elle pegava em um livro da pequena estante que lhe ficava cabeceira, e lia ou uma lenda pia do Flos-Sanctorum de Rosario, ou um tracto d'aquellas grandes historias de Fr. Bernardo de Brito, at que o somno tranquillo de uma boa e san consciencia, apertando-lhe com os dedos rosados as palpebras, o entregava aos sonhos placidos que s a alvorada vinha interromper, quando o perigo imminente de alguma das suas ovelhas o n o obrigava a erguer-se alta noite, ao som do resmungar malsoffrido e, at certo ponto, impio da tia Jeronyma. No horisonte limpo e sereno destas duas vidas innocentes, destes Philemon e Baucis celibatarios, que amparados um no outro am peregrinando contentes para o sepulchro, havia um ponto negro e triste. O rendimento da parochia no consentia que o padre prior possuisse essa especie de ilota in sacris, de servo de gleba sacerdotal, chamado o padre cura. As ventanias, as chuvas, as noitadas atrav s das serras revertiam como a congrua e os benesses em beneficio, seno do corpo, ao menos da alma do reverendo prior. A sua congrua era maravilhosamente estitica: o grosso dos dizimos da parochia, jogava-os risca todas as noites em tertulias um digno commendador no sei de que ordem. Ai, que a extinc o dos dizimos foi a morte da religi o! * * * * * II NOITADAS PAROCHIAES. A vida do velho prior passava na verdade dura e trabalhosa! Como todas as cousas deste mundo, o egoismo da tia Jeronyma no era acabado e completo, ou, para falarmos em estylo de philosophia fidalga, n o era absoluto. O limitado e imperfeito o signal que o Creador estampou na fronte do homem e na face da terra para nos recordar a todo o instante a nossa origem; a barreira que elle alevantou diante d'este grande mysterio de energia e de audacia chamado a intelligencia. Sabedoria, fora, paix es, affectos, tudo tem um horisonte commensuravel; horisonte para as virtudes como para a dor. O espirito mede e abrange o que ha mais vasto e profundo, os ermos, os mares, o cora o humano; porque ao cabo d'isso tudo est o finito. Immensa, eterna, absoluta s ha uma ida, que est fora do universo. Esta a id a de Deus. Por isso, grande somente Deus! Mas dizia eu que o egoismo da tia Jeronyma era incompleto: digo mais; era incompletissimo. Quando o sacrist o vinha alta noite quebrar o dormir risonho e variamente resonado do padre prior; quando voz roufenha do ostiario aldei o, despertando o pastor para ir levar as consola es extremas ovelha moribunda, e tira-la l , porventura, dos dentes e garras do co tinhoso, se ajunctava o trovejar ao longe da tempestade, o fustigar da chuva nas vidra as progressivas das meias janellas, e o ramalhar da ventania nos dous platanos do adro, era sem duvida que o resmungar da tia Jeronyma, apparecendo da banda da sua pocilga com a candeia mortia na m o e as roupinhas vermelhas do envez, tinha o que quer que fosse repugnante e vil. A boa da velha pensava, acaso, que a morte no seria t o descortez que negasse ao espirito do pobre moribundo o tempo necessario para poder, ao abandonar o corpo, subir como chammasinha tenue, e galgar para o cu sobre um raio do sol nascente? P de ser que sim. No seria, por m, antes, que ella preferisse o deixar frigir por alguns seculos nas caldeiras do purgatorio aquella pobre alma christan, largando a sua veste mortal sem os ultimos sacramentos, necessidade de erguer-se por noite fria e tempestuosa para tomar nos hombros uma parte da cruz do ministerio parochial? Tambem isto pde ser. O que se passava no abysmo da sua consciencia cousa era que ella n o revelava a ninguem; mas em todo o caso era um pensamento egoista. Todavia preciso confessar que com elle se misturava um sentimento puro e nobre: dizia-o esse cuidado pressuroso com que a tia Jeronyma trazia as botas de c r terrea, o berneo de saragoa, o capote de barregana, o chapeir o oleado, e a aguardente de ginjas, sem um copo da qual o prior no ousaria transp r o limiar da porta, e investir com as furias da noite procellosa: diziam-n'o a atten o com que mirava se elle a agasalhado, e as mil vezes repetidas pondera es hygienicas, que lhe fazia com admiravel volubilidade de lingua. A affei o da sancta velha mostrava-se em tudo isso viva e sincera; e o seu resmonear, que no meio das idas e das voltas, e do perguntar e do responder, a rareando e abatendo como o assobio do furaco pelo valle, perdia gradualmente a express o de egoismo, e convertia-se pouco a pouco na de um pensamento moral. E o padre prior calado!--Calado enfiava as botas; envergava o gabinardo; cobria-se com o capote; punha o amplo sombreiro; enchia um copinho do excellente cordial que a boa da ama lhe havia posto diante; virava-o d'um golpe; fazia uma visagem fechando os olhos com fora e estendendo os bei os; dava um estaldo com a lingua no c u da bca; exprimia o intimo conforto que n'elle ger ra o ethereo licor com um brrahhh prolongado; estendia a pequena taa, cheia de novo, ao sacrist o, que, mestre nos estylos de cortezia, se curvava formando com o corpo um angulo obtuso de noventa e cinco graus, despresadas as frac es, e arqueando o brao para levar o copo bca sequiosa, como se curva e arqueia um peralvilho de guedelhas sansimonianas e miolos de agua chilra, ao conduzir em sala de baile a deusa dos seus affectos de vinte e quatro horas ao meio do turbilh o doudo e (perdoe-se-nos a blasphemia) um tanto parvo das valsas e contradanas. Depois duas palavras magicas sa am da bca do reverendo pastor:--"At logo!"--O seu effeito era instantaneo: o sacristo, pegando n'uma lanterna, com as chaves da igreja na m o encaminhava-se para o adro seguido do padre prior: a tia Jeronyma fechava a porta aps elles; e o tentador, como se estivesse esperando por esse momento, travava-lhe novamente do espirito, e o resmoninhar da impaciencia recome ava em breve, acompanhado do ranger do linho na roca, e do espirrar da candeia a espaos, e do respiro asthmatico do nedio gato do presbyterio, que, enroscado na lareira, abria de quando em quando os olhos amortecidos, e cerrava-os logo com philosophica indifferen a, emquanto a tia Jeronyma esperava por seu velho amo, e se lhe apertava o cora o sentindo o temporal que passava l f ra, e lembrando-se de que o enfermo poderia ter guardado para hora mais decente e commoda a agonia do passamento. E pela serra fra, caminho de casal remoto, vae o velho prior: adiante o sacrist o com a lanterna e a ambula da extrema-un o, e elle atrs com o ciborio. As po as de agua reflectem essa debil claridade que as alumia, e fazem um continuo plach, plach, debaixo dos ps dos dous caminhantes, cujo passo apressam as cordas de chuva batida pelos furac es do sudoeste. Os pinheiros balouando-se gemem tristemente, e os enxurros, estrepitando pelos corregos, tiram com o pinhal uma toada soturna. No c u profundamente negro no apparece uma estrella: na terra ao longe, bem ao longe, n o se descortina uma luz. A natureza debate-se comsigo mesma: tudo dorme, entretanto, nos casaes e na aldeia, salvo o velho parocho e a familia daquelle que em trances mortaes espera o representante do Christo, que lhe traz as derradeiras consola es e esperanas. Entre a philantropia humana e as agonias extremas dos pequenos e humildes a noite e a tempestade ergueram uma barreira quasi insuperavel: esta barreira desapparece, porm, diante da caridade que a todos nos ensina o Evangelho, e que ao parocho imp em como dever imprescriptivel a sua misso sacerdotal e o seu caracter de pae dos pobres e affligidos. A esta mesma hora, em que o velho prior assim vagueava por sendas alpestres exposto s inclemencias de noite invernosa, talvez em aposento bem resguardado, no fim de ceia brilhante, entre as taas cheias de vinhos generosos, no meio de mulheres formosas e voluptuarias, embriagado em todos os deleites dos sentidos, algum famoso espirito forte cirzia remendos das paginas soporiferas d'Holbach ou de Diderot, e dissertava profundamente sobre a mandriice, egoismo e cubi a do clero, ou carpia a supersti o do povo, que, para ser completamente feliz de nada mais precisa do que de abandonar as crenas do christianismo e de amaldi oar as esperanas de Deus, o conforto unico da sua vida de miseria, de trabalho e de amargura. E naturalmente os neophitos daquella triste philosophia extasiavam-se em redor do sabio philantropo, que, impando de iguarias delicadas, de vinhos custosos, e de grossa sciencia, s lamentava a ignorancia daquelles a quem muitas vezes faltava ento, falta hoje, e faltar de futuro um bocado de po negro para matar a fome; extasiavam-se alli diante da sensualidade e bruteza de um insensato vanglorioso, emquanto a virtude do velho clerigo, exercitada nos desvios dos montes e no silencio da noite, n o tinha por testemunhas seno um c u humido e cerrado, e o vulto impetuoso e bramidor da ventania; mas que, em vez das lisonjarias de parvos, tinha para o applaudir a voz sincera, consoladora e sancta da propria consciencia. Havia, porm, no fim de tudo, uma differen a entre o homem do evangelho e o da falsa sciencia. Era o systema das compensa es. O padre prior, depois de cumprir com o seu dever, voltava ao presbyterio tranquillamente: tirava o capote alagado, despia o gabinardo felpudo, sacudia a uma distancia razoavel as ponderosas botas, e enfiando-se entre os grosseiros lenoes, atava o fio do somno no ponto em que o deix ra; e emballado brandamente por sonhos apraziveis, s acordava sol nado e alto, ao bradar da tia Jeronyma, e ao cheiro da a orda fumegante; almoo que, como tudo o que era consagrado pelos seculos e pela tradi o, elle profundamente respeitava. E o nosso philosopho? O nosso philosopho, recolhendo-se alta noite, a todo o caminho provando a si mesmo que no ha diabos no mundo, nem almas, nem talvez Deus; mas sentindo arripiarem-se-lhe os cabellos ao v r danar a phosphorescencia d'algum marnel, rezando o credo em cruz ao passar por algum cemiterio, benzendo-se ao ouvir piar algum mocho. E depois de se deitar e adormecer sonhava.... Em qu ? Nas combina es infinitas da materia eterna de que deve, segundo as boas doutrinas, ter rebentado o universo? No! Sonhava com as penas do inferno; e ao acordar pela manhan com defluxo, pedia confiss o e sacramentos. J l vo vinte annos! Bom tempo era esse, ao menos para mim, que ainda nem sabia da existencia do animal chamado philosopho, classificavel entre os rodentia, pelo medroso e damninho. Em vinte annos que voltas tem dado o mundo! Aquella especie vae-se acabando de todo. Auctores de comedias apressae-vos! Antes que se perca o typo, levae o incredulo ostentoso scena. Dae-nos algumas noites de rir doudo e inextinguivel. Os dias do padre prior corriam assim placidamente para o seu viver intimo, posto que o duro mister de parocho lhe entenebrecesse muitas vezes os horisontes da vida material. E que importava, se todos na aldeia lhe queriam bem; se todos o acatavam como a summa bondade, e o que no era menos, como a summa intelligencia da parochia? At o barbeiro, o proprio barbeiro, homem entendido e grave em materias de eloquencia sagrada, no constava houvesse j mais torcido o nariz s praticas e serm es do padre prior, que elle, com a mo sobre a consciencia, punha acima dos melhores de frei Timotheo, um fradalho arrabido, cousa brava em gritarias ao divino, que por via de regra se incumbia das domingas de quaresma naquella freguezia e nas circumvizinhas com acceita o e applauso universal do auditorio, mas cuja fama era offuscada pelos periodos singelos do velho sacerdote, repassados de unc o, e daquella eloquencia de missionario, que, apesar de rude, l vae fazer vibrar o cora o do povo, afinado pela crena viva, como a harmonia que se tira das cordas de dous instrumentos accordes. Agora por isso, o que ser feito de frei Timotheo?! Era naquelle tempo um frade guapo e alentado! O que ser feito delle? Se ainda vive, tiraram-lhe o burel e a corda de esparto, o seu capital; venderam-lhe o convento, o seu tonel de Diogenes; prohibiram-lhe o capuz e as sandalias, o seu direito inauferivel de andar trajado como lhe aprouvesse; e mandaram-no, desarmado de tudo isso, pedir para o mendigo a esmola que se dava ao burel, ao esparto, ao convento, ao capuz e s sandalias. Bom passaporte para frei Timotheo transitar pela valla plebea do cemiterio nos braos morbidos e suavissimos da fome! Foi um progresso de civilisa o, que se completou pelo lado moral com o augmento das loterias, das casas de cambio, e das traduc es de novellas e dramas francezes. Bemaventurada a t o esperta na o que assim comprehende o progresso! Duas cousas, porm, mais que as pr ticas e sermes, serviam para engrandecer e glorificar o padre prior, n o s diante dos homens, mas tambem diante de Deus. Era a primeira o incansavel z lo com que se applicava a apaziguar as rixas, a estabelecer a concordia domestica, a prgar o trabalho, a guerrear a embriaguez, e sobretudo a sanctificar pelo casamento as affei es illicitas: era a segunda o fervor modesto e o innocente luxo com que procurava celebrar as festas religiosas, principalmente a de S. Pantale o, orago da freguezia, e de quem tanto os aldeies como o velho presbytero criam affincadamente possuir o metacarpo da m o direita, o qual devia ser de outro sancto, ou no-sancto, se acreditarmos (eu c pela minha parte acredito) os parochianos da s do Porto, que se gabam de ter debaixo de chave S. Pantale o in totum, sem lhe faltar dedo de p nem de m o, quanto mais um metacarpo inteiro. * * * * * III UMA ESCORREGADELA. A proposito do que o padre prior era de casamenteiro ainda me lembra uma velha viuva, a senhora Perpetua Rosa (Deus lhe fale na alma!) que morava ao cabo do logar n'uma barraquinha beira do rio muito caiada, com seu rodap de vermelho, e sombreada por cinco ou seis choupos que nasciam da agua. Tinha ella (a velha, n o a barraquinha) uma filha, formosa rapariga, chamada Bernardina. Era uma das leiteiras mais desenxovalhadas de que se gabavam os arredores de Lisboa: bonita, que no havia mais dizer: alva como toalha de freira, airosa como pinheirinho de quatro annos. Uns poucos de rapazes da aldeia andavam doudos por ella. Nas noites dos domingos, em que havia dan a e viola na casa da brincadeira[1], a tia Jeronyma, que era capaz de espreitar este mundo e o outro, mirando da sua rotula o que se passava entrada da rustica sala do baile, pouco distante do presbyterio, notava que, apenas a Bernardina apparecia, os rapazes entravam ap s ella com muita mais furia e pressa do que pela manhan haviam corrido para a igreja ao ultimo toque da missa do dia. Antes d'isso j a boa da velha tinha reparado no modo por que elles se encostavam aos cajados para lados oppostos, em frente uns dos outros, nos motejos do cantar ao desafio, no p r dos barretes banda, nos olhares que mutuamente se lan avam, no pegarem em seixos e atirarem-nos a grande distancia a modo de competencia, sem dizerem palavra, como se cada um quizesse mostrar aos seus rivaes a robustez do proprio brao. D'isto tudo tirava a tia Jeronyma agouro de muita pancadaria,--"por amor daquella delambida--dizia a ama do prior em suas caridosas murmura es--que anda toda arrebicada por baralhotas, em quanto a pobre da me moureja todo o sancto dia ao sol e neve naquelle rio, para ganhar um bocado de po sem vergonha da cara. Havia de ser comigo!" E o mais que a tia Jeronyma no se enganava nas suas previs es. Chegou vespera de Reis: houve noite brincadeira ou baile extraordinario: passou-se ahi tudo na melhor ordem: riu-se, tocou-se viola, dan ou-se, cantou-se ao desafio, e cada qual se recolheu a esperar entre os lenoes os sanctos Reis magnos, designa o popular dos magos do Oriente, cuja vinda a Bethlem se memora na Epiphania. Houve, por m, nessa noite um saloio mais cortez, que esperou vestido e ao relento, no caminho da serra, a vinda dos tres sanctos personagens. Foi o Manuel da Ventosa, estendido com uma tremebunda e magnifica massada, de que esteve ido, a ponto de dar ao padre prior uma daquellas noitadas que suscitavam a colera da tia Jeronyma, e de que j acima fiz honrosa e especifica men o. O Manuel da Ventosa era filho unico d'um moleiro rica o, chamado Bartholomeu, velho honrado, mas avarento como seiscentos Satanses. Teve a ventura (o rapaz, entende-se) de ca r em graa Bernardina. Amoricos d'aqui, amoricos d'acol, janella na cara a um, respostas tortas a outro, segredar e rir de vizinhas, raivas de desprezados: somma total--z s, uma sova mestra no Manuel da Ventosa, por ter tido a negregada dita de merecer a preferencia daquella que era o enlevo de todos os cora es. Mas enganaram-se. O amor redobrou com o sacrificio; os desprezos cresceram com a vingana. O que come ra por passatempo converteu-se em paix o violenta: um fogo ntimo devorava a alma de Bernardina, e desbotava-lhe as faces, d'antes t o frescas e rosadas como as de um seraphim da peanha da Senhora da Concei o, obra de esculptor insigne. No Manuel da Ventosa, isso no falemos: quando melhorou da doen a andava entre parvo e abstracto: attribuia-o o licenciado dos sitios a depresso cerebral produzida por alguma ripada nas vertebras; mas, se existia depress o de cerebro, outra era a sua origem. Certa mulher de virtude que havia na aldeia jurava e tresjurava que o moo moleiro tinha a espinhela ca da. Historias. Eu, apesar de ser ento uma crean a, sabia bem onde batia o ponto; por isso nunca fui para ahi. Por encurtar razes: os dous amavam-se como loucos. As pessoas desinteressadas achavam-nos um par completo; e com bom fundamento: o Manuel da Ventosa era um galhardo mancebo, unico herdeiro de ginja abastado, e Bernardina uma rapariga honesta. As beatas da aldeia, s quaes, conforme a direito, incumbia pr ao soalheiro a vida privada de cada uma, no capitulo da honra nunca se tinham atrevido a ir devassar a barraquinha de Perpetua Rosa. Podia a senhora Perpetua Rosa gabar-se dessa! E de feito, muitas vezes, mettida no rio at os joelhos, em discusses acaloradas com as suas illustres amigas, as outras lavadeiras pelo circulo de Lisboa, a ouvi empraza-las para que formulassem precisamente certas interpella es infundadas, rejeitando com desprezo alguns remoques bernardos relativos a Bernardina, e appellando para a opini o do paiz representada pelos seus orgos, as beatas do soalheiro. Mas se os dous se amavam com tanto extremo, e eram feitos e talhados para puxarem o mesmo carro matrimonial, porque n o am pedir ao padre prior o conjungo vos? Ahi que certo animal torcia certa parte do corpo, que eu e o leitor sabemos. Por no terem pedido esclarecimentos sobre o facto que as lavadeiras faziam declama es vagas. Eis o caso: o Bartholomeu da Ventosa era rico e avaro; mas bestialmente avaro: Perpetua Rosa pobre, pobrissima. Por mal de peccados fra ella antigamente lavadeira do casal do moinho, ou antes dos moinhos, porque para a exac o historica deve-se advertir que o moleiro possuia dous. Uma vez, que lev ra grande por o de roupa, tinha perdido tres saccas velhas e rotas. Bartholomeu quando tal soube quiz morrer.--"Juro por esta--dizia elle esbravejando e beijando os dous dedos indices cruzados sobre a bca:--juro que Perpetua Rosa me ha-de pagar as minhas tres saccas novas em folha, que me perdeu, a desalmada!"--Mas nem novas nem velhas; porque a verdade era que ella n o tinha com que as pagasse. Forado foi, portanto, ao moleiro fartar a vingan a com ordenar-lhe que no lhe tornasse a rapar os p s porta. Desde este fatal dia nunca mais Bartholomeu da Ventosa p de encarar com a lavadeira: o seu odio vivia involto e aquecido na imagem das tres saccas gravada naquelle cora o de avarento. Assim para elle seria cousa monstruosa e abominavel s o imaginar a possibilidade de seu filho Manuel casar com Bernardina, a quem a pobreza f ra de sobra para impedimento dirimente, quanto mais o ser filha de semelhante me. Tal era a difficuldade insuperavel que se oppunha unio dos dous amantes. E os mezes am passando, e as murmura es crescendo, e saltando j das lavadeiras para as beatas. Tinham visto mais de uma vez (dlzia-se: valha a verdade) o mo o moleiro rondando a deshoras a barraquinha da beira do rio. Havia tambem quem dissesse que nas madrugadas de alguns domingos, quando a senhora Perpetua Rosa saa para a missa das almas, se enxergava ao lusco fusco um vulto, que, cosendo-se com os choupos, se aproximava da porta da Bernardina, e... e etcaetera. Era muito v r! Mas a cousa a correndo, e no fim de contas quem ganhava com essas historias eram as linguas dos maldizentes, que se refocillavam na palangana da murmura o, e o diabo que se lambia para, por estas e por outras, os catrafilar a seu tempo. Veio a quaresma: sancta quadra; mas que por isso mesmo s vezes boa de mais. Desobriga vae, desobriga vem, sabe-se muita cousa. O padre prior andava j com a pedra no sapato; porque elle no era c go nem mouco. Meu dicto, meu feito. Certo dia (por signal que era uma sexta-feira), quando o sacristo veio abrir a porta da igreja, estavam j no adro espera Perpetua Rosa e Bernardina para se confessarem. N o tardou o prior. Aviou-se a me: ajoelhou a filha: persignou-se, benzeu-se, disse mea culpa, e come ou sua confisso. Se isto fosse uma historia de polpa, cortesan e culta, viria neste ponto o casus foederis de eu tomar a postura tragica a la moda, carregando as sobrancelhas, e dizendo em tom soturno e lento:--"O que ahi se passou entre o veneravel anci o e a donzella ninguem o soube!--!--!--!--Mysterio!--!--!--! Acontecimento horrivel e fatal!--!--!--! As lagrymas ardentes do velho caram sobre a cabe a da infeliz ajoelhada a seus ps, cujo futuro (n o o dos ps, mas o da infeliz) era de maldic o!--!--!--!" Limitada, por m, a minha narrativa a chan e pleba recorda o de um pobre parocho d'aldeia, reflectirei em summa, que me n o licito revelar o segredo do confessionario. Os sigillistas j deram que fazer ao marquez de Pombal, cuja consciencia, como todos sabem, era delicadissima em materias de orthodoxia catholica, e em tudo. Calo-me, porque no quero ca r no erro que elle condemnou. Direi s que foi mui demorada a confiss o de Bernardina, e que, ao alevantar-se d'ante os ps do prior, ella trazia os olhos como punhos: e digo-o, porque o viram os circumstantes, a saber, o sacrist o e a senhora Perpetua Rosa, que devotamente a descabe ando a penitencia em quanto a filha se desobrigava. Ao sol posto desse mesmo dia o prior espairecia a vista pela veiga coberta de verdura, assentado no cruzeiro, segundo o seu costume. A brisa da tarde era fria e aguda, porque a primavera comeava apenas; mas o velho parocho parecia n o a sentir, embebido em cogita es; e to fundas am estas, que, em vez de traar na terra com a bengala as usuaes figuras geometricas, ou anti-geometricas, conservava-a immovel e perpendicular, com as mos cruzadas sobre o cast o, firmando a barba em cima. Conhecia-se-lhe no olhar e no mecher tremulo dos beios, que algum grande cuidado o inquietava. E tanto assim, que nem reparou nos tres signaes das ave-marias, deixando-se ficar sentado, e at , oh profana o! com o chapeu na cabea. Felizmente n o passava ninguem naquelle momento, que podesse notar a involuntaria irreverencia do distrahido pastor. Mas um vulto assomou l ao longe, e os olhos do velho brilharam como animados por vida nova. Quem quer que era descia do monte, e vinha para a banda do rio. O caminho passava perto do adro: o prior ergueu-se, estendendo a m o, e brandindo a bengala na direc o do vulto. "Oh Manuel! psio, Manuel! chega fala! Oh rapaz!" O filho do moleiro (porque era elle) hesitou um pouco. Alguma cousa lhe ro a na consciencia. Mas vendo o prior em p com ar de quem estava resolvido a ir atravessar-se-lhe diante, cortou para elle com o barrete azul e vermelho na m o. "Boas tardes, padre prior: quer alguma cousa?" "Quero que voc chegue aqui, porque temos que falar." O tom com que estas palavras foram proferidas, e mais que tudo aquelle voc , fizeram estremecer o Manuel da Ventosa. O prior tractava todos por tu, e o voc na b ca delle era presagio infallivel de temporal. O rapaz parou diante do velho com os olhos cravados no cho, torcendo e destorcendo a orla do barrete que tinha entre as m os. O padre prior mediu-o de alto a baixo, e comeou ex abrupto: "Ent o que historias so estas da Bernardina, s velhaco da conta benta? Sabe o que fez, grandessissimo tractante? Aonde foi voc aprender isso? (Esta pergunta era asnatica). a doutrina que eu lhe ensinei em pequeno? De que tem servido os exemplos de modestia e honra que lhe d seu pae? De ser um vad o, um seductor, um... Deixe estar: a cadeia no se fez para as aranhas, e elrei nosso senhor (o bom do parocho puxava em politica para a eschola historica) ainda n o mandou queimar a nu de viagem..." "Eu, padre prior... como lhe a dizendo--interrompeu atarantado o saloio, coando na cabe a, e procurando atar o fio das suas idas inteiramente confundidas. "Cale-se; n o me responda:--proseguiu o velho parocho, achando talvez pouco cinco perguntas para ouvir uma resposta.--Diga-me: que ten es eram as suas enganando uma rapariga honesta?" "Eu..." "No me replique; j lh'o disse. Lembre-se de que o seu pastor que lhe fala. Ahi est porque voc ainda n o veio desobrigar-se. Pensava que, por ella ser miseravel e sua me uma triste viuva, n o tinham ninguem neste mundo? Enganou-se. Tem-me a mim. Saiba que a poder que eu possa ha-de r bater com o costado na India, ou casar com a Bernardina." Aqui o pobre rapaz atirou-se de joelhos a chorar aos p s do velho, e exclamau soluando: "E isso o que eu quero!... Juro-o por aquella arvore da bella cruz que alli est..." "Vera cruz, salvage! vera cruz!--interrompeu o prior, visivelmente abrandado com o pranto, humildade, e declara o categorica do mo o moleiro. "Mas, como eu a dizendo--proseguiu este--por'mor daquella diabrura das saccas meu pae n o pde tragar a senhora Perpetua Rosa. Se lhe falasse em tal, fazia-me os ossos t o miudos como a picadura da m. Se a Bernardina tivesse dote, ainda talvez elle consentisse... Mas sem isto; bem lhe sabe do genio. Se o padre prior podesse adivinhar o que me tenho ralado, havia de ter d de mim. No como, n o durmo, ando doudo. No basta a massada que gramei... Ahn! ahn! ahn!" Chorava em berreiro, e o ch ro no o deixava continuar. As lagrymas come aram tambem a bailar nos olhos do prior, que ficou por alguns momentos pensativo. "Levanta-te, rapaz dos meus peccados:--disse elle por fim, puxando pelo brao do moleiro.--Vamos; confessa a verdade: est s arrependido do que fizeste?" "Estou, sim senhor! Ahn! ahn!" Nesta parte, apesar do chro e solu os, parece-me que o saloio mentia. "Promettes casar com Bernardina, se teu pae consentir?" "Prometto, sim senhor! Ahn!" "Ora, pois, socega, e no chores. Deixa o caso por minha conta. Volte para casa, e n o me torne a rondar pela beira do rio. Entende? Olhe que!..." O prior estendeu a bengala para o lado dos moinhos, que assobiavam l no alto, e Manuel da Ventosa voltou cabisbaixo e a passos lentos pelo caminho por onde viera. Sentia confusamente que se aproximava a crise mais temerosa da sua vida. Ent o o padre prior assentou-se outra vez no poial do cruzeiro, e recau em profunda medita o. Depois de um bom quarto de hora, poz-se em p e encaminhou-se para o presbyterio. Tinha anoitecido. De memoria de homens nunca ceira t o tarde! E andando, o velho sacerdote repetia aquellas palavras do livro de Job, onde, entre parenthesis, ha mais philosophia que n'um aduar inteiro de philosophos: Nudus egressus sum de utero matris meoe, et nudus revertar illuc[2]. O porque o dizia, bem o sabia elle! Ceiou sem dar palavra: resou o breviario: deitou-se, e apagou o candieiro. Contra o costume, Fr. Bernardo de Brito e Fr. Diogo do Rosario ficaram aquelle sero na estante. A ama sentiu-o assoar-se, tomar tabaco, e escarrar at muito tarde. Cousa rara! signal evidente de que tinha negocio de vulto, que lhe embargava o dormir! Peior foi pela manhan. Apenas luziu o buraco, o padre prior saltou da cama; calou os sapatos engraixados; vestiu a loba nova; pediu o chapeu de tres ventos, a bengala de cast o de prata, e os oculos fixos, que s punha em dias de missa cantada, e disse ama que se aviasse com o almoo, porque tinha de sa r cedo. Emquanto a tia Jeronyma, para maior brevidade, fazia umas papas de milho, o prior abriu um contador enorme, destes que os nossos grandes amigos inglezes nos vo agora levando em logar de vinho do Porto, tirou para f ra uma folha de papel almasso, e bradou: "Jeronyma! oh Jeronyma!" A velha chegou ao corredor da cozinha com o abano na mo. "Est o quasi feitas:--disse ella.--Tenha paciencia um instantinho." "No isso, mulher:--replicou o prior.--Ouve c: vae ao forro da escada e traze-me aquillo." "Isso, eu l ponho. Mas, com sua licena, d'onde veio maquia grossa? Hontem n o houve baptisado nem enterro..." E a tia Jeronyma estendia a mo esquerda coberta com a ponta do avental, para n o sujar a maquia de que falava, e ao mesmo tempo volvia olhos vidos, ora para o bofete, ora para o prior. "Qual carapu a!--replicou elle fazendo-se vermelho.--Tira-se; no se p e. Faa o que lhe digo, e d ao dmo o que sabe." A ama empallideceu. As palavras tira-se; n o se pe eram de ruim agouro; mas vendo j o padre prior azedo, calou-se e obedeceu. D'alli a pouco o velho parocho comeava a tirar de um p de meia uma, duas, tres peas de ouro; foi tirando at setenta: restavam apenas obra de uma duzia dellas. "Basta:--rosnou o prior.--Pde occorrer uma doen a. Ento, Jeronyma, vem essas papas?!" E dizendo isto embrulhava muito bem as setenta pe as na folha de papel que tinha sobre o bofete, e mettia-as na algibeira da loba. "Guarde isso, Jeronyma:--disse elle ama, que entrava com as papas. E empurrou pela mesa f ra o exangue p de meia. A ama, ao v r aquella horrorosa sangria, esteve a ponto de largar a frigideira no cho, e de deixar o bom do padre sem almo o. Quando voltou para a cosinha, ouviu-a o prior soluar. "Nudus egressus sum de utero matris meoe, et nudus revertar illuc." Murmurando esta profunda senten a da Biblia, o reverendo parocho saiu pela porta fra. A ama, vendo-o sa r, andava como pasmada. Nestas idas e voltas havia nascido o sol. O Bartholomeu da Ventosa, afanado com a sua lida, em p porta de um dos moinhos, bracejava, ralhava, praguejava como um possesso. Os brutos dos moos tinham-lhe quebrado j duas cordas ao enquerir as cargas de uma rcua de machos pimpes presa argola do moinho. De repente viu um casto de bengala sa r-lhe por cima do hombro. Voltou-se: era o prior. "Ol, vossenhoria por aqui a estas horas?!... Psio, oh Z Dorna, olha o rabicho daquelle macho!... Grande novidade, padre prior! grande novidade!... Raios te partam! Que tal'st o filho do diabo?!" Estas duas ultimas jaculatorias eram acompanhadas de dois reverendissimos pontap s na barriga de uma das cavalgaduras, que j estava carregada, e que parecia achar mais prudente deitar-se em quanto as outras se aviavam. O moleiro dava assim a modo d'umas lembran as de Napoleo dictando ao mesmo tempo a dous secretarios. "Falaste, Bartholomeu!--replicou o prior.--Novidade, e grande! Ha quarenta annos que sou parocho desta freguezia, e a primeira vez que tal me succede. negocio intrincado, e quero ouvir o teu conselho, porque tens caixa para as cousas. Rapazes--accrescentou dirigindo-se aos mo os do moinho--safa d'aqui, que tenho que dizer ao patro em particular." "Rua!--gritou o moleiro correndo com for a ambas as mos pelo colete e pelos cal es, donde sa u um nevoeiro de farinha.--Entre vossenhoria." O prior entrou, e foi assentar-se n'uma tripea que estava a um canto: Bartholomeu assentou-se sobre um sacco de trigo defronte delle. Os dous velhos mediram-se com os olhos por momentos, como se cada um delles tentasse ler no rosto do outro os pensamentos que lhes vagavam na alma. A primeira id a que occorreu ao moleiro foi a de alguma festa que o parocho pretendia fazer, e para que lhe vinha pedir dinheiro. Batia-lhe o cora o com violencia, e j imaginava trinta mentiras para evitar essa calamidade. "Homem--disse por fim o prior--tenho em minha m o uma somma avultada; mais de quinhentos mil ris (o moleiro estendeu o pesco o); pertencem a um devoto, que os quer dar em dote a uma rapariga pobre desta freguezia. Encarreguei-me do negocio, e deitei as minhas linhas para dar no vinte. Mas temo no acertar, e venho bater comtigo. s honrado, meu Bartholomeu, posto que um tanto sovina: falo-te com o cora o nas mos, e..." "Isso o que dizem por ahi essas linguas perversas--interrompeu o moleiro, fazendo-se vermelho de colera;--essas mandrionas do soalheiro, porque lhes no metto no bandulho o meu remedio. Os diabos me levem..." "T , ta!--acudiu o prior.--Ajustaremos contas na desobriga. Vamos agora ao que serve. Sem refolhos: a quem te parece que dmos este dote? Parafusa l ." O moleiro poz-se a scismar, alevantando os olhos para o tecto, estendendo e revirando a mandibula inferior, e batendo de quando em quando na testa. "Nada ... a Genoveva da Theresa no:--disse por fim.--Tal m e, tal filha. Aquella est arrumada." "Nem pensar n'isso bom:--retrucou o prior.--Libera nos Domine. Anda, v se atinas." "A Clara da Fonte tambem n o..." "Uhm!--rosnou o clerigo, abanando a cabea. "A Catharina Carri a menos. Heim?" "T carapu a! Ahi vae j! Fundia-me o dote em menos de um anno com tafularias tolas. Adiante." O leitor p de prever que o Bartholomeu da Ventosa e o seu parocho estavam no caso de duas linhas parallelas, que, prolongando-se indefinidamente, nunca podem encontrar-se: o pensamento do prior dirigia-se a Bernardina, e o moleiro j tinha affastado por tres vezes do espirito essa lembran a como uma ida importuna. "Eu--disse elle finalmente, co ando na cabea--tinha c uma ida ... mas n o sei... No digo nada... Acabou-se." "Desembuxa l , homem! Foi para te ouvir que vim aqui." "Ento sempre lh'o direi. Minha sobrinha Joanna um anjo. Boa rapariga! famosa rapariga! Meu irmo Barnab no pede esmola, verdade; mas anda atrapalhadote. O casal dos Canios arrasou-o este anno: deve-me j vinte moedas, e..." O prior cortou-lhe o enthusiasmo pelos seus parentes com uma gargalhada estrondosa. O moleiro ficou de bca aberta no meio daquelle destampatorio. "Oh, oh, oh! querias que o meu dote servisse para pagar as tuas vinte moedas?! No assim?--E, voltando immediatamente ao seu serio, proseguiu:--Bartholomeu! Bartholomeu! Por causa da iniquidade da sua avareza me irei, e o feri: diz o propheta. A cubia que te cega ha-de baldear-te no inferno, como tu bald as alli para a ribanceira as ms que j no prestam. Queres mentir tua consciencia, enganar o teu pastor, quando elle te vem pedir que o aconselhes? Isto no bonito, Bartholomeu! No bonito!" "Mas, padre prior..." "Qual mas, nem meio mas! Deixemo-nos de historias. Bem diz o dictado:--Fui a casa da vizinha envergonhei-me; vim minha remediei-me.--O melhor seguir a primeira lembrana." "Ent o, se vossenhoria j tinha posto o dedo..." "Tinha, tinha!--retrucou o prior:--Queria s ver se tu concordavas comigo: mas sacas-te com uma exquisitice de fazer arripiar. No temos feito nada, meu Bartholomeu: n o temos feito nada!" E dizendo e fazendo, o clerigo erguia-se como para sar. "Pois diga vossenhoria--acudiu o moleiro ainda atrapalhado com o revertere:--e enforcado morra eu se..." "N o praguejes, homem! Ahi vae! Quem ha-de apanhar o dote a Bernardina d'ao p do rio..." A historia das saccas era espinha que ainda lhe estava atravessada na garganta: ouvindo tal nome, o velho no p de conter-se: "Quem? A cara de fuinha da filha de Perpetua Rosa? O padre prior est brincando. Olha as lesmas! Umas desmaseladas, e caloteiras! Isso, nas unhas da m e, era fogo viste, linguia. Ter ans me matem..." "Espera, homem, espera! No isso o que se diz na aldeia. Tu tens osga s pobres mulheres, e cega-te a paix o. Desmaseladas?! Basta olhar para ellas; como andam limpas na sua miseria. Caloteiras? coitadnhas! porque no t m com que pagar ao Agostinho da tenda? Pagar-lhe-ho agora. Quinhentos mil r is ainda ficam livres, e Bernardina ha-de com elles achar um bom casamento." Emquanto o prior falava, uma ida bem-aventurada illumin ra subitamente a alma do moleiro. As suas tres saccas podiam no estar perdidas de todo; podiam voltar melhoradas ao moinho. Sentiu a colera desvanecer-se-lhe, como a nuvem negra que varre a brisa do norte. " verdade que a gente s vezes tem c as suas birras:--disse elle com certo ar que queria ser fino e saa parvo.--Cega-se com as pessoas! Vossenhoria bem sabe o que faz: d o dote a quem quizer, que diante de mim ninguem ha-de tugir nem mugir contra vossenhoria." "Pois bem!--proseguiu o prior.--Esta lebre est corrida. Resta achar um noivo para Bernardina. Isso bico d'obra que requer escolha e siso. Pensa no caso, Bartholomeu! Vamos a vr se acertas melhor desta vez. Agora outra cousa. Tu s capaz: tens sabido guardar o teu dinheiro; sabers guardar o alheio. Eu para isso n o presto: sou um mos-rotas. Aqui te deixo setenta louras, que a seu tempo se h o-de entregar a quem tocarem. Incumbes-te d'isto?" "Vossenhoria manda:--respondeu o moleiro, cujos olhos brilharam com o fulgor devorante da avareza ao vr rolar as pe as, que o prior tivera a cautela de desembrulhar sobre a grande arca das maquias. O velho parocho usava de uma esperteza de Satans para fazer uma obra de Deus. E, despedindo-se de Bartholomeu, sa u. O moleiro ficou em p e immovel. Estava, mal comparado, como o asno de Buridan entre as duas medidas iguaes de cevada: nem se podia affastar do ouro, nem ousava faltar cortezia devida ao padre prior. A final, por um movimento sublime de energia moral, correu pela porta fra atr s delle, que j a a certa distancia. Neste correr parecia-lhe sentir estalar o que quer que era dentro do cora o. "Se vossenhoria servido do nosso almo o--bradava o moleiro--no tarda ahi um credo. Pobre, mas de boamente." "Obrigado! obrigado!--respondeu o prior sem se voltar, brandindo para tr s a bengala, como quem dizia adeus. E pensava l comsigo:--F ra, miseravel sovina!" Apenas o bom do clerigo dobrra a quina, do muro de uma quinta, que se dilatava desde a encosta at a baixa do rio, truz!... Com quem havia d'elle dar de rosto? Com o Manuel da Ventosa, de espingarda ao hombro, rede s costas, chumbeira e polvorinho a tiracolo. O saloio ficou emba ado. "Com que, sim, senhor! J voc por aqui me apparece a estas horas,--disse o prior com um gesto folgado, que forcejava por ser colerico.--Heim?" " verdade, padre prior!... Entreter um bocado... A manhan estava boa." "Pois n o! Aos pardaes... bem sei! Ora corte-me para casa, e v ajudar seu pae, o pobre velho, que l anda lidando... e voc feito ca ador das duzias... Caador! Pensava agora o sonso que me enganava! Vamos marchando!" Deu alguns passos para diante, emquanto o Manuel da Ventosa fazia o mesmo em sentido contrario. Depois voltou-se de repente. O saloio tamb m parra a olhar para tr s. "Ol. Escuta c , Manuel!"--O Manuel aproximou-se. "Depois d'amanhan necessario que voc se bote aos ps de seu pae, que lhe conte a boa obra que fez, e que lhe pe a licena para casar com Bernardina..." "Pelo amor de Deus, padre prior!--interrompeu o triste do rapaz cheio de susto.--Com os figados delle, p e-me os ossos n'um feixe." "No se perdia nada:--acudiu o velho.--Mas n o anno de fortuna. Era melhor que se tivesse lembrado a horas. Fa a o que lhe digo, que no lhe ha-de succeder mal nenhum! Vamos." "Se vossenhoria entende?!..." "Entendo, sim, senhor. A paschoa n o tarda; e passada a quaresma voc ha-de receber-se. Mas d'isto nem palavra! E c rte!" O tom com que o parocho proferiu estas palavras deu uma alma nova ao Manuel da Ventosa. Imaginou logo que o padre prior tinha aplanado o negocio. No sabia se risse ou se chorasse. Instinctivamente agarrou a m o do clerigo e beijou-a. A sua gratido era sincera. O padre prior sentia palpitar esse vivo sentimento naquellas m os callosas, que apertavam a sua mo enrugada, naquelles labios ardentes, que pareciam devora-la. Conheceu que estava arriscado a deslizar da habitual severidade, e, affastando-se rapidamente, bradou com voz aspera, mas alguma cousa tr mula:--Deixa-me, pateta! Deixa-me! ... e Deus te alumie para que seja esta a ultima das tuas rapaziadas." Fez bem em alongar-se: duas lagrymas lhe rolaram pelas faces abaixo. Naquelle dia a tia Jeronyma chegou a desconfiar de que o padre prior tinha a bola desarranjada. Toda a manhan no fez sen o cantarolar, ora um pedao do Tantum ergo, logo um versiculo do Te Deum Laudamus, e assim por diante. At andou por mais de meia hora a brincar com o gato do presbyterio. E, para resumir em poucas palavras a extravagancia de que parecia possuido, baste dizer que, ao descalar-se, arrumou os apatos para um canto, e depois de ter lido um capitulo da chronica de Cister, pela primeira vez da sua vida metteu na estante essa especie de Carlos-Magno monastico sem o pr de pernas ao ar. Aquelle cora o sentia dilatar-se na sancta paz do Senhor. E porque n o cabia o bom do padre na pelle? Porque tinha feito felizes duas creaturinhas, sacrificando-lhes as suas economias de quarenta annos. Elle achava isso uma cousa naturalissima; mas a providencia dava-lhe uma parte da sua recompensa nessa alegria suave e intima, que nunca pde entrar nos palacios dos grandes e poderosos do mundo; porque o premio, no do beneficio insolente da opulencia, mas sim da abnega o caridosa da humildade. O padre prior tinha tido tempo de estudar individualmente o caracter dos seus freguezes, e por isso segu ra aquelle caminho para chegar ao fim moral que se proposera. De feito o velho moleiro andou abstracto todo o dia. Pois de noite? No pregou olho! s escuras via diante dos olhos as setenta peas a reluzirem como uma vis o ao mesmo tempo celeste e infernal. Depois, naquellas horas longas de vigilia punha-se a calcular a ac o prodigiosa que ellas teriam incorporadas com mais de outras tantas que elle tinha enterradas. Era o que bastava para dar o harmonioso epitheto de minha azenha do Ignacio Code o, e pr l o seu Manuel a labutar, e a ganhar dinheiro, muito dinheiro: e elle a tomar-lhe contas ao sabbado: meia moeda ... uma moeda ... duas moedas; e a pilha-lo em uma gaziva de seis vintens; e despertava daquella especie de extasi ao atirar-lhe o primeiro pontap. Era um regalo! Ria s vezes ao lembrar-se de uma que elle havia de pregar no outro dia ao Agostinho da tenda. Essa estava segura. Ia-lhe comprar o crto de Perpetua Rosa por metade, por um ter o, talvez.--"Oh s Agostinho, voc no v que isso dinheiro perdido? Cinco mil r is! seis mil ris! Vamos; minha a divida."--E tripudiava na cama, e assentava-se, lanando m o dos cal es, para ir, para correr, para voar, antes que algum diabo (pensava elle) fosse metter no bico ao usurario do tendeiro a mudana de fortuna de Bernardina. Chegava, naquelle fervor, a enfiar os cal es mas reca a na cama ao vr, ou antes ao n o vr, que era escuro como breu. Momentos havia em que as suas id as tomavam outro curso: representava-se-lhe seu irmo Barnab a largar-lhe o casal dos Canios pelas vinte moedas e por mais umas trinta pe as com que o engodava; e elle a fazer estercar as terras, e alqueivar, e lavrar, e semear, e mondar, e ceifar, e a ter na eira uma serra de trigo durazio, e achar uma excommungada de uma velha pedinchona a furtar-lhe sorrelfa uma ab da daquelle grande trigo, e elle a desanca-la com uma tranca. E saa desse pesadello de homem acordado a ranger os dentes, e com a m o agarrada ma aneta do catre. D'ahi a pouco vinha-lhe outra enfiada de imagina es, e d'ahi outra, e outra, at que por fim a id a de que as setenta peas eram suas lhe ficava de tal modo encravada e enraizada na alma, que o arrancar-lh'a de l seria o mesmo que metter-lhe no bucho uma apoplexia. Ento punha-se a scismar no pensamento capital e gerador de todas essas imagens bemaventuradas que lhe luziam no olho, o como chamaria muxilla as setenta do dote. Abafa-las? Nega-las ao prior? Estremeceu horrorisado; porque Bartholomeu era homem de probidade, a seu modo, que, sem malicia seja dicto, vinha a ser um modo como o de tantos homens honrados que todos ns conhecemos. Nada! Era preciso um meio natural, decente, legitimo de arranjar o negocio. Ca u ento no que o prior queria que elle ca sse. Casou in mente o seu Manuel com a Bernardina. Feito isto, as peas eram suas; suas porque o Manuel pellava-se com medo delle, e casado ou solteiro havia de ficar-lhe sempre debaixo dos cabe es. Assentado este ponto, o moleiro sentia um certo refrigerio interior que o consolava. N o tardou a adormecer no somno do justo, e em placidos sonhos balouou-se todo o resto da noite entre a azenha do Ignacio Code o e o casal de seu irmo Barnab . Saa s vezes desta hesita o beatifica sonhando no gatazio que a pregar ao Agostinho, e ria com um rir de innocencia. Era um sancto velho aquelle Bartholomeu da Ventosa! O leitor deve estar j sufficientemente aborrecido de to comprida historia do moleiro, da lavadeira e do prior; por isso n o o farei assistir s explica es entre o pae e o filho. Mais repousado o sangue com o dormir, Bartholomeu reflectiu pela manhan que o propor ao parocho o seu Manuel para noivo de Bernardina tinha suas parecen as com o haver-lhe proposto para ser dotada sua sobrinha Joanna, ida maldicta que lhe tinha custado uma risada nas suas barbas e um rev rtere com texto de Biblia. Por outra parte pensava que Manuel era o seu unico herdeiro, e que se Bernardina trazia para a ceia, elle levaria para o jantar, principio consagrado pela philosophia saloia, talvez desde o tempo dos mouros. Emfim o pae nestes vaivens, e o filho com os receios que o leitor pde imaginar, fizeram ao declararem-se uma verdadeira scena de comedia. Ao cabo, porm, de tudo entenderam-se. Assim o padre prior, custa das suas economias de quarenta annos, teve a consola o de fazer tres sermes, um a Bartholomeu sobre a cubi a e avareza, outro a Manuel sobre o trabalho, sobriedade e mais virtudes annexas condi o de pae de familia, outro finalmente a Bernardina sobre a honestidade, modestia e sujei o das mulheres casadas. Depois, quando veio a paschoa, regalou-se de atar o la o matrimonial entre os dous amantes, acabando por uma vez com as interpella es das lavadeiras, com as espreitaduras dos curiosos, e com as murmura es do beaterio. Custou-lhe a brincadeira setenta peas, e o atirar rua o sermo sobre a avareza, porque o Bartholomeu continuou a ser sovina at a hora da morte, na qual piamente se deve crer o catrafilou o diabo, no s por ser unhas de fome, mas por ter refinado a ponto, que, perdendo a vergonha, j come ava a sizar nas maquias, com escandalo dos freguezes, e grande mortifica o de seu filho Manuel. Agora duas palavras sobre a festa do orago da parochia, o meu rico S. Pantaleo. O leitor vio o padre prior caminhando pela estrada dolorosa da moral evangelica: necessario que o veja tambem radiante no meio das pompas do culto. * * * * * [1] Assim se denominava ainda ha poucos annos uma casa, na proximidade da cada uma das aldeias vizinhas de Lisboa, emprestada por algum ricao ou alugada, em que se ajunctava nas noites dos domingos para brincar (dan ar) a mocidade aldeian. [2] Nu sa do ventre de minha m e, e nu voltarei para alli. Job: cap. 1, v. 21. IV ALHOS E BUGALHOS. S. Pantaleo era, como disse, o orago da freguezia aldeian, cujos habitantes mais conspicuos o leitor j conhece, e por via dos quaes o puz em contacto com as differentes classes de que se compunha aquelle mundozinho, ou, para melhor dizer, e falar de modo que no me entendam, aquelle microcosmo. Esse grecismo expremeu-mo do espirito S. Pantale o, que, conforme o que bem pondera a folhinha, foi medico, e os medicos finam-se por grego. O padre prior e o sacristo representam a igreja espiritual e materialmente, o Agostinho da tenda o commercio, o Barnab a agricultura, a senhora Perpetua Rosa a industria, e finalmente o honrado Bartholomeu da Ventosa representa nos seus sonhos a industria-agricola, ou a agricultura-industrial, genero de existencia lembrado pelos economistas da Alemanha para salvar as classes laboriosas do horrivel futuro com que as ameaa o vapor; porque se ha-de advertir que alguns restos de prudencia e juizo que ainda havia c por esta nossa Europa varreu-os Deus para aquelle canto do mundo, a que ns chamamos a terra das theorias e das chimeras; n s os homens do meio dia, que fazemos phalansterios e no sei quantas mais comedias politicas capazes de fazer rir ... quem direi eu? O proprio mirradissimo S. Pantale o da cidade eterna. Eterna, entenda-se, at que o primeiro cometa venha embrulhar na cauda este nosso microcosmo t o caturra e parvo chamado o orbe terraqueo. Celebra-se a festa de S. Pantaleo a vinte-sete de julho; data preciosa e averiguada por mim em largas vigilias, consumidas em revolver breviarios, antiphonarios, legendarios, missaes, sanctoraes, e livros historiaes, na phrase daquelle grande rhetorico Gomes Eannes. Est a folhinha pontualissima; podem acreditar-me! Celebrou-se, celebra-se e ha-de celebrar-se a festa de S. Pantaleo, o bemaventurado physico, todos os vinte-sete de julho, at a consumma o dos seculos; salvo o caso de ninguem se lembrar d'aqui a cem ou duzentos annos de que existiu no mundo o meu rico sancto; mas espero tal no aconte a ficando lanada a sua memoria nestas paginas, s quaes incontestavelmente pertence a immortalidade. "Mas--acudiro os leitores--que nos importa a n s que essa commemora o seja a vinte-sete ou a vinte-oito: seja em julho ou em dezembro? Vamos festa, e deixemo-nos de historias."--Devagar, devagar! justamente porque isto uma historia grave, sisuda, erudita, que eu no me havia de metter abrutadamente na narra o, sem deixar averiguada, esmiu ada e fixada a data precisa e irrecusavel do meu recontamento. Sabem o que uma data? Uma data , depois de uma questo de orthographia, do talho e feitura de uma judia, a que os nossos velhos chamavam uma aljuba, e depois de um phalansterio, a que os dictos velhos chamariam uma sandice, a cousa mais importante que conhe o neste valle de lagrymas. No caso presente, supponhamos que eu fosse um cabea de vento, que atirasse com S. Pantale o para vinte-sete de dezembro. Ficavamos aceiados; no tem duvida! Ahi se me a metter a segunda oitava do Natal com o meu sancto martyr; e eu a querer revestir o padre prior para a missa cantada e a vr-me doudo na escolha da vestimenta. Vermelho? Saltava-me a canzoada dos criticos:--F ra ignoranto! Vermelho na segunda oitava da Natividade!? Vae ler o Claudio de Vert, alarve! vae ler o Campello, o Gavanto, o Lambertini."--Atarantado com a grita, atirava-me ao gavet o da vestimenta branca. Peior! Vinha-me outra surriada de sotavento:--Olha a alimaria! No querem ver? A um martyr vestimenta branca! Hypocrita! que nos anda aqui a pr gar sermes a favor dos padres e dos frades, e ainda n o sabe qual a sua vestimenta direita. Ahi tem os taes escrevedores d'agua doce, que se riem socapa das arcadias, e das odes pindaricas, e da sciencia em notas, e das chronologias dos academicos. A gente que fazia essas cousas trazia as vestimentas na ponta da lingua: distinguia-as como hora horae de servus servi. Vae ler, oh taboa rasa de Locke, vae ler o Prado, o Clericato, o Bauldry, o..." E eu, que no podia ir ler tanto calhama o em folio, em quarto, em oitavo, e em doze, estacava, punha-me a gaguejar, perdia o fio da narrativa, e no proseguia nesta notavel historia do padre prior, a qual me abriria as portas do Instituto Historico de Par s, se eu fosse to crean a que me resolvesse a pagar no sei quantos francos por anno para gosar dessa incomparavel honra. Por isto fa am os leitores ida das deploraveis consequencias de um erro de data!--"Por m--replicaro elles--quem te obrigava a tractares essa quest o chronologica, superior talvez s for as do teu entendimento? No foste andando at aqui sem te metteres nesses debuxos? Porque no descreves a festa, deixando aos entendidos em calendario o p -la na epocha propria?"--Bonissimos leitores, pensaes vs que eu sou o Manuel da Ventosa, que me deixe assim esmagar por uma saraivada de perguntas? Enganaes-vos! A resposta vae ca r dos bicos desta penna como as frechas de Apollo longe-asseteador caam no campo dos argivos, segundo resa Homero no capitulo primeiro da sua chronica das birras do Pelida e do Atrida: a minha tr plica vae tombar sobre os prelos convincente, irresistivel, irreplicavel. Ei-la. Finjamos por um momento que, em vez de consultar os respectivos auctores sobre a verdadeira casa de S. Pantaleo no taboleiro do calendario, nem sequer pensava nisso, e come ava ex abrupto a scena da festa aldeian. Que succedia? Como estamos no inverno, e eu gsto do inverno, principalmente quando ruge uma boa nortada (s o gostos), punha-me a descrever um destes formosos dias de dezembro ou de janeiro, em que o firmamento parece retincto de novo no seu to lindo azul; em que a verdura infantil das searas flor da terra sorri estirando-se dos topos arredondados dos outeiros pelo pendor de recostos levemente inclinados; em que a relva se mira luz vermelha da aurora no espelho do caramelo, que envidra a a superficie dos pegos e remansos dos regatos. Falar-vos-hia de uma abenoada missa do gallo na aldeia em noite de luar, missa mil e quinhentas vezes mais poetica do que toda a poesia protestante desde Luthero, o pae do protestantismo, at Strauss, que hoje lhe tira as derradeiras consequencias; falar-vos-hia, emfim, de mil cousas, muito bonitas, muito viosas, muito brilhantes, mas que viriam tanto a proposito de S. Pantale o, como o anho paschal daquella sancta velha da tia Jeronyma viria a pello da Natividade com o seu caldo tradicional de per, ou como o estylo do nosso drama moderno se casa com a linguagem da sociedade cujo transumpto deve ser. por esta razo que em cousas serias, quaes a presente narrativa, eu sou muito pechoso em averiguar tudo quanto p de contribuir para a perfei o de obras em que a frma de modo nenhum ha-de vencer a substancia:--e a essa classe pertencem estes estudos moraes. Resolvida e assentada a quest o de tempo e logar, sem o que no ha obra litteraria, segundo affirmam os glossadores e espivitadores daquella famosa embrulhada de Horacio chamada a Epistola aos Pis es, resta dizer alguma cousa cerca de S. Pantale o. Por muita importancia que eu ligue feira, aos foguetes, aos buscap s, s jarras de flores, aos tocheiros accesos, ao sacrist o, musica, aos festeiros, e ao padre prior, ligo muita mais memoria daquelle cuja festa trazia n'um rodopio toda a aldeia, e at tivera a influencia magnetica de alargar os fechos da bol a ao veneravel moleiro Bartholomeu. Tenham, portanto, paciencia; que j agora hei-de dizer-lhes duas palavras cerca do meu rico sancto. So reminiscencias do serm o, o qual, desde aqui fique sabido, foi feito e prgado por Fr. Timotheo, o fradalh o arrabido de mendicante e espoliada memoria. pouco mais ou menos um resumo da historia do sancto como a contou Fr. Timotheo. Parece-me que o estou ouvindo! S. Pantale o era um medico de Nicomedia: o bispo Hermolau converteu-o ao christianismo. Desde ento elle reduziu o seu receituario invoca o do nome do Senhor. Seguiram-se d'aqui duas consequencias graves: as suas curas foram mais baratas e mais rapidas, ao mesmo tempo que as offertas dos doentes escaceavam nos templos pagos, e os sacerdotes de Esculapio come avam a morrer litteralmente de fome. O resultado foi um clamor geral contra o pobre sancto: os sacerdotes accusavam-n'o de impio e de bruxo, os medicos de charlato. O odio contra elle chegou ao ultimo auge: s faltava uma occasio para a vingan a: esta no tardou a apparecer. "N o, que no havia de chegar!--rosnou o barbeiro, que, esp cado em frente do pulpito, meneava a cabea laudativamente de quando em quando, em honra da eloquencia de Fr. Timotheo, que, narrando a vida do sancto, esbravejava como um possesso.--N o, que no havia de chegar! Bastavam os medicos. Os medicos e os cirurgi es! Posto que at certo ponto perten a faculdade, hei-de dize-lo: a classe mais invejosa do merito, que eu conheo." O barbeiro pensava assim havia muitos annos: desde que f ra cruelmente arranhado por tres raposas, que os lentes do Hospital lhe tinham largado s pernas em um exame de sangrador. Boas ou m s, eram as suas doutrinas. Entretanto o arrabido continuava a lenda de S. Pantaleo: as id as que della conservo so as seguintes: Neste meio tempo veio a Nicomedia o imperador Maximiano. S. Pantale o restituiu perante elle a um paralytico o uso dos membros, o que nem os sacerdotes pagos, nem os medicos tinham podido fazer, mostrando assim quanto era poderoso o Deus dos nazarenos. Mostrar aos poderosos que se tem raz o contra elles o maior dos perigos do mundo. S. Pantale o experimentou-o. Lanaram-n'o s feras no circo: mas as feras, em vez de o devorar, vieram lamber-lhe os ps. Cresceu a colera do imperador. Mandou ata-lo a uma grande roda e solta-lo por uma ladeira abaixo; mas as pris es quebraram-se e o suppliciado ficou illeso. Ento ordenou que o degolassem. O sancto, segundo parece, estava j saciado de prodigios: ao golpe do algoz a cabea voou-lhe dos hombros, e a sua alma, subindo ao ceu, viu o proprio nome escripto no livro dos martyres. O inferno e a tyrannia tinham sido mais uma vez vencidos. Tal em poucas palavras a historia do sancto orago da aldeia, que constituia os dominios espirituaes do padre prior. A noite que precedeu grande solemnidade da parochia foi semelhante naquelle anno em que succedeu o caso da Bernardina ao que havia sido no anno antecedente; semelhante ao que costumam ser taes noites nos campos deste nosso bom Portugal. Um coreto coberto de velhos razes alteava-se porta da igreja: delle resfolgava uma selvagem e, s vezes, atrozmente desentoada musica, e em baixo crepitavam as fogueiras. Como faltariam fogueiras no mez de julho e em festa saloia? Os fogos nocturnos so o symbolo da alegria; mas cumpre que se repintem no ceu diaphano e estrellado. Debaixo de uma atmosphera crassa e negra o seu reflexo tem o que quer que seja soturno e infernal. O sentimento poetico est mais vivo e puro nas almas habituadas s harmonias campestres, do que em n s os habitantes das grandes cidades: por isto que os camponezes accendem no estio as fogueiras festivas, usan a que, como todos sabem, offende o nosso profundissimo e estupidissimo senso-commum. Eu, por mim, que, graas a Deus, n o tenho a honra de pertencer classe desses que lidam, contentes de si, por se bambolearem no vertice da animalidade pura, e que se chamam homens da vida positiva, digo que, por mais ardente que v o estio, amo uma fogueira no arraial em vespera de festa, e aquelle estourar e chispar dos foguetes que roam rapidos pelo manto escuro da noite. Sei tambem que o consumir-se polvora em esbombardear cidades, e em alastrar de cadaveres um campo de batalha cousa muito mais philosophica e sisuda, do que desbarata-la nas festividades supersticiosas do povo. Mas nem todos podemos ser philosophos, e eu tenho quda particular para a supersti o. E que quereis? O catholicismo jovial: o seu culto, como o vulgo o entende, ruidoso, e risonho, e brilhante, e attractivo, e sociavel, e por isso debalde trabalharieis por arranca-lo ao povo, que vive e morre no meio do trabalho, dos cuidados, das priva es. O domingo, o dia sancto, o orago da parochia s o os seus dias de contentamento e repouso. Abenoado quem inventou os oragos! Pois as invoca es da Virgem, e a advocacia dos sanctos?! Mil vezes bemdito quem os multiplicou! Ride-vos, se vos aprouver, dos que cr em que tal Senhora obra mais maravilhas que todas as outras Senhoras junctas; que tal sancto remedio infallivel para esta ou para aquella enfermidade. As preces levam pelo menos uma vantagem s drogas dos physicos: no custam nada, e s o mais ricas de esperana; e a esperan a a maior, quasi a unica virtude dos medicamentos. E depois as devo es, as promessas geraram as romarias, as festas, e logo as feiras e todo esse franco e alegre folgar das multid es, que voltam de l contentes, sem tedio e sem remorsos, o que nem sempre nos acontece nos nossos prazeres das cidades, a que bem longe estamos de associar nenhum pensamento de Deus. Alguns economistas destes tempos dizem--"as feiras v o-se"--como certos doutores de ha uns annos diziam, alludindo ao christianismo--"os deuses vo-se."--Oh semsabor es de meus peccados! Nem os deuses, nem as feiras se vo! Tudo isso fica, porque o abriga e salva a egide encantada do amor popular: v s que tendes seguro o passardes; e se fizerdes o vosso ablativo de viagem n'alguma aldeia como a do meu padre prior, l do adro, onde haveis de jazer, alevantae a caveira descarnada, no dia de S. Pantaleo, ou do sancto influente do logar, qualquer que elle seja, e vereis o foguete subir aos ares, e os Manueis e as Bernardinas de ent o a feirarem-vos em rebemdita sobre as cinzas, que as ventanias tero espalhado, e ouvireis o ramram da guitarra, e o cantar ao desafio, e o bradar dos leil es de cargos, e aviventar-vos-ha o olfacto o cheiro do incenso, involto em rolos de fumo, que, espalmando-se nas faces dos gordos cherubins pintados no tecto, surdiro pelo portal da velha igreja remo ada d'ochre, e viro embalsamar os ares: inclinae, n o as orelhas, que no as tereis, mas os ouvidos em osso, e escutae o futuro padre prior alevantando o Gloria, e o pr gador--ai! j n o ser um fradalh o arrabido!...--contando, voz em grita, as maravilhas do martyr. Ento reconhecereis a vaidade das vossas doutrinas, e morder-vos-heis e damnar-vos-heis, dizendo com as vossas costellas esbrugadas, falta de botes:--Bem nos pr gava aquelle grande chronista do padre prior! Aquillo que era homem de juizo! Miserere mei, Deus, quia asinificavimus! Compadece-te de n s, Senhor, porque asnemos!" Agora por asnear, acudamos a um reparo antes de ir mais longe. J ouo um destes oragos de botequim (tambem aquelles templos tem seus oragos); um destes eruditos em Balzac e Marryat, em Paul de Kock e Dickens, sacudir a melena annelada, affastar da b ca o charuto apertado entre o pae-de-todos e o fura-bolos, salivar com os dentes cerrados, dando um som de espirro de gato, tomar a postura solemne que estudou n'uma gravura em madeira do Antony de Dumas, e dizer-me em tom pausado e soturno:--Oh malfeliz, malfeliz! que em vez de empregares esses raios do fogo ceruleo e invisivel das inspira es estheticas, que, da mysteriosa solido em que se dilata o halito celeste da summa intelligencia, desceu aos abysmos ntimos da tua essencia, em depurares o sentimento religioso das suas formulas materialisadas para o transportares s regi es ideaes do culto ntimo, seguindo os vestigios das notabilidades mais remarcaveis da intellectualidade actual que fluctuam nos grandes centros de luz progressiva chamados Par s e Londres, vertes os teus sarcasmos baixos, triviaes, e desgostantes, sobre o espiritualismo pantheistico, apoias o fetichismo, e poetisas (crs poetisar, digo eu) essas festas da popula a, e esses prazeres gordureiros das massas, que sublevam o cora o daquelle que adora o supremo architecto no silencio interior, em quanto os seus labios esto immoveis como se elles fossem de marmore explorado nas carreiras de Paros! Escriptor retrogrado e condemnavel, que em logar de combateres a barbarie do paiz, pretendes atacar mais o povo ao obscurantismo, que dir o as summidades do jornalismo estrangeiro e os toiristas e impressionistas viageiros quando lanarem seu golpe d'olho d'aguias para o Portugal, e virem sua materialisa o supersticiosa inculcada, e suas tradi es grosseiras exaltadas? Repetir o o que o immortal marido de Lady Byron dizia de ns a proposito de uns cacha es com que o massacraram certa noite sada de S. Carlos: /* "Na o impando de ignorancia e orgulho, Que lambe e odeia a m o que brande a espada Que do Gallo assanhado zanga o rouba[1]... * * * * * Onde sujo o palacio ao par da choa, E o hospede for ado em lama trepa; Onde nobres, plebeus nunca pensaram Em ter limpa a casaca ou roupa branca[2], Posto que a lepra egypcia os cubra e ra, Intacta d'agua a pelle, e a grenha hirsuta. Servos torpes e vis[3], bem que nascidos Nas pompas da crea o. Tola s, natura, Com defunctos ruins em gastar cera. Eis o que elles diro lendo a tua inconscienciosa defeza dos costumes e credulidades dos tempos do jesuitismo e da inquisi o." */ Tal reparo antevejo eu que me ha-de ser feito pelos pensadores da nossa terra, por estas ou por outras palavras. Respondo--o que escrevi escrevi. A primeira vez que puz os olhos naquelles bonitos versos do Child Harold, impei. Fui vivendo e lendo, e affiz-me s injurias de estranhos. Livros, jornaes serramadeiras, jornaes populares, jornaes atoalhados, jornaes lenoes, em se tocando em Portugal, sancta Barbara, advogada dos trov es, nos acuda! Fervem as calumnias, os motejos, as accusa es de todo o genero; o que inquestionavelmente grande, nobre, generoso! O dar assim!--n'uma na o cuja lingua, pouco conhecida na Europa, torna impossiveis as represalias. E se fosse a verdade s! Muitas verdades amargas nos poderiam dizer, como se podem dizer a todas as na es do mundo; mas a calumnia tem mais pilheria; e Portugal um thema em que at os inglezes querem ter gra a! Os francezes ainda alguma vez por engano nos fazem justia: elles nunca. Em Inglaterra n o ha nenhum tolo que no fa a um livro de tourist, nenhum architolo que no o fa a sobre Portugal: estes livros e os sermes constituem o grosso da sua litteratura[4]. Assim, oh philosopho idealista progressivo, eu sei t o bem como tu o que nos ha-de custar a festa de S. Pantaleo, quando esta famosa historia for ca r nas mos dos criticos d'alem-mar. Mas pensas que me faltar moeda para dar troco s miserias de revisteiros, touristas, magazineiros, e fazedores de livros em sarapatel mascavado de normando e teutonico, surripiado por metade em cada palavra na melodiosa pronuncia o britannica? Enganas-te, oh caricatura viva do Anthony morto! Enganas-te! Quando os inglezes se rirem de elles terem muito dinheiro e n s pouco, toramos a orelha, e choremos como crean as pelas barbas abaixo. Quando elles compararem o Strand ou Regent-Street com os arruamentos da nossa cidade baixa, agachemo-nos. Quando perfilarem as suas estradas com as nossas azinhagas reaes, cubramos a cara. Mas quando compararem as venturas do homem de trabalho inglez com a triste sorte do peo portuguez, risada. Quando oppozerem as virtudes e illustra es das suas classes infimas barbaria e estupidez das nossas, duas risadas. Quando encherem as bochechas das suas velhas liberdades (do tempo de Ricardo III, de Henrique VIII, de Isabel, de Cromwell e de Carlos II), das suas leis de propriedade em particular, e da clareza, simplicidade, e rectido de todas as suas leis em geral, e nos atirarem cara o absolutismo dos nossos antigos monarchas, a bruteza da nossa ordena o, a intolerancia dos inquisidores, trinta risadas. Quando, emfim, nos offerecerem em escambo das nossas crenas, dos nossos costumes religiosos, os seus costumes e a sua cren a, que esbora ha mais de dous seculos em quatrocentas cren asinhas, com seus nomes muito arrevesadinhos, quatrocentas risadas ou antes uma risada s, mas retumbante, macissa, inextinguivel, como aquellas famosas gargalhadas dos deuses de Homero. O caso d'isso! Se cassemos na troca ficavamos logrados. Traziam-nos de involta na carrega o dos serm es domingueiros os dizimos e as bruxas, de que ha muito estamos livres pela misericordia divina, e que so os dous maiores flagellos da Inglaterra, depois da lei dos cereaes e dos arrendamentos das terras, que ahi alugam, at por semana, a dez milhes de esfaimados quatrocentos mil proprietarios gordos e anafados. Ao menos s o quatrocentas mil barrigas de uma amplido respeitavel, campeando entre dez milh es de irmos nossos, que n o foram formados de barro, como ns e Ad o, mas de massa insonsa de batatas. * * * * * [1] Isto escrevia o nobre Lord em 1809, quando os inglezes reivindicavam dos francezes o throno de Beresford 1. occupado pelo usurpador Junot 1.--(Nota do gamenho que fala.) [2] Estylo epico em Inglaterra e na Cafraria. [3] Poor paltry slaves!--Pobre na livre Inglaterra synonimo de desprezivel e vil, por isso traduzo assim.--(Nota do gamenho orador). [4] N o me persuado de que nenhum leitor tome ao p da letra este brinco litterario. A Inglaterra uma grande na o, e possue no seu gremio muitos homens honestos, sabios, e por todos os modos respeitaveis. Mas a essa classe no pertencem por certo aquelles, que, propondo-se illustrar o povo, escrevem cerca de uma pobre na o, que nunca os offendeu, toda a casta de absurdos e mentiras insulsas. V EXCURSO PATRIOTICO. Falemos serio: no comtigo, philosopho esthetico-romantico-progressivo, que n o vales a pena d'isso, mas com o povo portuguez, que fala portuguez cho e intelligivel. Falemos serio, porque estas materias de cren a e de culto so cousas graves e sanctas. Saber resistir violencia forte, mas vulgar; saber resistir calumnia e aos motejos maior esfor o e mais raro. Envergonhemo-nos do que houver mau e corrupto nos nossos costumes; envergonhemo-nos de muitas vezes no seguirmos na vida practica os dictames do christianismo: n o nos envergonhemos, porm, do culto dos sete seculos da monarchia. A lingua e a religi o so as duas cadeias de bronze, que unem no correr dos tempos as gera es passadas s presentes; e estes laos que se prolongam atrav s das eras so a patria. A patria n o a terra; n o o bosque, o rio, o valle, a montanha, a arvore, a bonina; s o-no os affectos que esses objectos nos recordam na historia da vida: a ora o ensinada a balbuciar por nossa m e, a lingua em que pela primeira vez ella nos disse:--"meu filho!"--A patria o crucifixo com que nosso pae se abra ou moribundo, e com que ns nos abra aremos tambem antes de ir dormir o grande somno, ao p do que nos gerou, no cemiterio da mesma aldeia em que elle e n s nascemos. A patria o complexo de familias enla adas entre si pelas recorda es, pelas crenas, e at pelo sangue. Tomae, de feito, as duas dellas que vos parecerem mais estranhas, collocadas nas provincias mais oppostas de um paiz: examinae as rela es de parentesco de uma com outra familia, quaes as desta com uma terceira, e assim por diante. Dessa primeira, que to estranha vos pareceu ultima, achareis um fio, enredado sim, talvez inextricavel, mas sem solu o de continuidade. Uma na o no s metaphoricamente uma grande familia: -o tambem no rigor da palavra. A ora o que consolou nossos avs nos consola no dia da amargura: o gesto com que imploramos a providencia mais vehemente quando nos foi transmittido por aquelles que pedem por ns a Deus. por esse meio que os homens apertam mais os laos invisiveis que os unem aos seus maiores; porque o sentimento mysterioso da familia, e portanto da nacionalidade, se purifica e fortalece quando se prende no c u. Vde na historia a prova de que a religi o pde por si s crear uma nacionalidade mais rapidamente que todos os outros elementos que tendem a compr as na es. Considerae as cruzadas; essa multid o de homens nascidos em paizes diversos, entre os quaes no ha nenhuma communidade de interesses, antes muitas vezes odios sangrentos e fundos. L na Asia, em frente do islamismo, formam um s povo; s o irmos, porque ajoelham todos ante o mesmo altar; combatem todos pela mesma id a religiosa. Olhae para os mussulmanos: vde o koran agglomerando, assimilando o beduino e o egypcio, o alarve do Atlas e o negro de El-Sudan. Onde quer que um pensamento grande precisa de toda a energia de uma unidade social para se desenvolver e realisar, l haveis de encontrar a religio produzindo essa energia. Se isto assim, qual culto, entre os de todas as parcialidades christans, ser mais efficaz em gerar essa unidade forte do amor patrio, que d , no tanto a vida activa e exterior, como uma vida intima, escondida, tenaz, que resiste morte e dissolu o social? Ser o essas mil varia es do protestantismo, que diariamente se vo subdividindo, e condemnando umas pelas outras; essas cren as incertas, em que o filho j despreza o culto que o pae seguiu, e o neto desprezara o de ambos? Quando e onde, n o dizemos na mesma cidade e na mesma rua, mas na mesma familia, em quanto o marido dorme ao som monotono do sermo anglicano, sublime de trivialidade e tedio, a mulher d representa es de Bedlam[1] n'uma senzala de quakers ou de methodistas, pde-se acaso dizer que ahi a religi o la o que impea a morte do corpo da republica, n o nos dias de ventura e prosperidade exterior, em que facil conservar pelo orgulho a unidade nacional, mas nas epochas de calamidade e decadencia? Parece-nos pouco provavel. Ahi, as pris es moraes da familia so apenas habitos humanos, e n o esto harmonisadas e sanctificadas por se prenderem no c u: o primeiro sopro das paixes ou da desventura as reduzir a p. A historia tambem no-lo diz, e a historia n o sen o a prophecia do futuro. O protestantismo accusa o catholicismo de se haver afastado da pureza christan antiga, e gaba-se de ter revocado o christianismo s suas tradi es primitivas. O discutir tal materia, em rela o s doutrinas, fra insensato: os tempos dessa argumenta o consummaram-se; tudo por este lado est dicto de parte a parte. Quanto, porm, s formulas exteriores do nosso culto, so essas que ainda hoje attrahem os insulsos motejos da imprensa protestante; o culto catholico principalmente que d origem quellas graas inglezas, t o agudas como a intelligencia dos habitantes do Bethnal-Green de Londres ou do Winds de Glasgow, embrutecidos pela fome, pela embriaguez e pela immundicie; to brilhantes e leves como o fumo de carv o de pedra, que constitue a atmosphera britannica. Diariamente so accommettidas as duas na es das Hespanhas nos seus habitos religiosos por homens que empregariam melhor o tempo em estudar os cancros asquerosos que devoram moral e materialmente a classe popular no seu proprio paiz, e em pedir riqueza, s poderosa, s respeitada, s insolente, mais alguma caridade para com os muitos milh es dos seus compatricios, que lidam, cheios de fome e de frio, cubertos de farrapos e vermes, para accumularem aos ps de bem poucos homens as fortunas incalculaveis e quasi fabulosas que alimentam o luxo desenfreado de Londres, da Roma, ou antes da Babilonia moderna. Por certo que no culto catholico se tem introduzido abusos, e para isso contribue muitas vezes o proprio clero, menos instruido, menos bem educado, moralmente, que o clero anglicano. Mas em que culpado o culto da pouca instruc o dos seus ministros, e dessa falta de educa o moral, que diversas causas, alheias religi o, tm trazido e trazem ainda? a igreja que recommenda a ignorancia? So os abusos consequencias logicas das doutrinas catholicas? Eis o que cumpriria se provasse, como n o difficultoso mostrar, que o protestantismo, querendo annullar as pompas e espectaculos, as formulas externas e brilhantes do catholicismo, matou tudo o que a cren a do Calvario tinha de unc o, de consola es, de affectos para o commum dos seus sectarios, e converteu a religio n'uma certa metaphysica nevoenta, que foge comprehenso das almas rudes e vulgares, quebrando todos os esteios, a que nesta vida de tristezas e dores ellas se encostavam para confiarem no c u, e consolarem-se na esperana; porque esses arrimos, necessarios sua fraqueza intellectual, eram o unico meio de subirem at o throno de Deus, e descerem de l armadas de resigna o para continuarem a luctar com as tempestades da existencia. O protestantismo foi s feito para os ditosos e abastados da terra! V de aquella casinha, to humilde e s , no meio de um descampado. L, sobre camilha dura e rota, delira em accesso febril um filho, unico amparo da m e idosa, que vla chorando ao p delle. Na sua solido e miseria nenhuns soccorros humanos p de esperar a pobre velha, cujas mos tr mulas em vo tentam conchegar as roupas, que o febricitante arroja, murmurando afflicto com o ardor que o devora. Uma lampada de ferro, que allumia frouxa o aposento, arde no canto opposto diante de uma grosseira e affumada imagem da Virgem. A triste m e volve para l os olhos embaciados da idade e das lagrymas, e sente que n o se acha inteiramente abandonada. Alli est outra m e que tambem derramou pranto por um filho; pranto mil e mil vezes mais amargoso que o seu. Ella ha-de comprehender-lhe a afflic o e valer-lhe, porque boa, e poderosa ante Deus. Ei-la, a pobre velha, que tr pega se arrasta, e ajoelha aos ps da imagem, e cruza as m os enrugadas, e ora; ora com f viva. Na procella de terrores que a cercam come a a bruxulear uma luz de esperana: espera, porque cr na possibilidade da intercesso e dos milagres; e anima-se, e a tempestade da sua alma asserena-se, e a dor mitiga-se, porque, no meio das lagrymas e das resas, ella pensa l comsigo que aquella imagem trouxe j muitas consola es a seus paes, a ella mesma, e a toda a familia, e que a Virgem Sanctissima ha-de acudir-lhe ao seu filho, que desde pequenino gostava de ir apanhar as flores campestres para enfeitar a Senhora, e que tantas vezes noite antes de se deitar a p r-se de joelhos alli onde ella estava, e resar uma salve-rainha. E quantas vezes, depois destas ora es ardentes, volve Deus olhos compassivos para a morada da miseria e da amargura, e obra, no um milagre inutil, mas o beneficio que faria qualquer medico, se na habita o solitaria houvesse a possibilidade de se buscarem os soccorros da sciencia humana! Dir o protestantismo que isto idolatria? Que! Ignora, acaso, o mais grosseiro catholico que acima dessa imagem est o espirito puro que ella representa, e que acima desse espirito est Deus? O catholicismo no seu culto das imagens, nas suas festas, nas suas visualidades, como v s lhes chamaes, commetteu o grave erro de suppr que a maioria do genero humano n o era composta de philosophos, nem capaz de um espiritualismo absoluto; de abstrahir inteiramente das cousas sensiveis para remontar ao cu. O catholicismo lembrou-se das doutrinas do Christo; accommodou-se curta comprehenso dos pequenos e humildes. V s tendes um evangelho mais fidalgo e altivo. O protestantismo convem por isso ao Reino-Unido, onde os quatrocentos mil senhores do solo so tudo, e s o nada quinze ou vinte milhes de servos de gleba e de mendigos. E como deixaria elle de ser exclusivo, aristocratico, orgulhoso? Essa cren a, ou antes essa infinidade de crenas, unidas s em guerrear a igreja de dezoito seculos, e que no dia em que lhes faltasse o inimigo commum se despedaariam mutuamente, n o podem deixar de viver de um mysticismo perfumado, de um culto inintelligivel para o povo. Desde que a reforma substituiu auctoridade e tradi o a sciencia humana, o raciocinio e a discusso, sa u do templo para a eschola; transformou-se de f em theoria. Ent o o christianismo deixou de ser uma cousa practica e positiva para todos os homens: os espiritos grosseiros e ignorantes acceitaram-n'o como um costume que acharam no mundo, sem affecto nem m vontade, e as imagina es desregradas fizeram cada qual uma religi o a seu modo. Deram uma biblia ao ganhapo, ao porcari o, ao belforinheiro, e por esse facto constituiram-n'o theologo, sancto-padre, e at concilio. Creram ter estendido ao genero-humano a maravilha das linguas de fogo que desciam sobre os apostolos, e ficaram muito contentes de si. As multid es que ficaram tristes e desconsoladas, porque tinham desapparecido de redor dellas todos os symbolos, todas as imagens, que lhes serviam como de marcos miliarios para buscarem a Deus. Affigurae-vos, de feito, o exemplo da m e idosa e miseravel, que v em transes mortaes o filho, seu unico abrigo; buscae este exemplo ou outro qualquer, porque entre os pequenos n o so raras nem pouco variadas as occasi es de asperos infortunios. Lanae-a no seio do protestantismo. Qual refugio lhe offerecer a religio; refugio immediato, solido, esperan oso? A biblia? Tambem ns sabemos que thesouros encerra a biblia: tambem n s sabemos quantas vezes as suas paginas divinas tm feito dilatar em torrentes de lagrymas as negras aperturas do cora o: tambem n s sabemos que dessa fonte inexhaurivel mana a resigna o e a paz: a igreja catholica sabia-o muitos seculos antes de vs existirdes. Mas quem vos assegura que a pobre velha achar a passagem analoga sua situa o; que encontrar nas palavras do livro sacrosanto o conforto de que carece, e a esperana do soccorro immediato e sobre-humano de que n o menos precisa? Quem vos assegura, emfim, que ella saber ler? Ou que no paiz dos quakers a inspira o tambem faz de mestre-eschola, como exercita o mister de mestre de theologia? E depois, no sabeis que a dor moral do homem do povo tem gemidos e queixumes; estrepitosa, delirante, sincera? que no se reporta, n o se esconde, e vem ao gesto, aos meneios, aos olhos, voz, como a dor physica! Julgae-la acaso semelhante ao spleen do dandy, ou ao devorar intimo e calado das almas, a quem a educa o e a sciencia ensinaram a dignidade das grandes agonias? Estes taes, exteriormente tranquillos, podem encostar-se ao bra o, fitar os olhos no livro aberto ante si, e aspirar naquellas paginas sublimes e profundas o halito consolador que dellas espira. Mas para o homem do povo, quasi primitivo, quasi selvagem, cujos olhos nadam em pranto, e que se estorce e brada flagellado pela afflic o, a biblia nesses instantes inutil, porque impossivel. Deixae-lhe a imagem do sancto, o crucifixo, o voto, o altar domestico, a lampada accesa ante o vulto do martyr ou da Virgem: deixae-lhe o ajoelhar, o gemer, o resar, o fazer promessas. Deixae os symbolos materiaes da confiana na providencia imbecilidade da natureza humana, alis, crendo anniquilar a supersti o e a idolatria, n o fareis seno matar a vida moral e religiosa do povo. Se nos dias, desgra adamente mui communs, das mguas extremas s o catholicismo tem conforto para o homem rude, nos de contentamento s o catholicismo tem festas que convertam para a gratid o e para Deus o seu goso interior, que tende a trasbordar em risos e folgares. O simples repouso do domingo, para o que, condemnado a lavor indefesso durante a semana inteira, compra custa de suor e cansa o um pouco de po duro e grosseiro, uma alegria semelhante do preso, que, adormecendo em ferros, despertasse livre. Aquelle cora o precisa de dilatar-se, aquelles sentidos de recrearem-se, aquelle espirito murcho e triste de se tornar vi oso, de desabrochar de novo ao sol da vida, ao menos n'alguns desses dias reservados ao descano. ento que o catholicismo lhe offerece as pompas das suas solemnidades; o templo illuminado, os canticos dos sacerdotes, as harmonias do org o, o espectaculo brilhante das vestes sacerdotaes e dos adornos do altar, os ramilhetes povoando os degraus do sanctuario, ou juncando o pavimento, o incenso embalsamando a atmosphera. E como tudo isto para as multid es, o culto trasborda do estreito recincto e derrama-se pelas ruas, pelas praas, pelos campos em prociss es, em cirios, em romarias, e o povo fluctua, folga, resa, tripudia, esquece-se dos seus destinos de miseria e trabalho, ama a religio que o consola, e voltando s suas habituaes fadigas, leva para o meio dellas a saudade do dia-sancto e as recorda es affectuosas da igreja. E o protestantismo? O protestantismo despedaou os vultos dos sanctos, prohihiu os oragos, as prociss es e as romagens: esfarrapou alvas, casulas, amictos, pluviaes; apagou as luzes; varreu as flores; assoprou o incenso. Fechou-se na celebra o do domingo; e fez bem! bem ao povo, a quem para tedio e tristeza, nos paizes protestantes, sobeja o domingo. E porque fez elle isto? Foi porque essas cousas eram supersti es papistas: as imagens idolatria, a agua benta agua lustral, as vestes sacerdotaes indecencias ridiculas, as ceremonias visagens, a missa mentira. Passagens de biblia e compridos sermes ficaram bastando ao culto externo, e se alguma cousa deixaram ainda a este, poetica e attractiva, foi o canto dos psalmos e as harmonias do org o; porque, como todos sabem, nas agapas dos christos primitivos cantavam-se os psalmos ao som do orgo!! Os protestantes s o indubitavelmente antiquarios eruditos, mas, sobretudo, logicos. Qual foi o resultado desta reforma o insensata de institui es antigas e venerandas? Foi que o culto se tornou n'um habito machinal, n'uma ac o que se practca na impossibilidade de se practicar outra. A policia vigia sobre isso. Deixe ella ao domingo abrir as lojas, os passeios, os estabelecimentos publicos, os espectaculos, as fabricas e as officinas; deixe correr nas veias do corpo social o sangue comprimido, e os templos dos districtos d'Inglaterra mais fervorosos no protestantismo ficar o to ermos como as igrejas da Irlanda, onde o reitor pr ga ao sacrista o suado sermo, que ha-de um dia, impresso, allumiar o mundo, emquanto o seu recalcitrante rebanho, porta do presbyterio solitario, ouve ajoelhado na rua a missa que em altar portatil lhe diz o pobre clerigo catholico, verdadeiro e legitimo pastor, a quem incumbe o consola-los, bem como ao parocho protestante pertence... o que? Fazer predicas s paredes, e comer os dizimos, sacramento, que, de certo, o puritanismo protestante achou n'algum alfarrabio velho ter sido instituido por Christo! Temos ouvido lamentar s pessoas de boa f excessiva, destas que estudam as na es nas apparencias, e n o na vida intima, que o catholicismo no tome entre n s a severidade e decencia exterior do culto anglicano; que o dia consagrado ao Senhor no seja guardado pontualmente; que as nossas igrejas n o offeream na celebra o dos officios divinos a gravidade, o silencio, a ordem, o aceio de um templo protestante, nas horas destinadas ora o. No estado actual das sociedades, em que o fervor dos primeiros tempos christos tem esfriado, em que, tanto entre catholicos como entre protestantes, a religi o deixou de ser o primeiro, ou, ao menos, o exclusivo negocio dos homens, o que elles desejam seria impossivel, e se absolutamente um bem, relativamente um grande mal; porque as causas que facilitam esse estado de cousas em Inglaterra so a prova mais clara da morte, se n o de uma certa religio vaga, em que os espiritos mais cultivados se alevantam at ao p do throno de Deus, ao menos da religi o positiva, practica, definida, morta e enterrada ha muito na mina de carvo de pedra chamada Gran-Bretanha. J dissemos que no tanto o sentimento religioso que guarda em Inglaterra a decencia do culto, como a admiravel policia ingleza. Quem no o sabe? Quem ignora que naquelle paiz a religi o tem a natureza de outra qualquer formula material da sociedade; que uma cousa como o regimento, a nau de guerra, o workhouse? Ao christ o um vigario, uma biblia, e a cadeia se perturbar o officio divino; ao soldado um coronel, uma espingarda, e uns aoutes se mecher a cabe a na frma; ao marinheiro um commod ro, um posto juncto da amurada, e um mergulho por baixo da quilha se offender a disciplina; ao miseravel que vae cahir no workhouse um director implacavel, uma atafona, e ra o curta para aprender a deixar-se estalar mingua sem pedir esmola. A cada institui o suas condi es, sua sanc o penal, seus destinos: o regimento serve para provar aos chartistas que a melhor organisa o politica possivel a que faz morrer annualmente milhares de obreiros de fadiga, de fome, e de febres putridas sobre uma pouca de palha fetida e humida, no fundo de subterraneos; a nau serve para civilisar a India pelas contribui es, e moralisar a China pelo opio; o workhouse serve para curar radicalmente os que no t m nem po nem camisa, do vicio infame da mendicidade; emfim a igreja dominante (established church) serve para sustentar de dizimos muitas familias honradas com as modestas e reformadas prebendas anglicanas, entre as quaes nenhuma excede a vinte mil libras esterlinas per annum, ou, em moeda portugueza, a obra de uns mesquinhos duzentos mil cruzados. O templo catholico commummente o symbolo da completa igualdade: l n o ha distinc es, seno para os ministros do culto; e quando o orgulho humano, que forceja sempre por invadir ainda as cousas mais sagradas, vae ahi profanamente estender o tapete aristocratico, e collocar sentinellas, o povo murmura, e murmura em voz alta; porque sabe que na sociedade christan s ha um Grande e Poderoso, que Deus. Os nossos habitos, as nossas id as so que o mais commodo, o mais distincto logar no templo pertence ao que primeiro o occupou. O catholicismo entendeu que diante da magestade do Creador os vermes cobertos de brocado n o o so menos que os vermes cobertos de farrapos. Assim o vulgo dos fi is precipita-se como torrente atravs dos umbraes da igreja; estrepita nas lageas do pavimento com os seus sapatos ferrados; ro a com o burel grosseiro as finas sedas dos nobres e abastados; afasta com as mos callosas os grupos alindados dos peralvilhos; esquece-se, emfim, dos respeitos humanos, que se guardam, e devem guardar, c fra. Como, pois, obter a ordem, as atten es, o silencio? O nosso povo rude e mal educado (no o gab mos por isso; mas o vulgacho inglez leva-lhe, em bruteza, incomparavel vantagem); o nosso povo conserva dentro do templo os habitos ruidosos, inquietos, grosseiros da praa publica. E poderia elle despi-los de subito ao entrar na casa de Deus? Prova acaso o borborinho, que ahi s a, desprezo pela religio? Examinae os que parecem estar com menos respeito e decencia; os que falam e se agitam: s o aquelles entre os quaes o christianismo iria achar os seus martyres, se viessem de novo os tempos em que a crena do Crucificado precisava de ser revalidada pelo sangue dos seguidores da cruz. Que esses pobres tontos, que nos motejam sem nos conhecerem, venham estudar o catholicismo portuguez, se d'isso s o capazes, e sabero se n s falmos verdade. Nestas consequencias, t o logicas, to rigorosas do caracter primitivo da religi o christan, e do estado das classes inferiores da sociedade, poz cobro a igreja anglicana. verdade que Jesu-Christo, segundo o Evangelho, na traduc o vulgata, chamou principalmente os pobres e humildes; e se no templo ha quem valha mais que outrem, n o so por certo aquelles que o Filho de Deus achava mais anchos para entrarem no reino dos c us, do que um camello para entrar no fundo de uma agulha. A igreja reformada entendeu provavelmente que outra era a interpreta o do Evangelho; porque corrente que os catholicos nunca souberam grego, desde S. Jeronymo at Angelo Policiano, ou Ayres Barbosa, para o poderem interpretar bem. Assim, em Inglaterra, aquellas to formosas e vastas cathedraes da idade m dia, a que s falta um culto poetico e consolador para serem sublimes, repartiram-se em camarotes de theatro, fechados chave, e alguns at com todos os requisitos desse comfort, que s os inglezes conhecem bem. As jerarchias do dinheiro e do sangue esto l rigorosamente guardadas: pelo logar dos stallos, e pelo seu luxo, os espiritos habituados topographia da Church podem or ar o numero d'avs ou os milhares de libras que possue cada filho da igreja anglicana: o commum dos vill os, empurrados para ao p da porta, l perdem em parte os deliciosos periodos do sermo do reitor, encarregado de acalentar... queremos dizer de conservar puros na f averiguada e decretada pela grande theologa chamada a rainha Isabel, os seus dizimados freguezes. E o vulgo? Os homens do trabalho, da fome, dos farrapos? Os tres quartos da popula o ingleza? Esses? Esses l t m o templo da esperana e do consolo: l tem o gin's palace (palacio da genebra), a taberna. Na sua incrivel miseria, os homens que no podem encontrar Deus, porque a igreja anglicana lh'o collocou n'uma atmosphera nebulosa, onde o n o descortinam; porque o templo os repelle; porque o priest com seu aristocratico, polido e perfumado sermo, n o pde substituir a entidade exclusivamente catholica chamada o missionario, sublime de persuaso, de energia e de virgem rudeza; os miseraveis, dizemos, atiram-se desorientados aos bra os da embriaguez, porque a embriaguez tem o esquecimento, tem a sua horrivel alegria. L, no gin's shop, estendendo o bra o cadaverico e vacillante para a destruidora bebida, sorvendo-a com phrenesi, essa especie de brutos com frma humana resumem no seu aspecto e meneios, e na decadencia de todos os sentimentos de pudor, as ultimas consequencias moraes do protestantismo. Que nos seja permittido citar as proprias palavras de um escriptor moderno[2], que, melhor talvez que ninguem, pintou o estado presente das ultimas classes em Inglaterra, e que em todos os factos que narra se funda ou nas proprias observa es, ou nos documentos officiaes publicados pelo governo inglez. Perfeitamente imparcial a respeito da Gran-Bretanha, o seu testemunho o que mais a proposito podemos neste ponto invocar. "A seriedade e o silencio com que este licr ardente (a genebra) tragado, fazem arripiar. como se o povo assistisse a um officio divino. Consummado o sacrificio, v o-se assentando no banco de madeira corrido em frente do balco, e alli ficam quedos, mudos, como arrebatados em ineffavel extasi. Depois, passados alguns minutos, voltam ao balc o, tornam a beber, e repetem at se lhes acabar o dinheiro. Vae-se assim a ultima mealha. E t m animo de affrontarem o morrer de fome, elles e seus filhos, para se embriagarem. Provou-se pelos inqueritos feitos por causa da lei dos pobres, que as esmolas em dinheiro, dadas pelas parochias, am cahir inteiras na taberna, e s aproveitavam ao taberneiro. A povoa o infima da Inglaterra est de tal modo atolada no seu loda al, que no ha ahi caridade que possa desempega-la." "Sabem todos qu o rigoroso preceito ecclesiastico e civil o guardar o domingo em Inglaterra. A unica excep o da regra a taberna. Lojas, tudo fechado; logares de honesto ou instructivo recreio, como hortos botanicos e museus, o mesmo. S o gin's shop se abrir de par em par a quem empurrar a porta com o p. O caso est em que parea cerrada: duas meias portas solidas, que se fechem por si, fazem a festa: janellas fechadas: dentro lusco-fusco, como em sanctuario, e at sua luz de gaz. Tomadas estas cautelas, plena licena, licen a auctorisada para se venderem bebidas todo o dia sem lhe faltar hora. E neste paiz que os caminhos de ferro est o devolutos por todo o tempo do officio divino, em honra do domingo! Emquanto, em Manchester, eu me espantava das largas que se davam s tabernas, apresentava-se camara dos Lords um bill para prohibir o transporte das mercadorias pelos canaes no sagrado dia do domingo! Nesta cidade de Manchester ha jardins zoologicos e botanicos, que o povo frequenta gostoso; mas no se obtem da pontualidade anglicana que estejam patentes no dia sancto; e os bispos, t o escrupulosos no mais, so indifferentes pelo que toca aos gin's shops, abertos publicamente e frequentados ao domingo. N o singular que a cousa unica permittida ao povo seja o embriagar-se?" N o!--diriamos ns ao auctor do excellente livro que havemos citado.--O governo e a igreja da Gran-Bretanha sabem que entre a horrivel miseria das classes laboriosas, a embriaguez e o suicidio n o ha uma quarta cousa para suavisar a agonia dos tractos que a primeira d ao homem do povo. A religi o, que falava aos sentidos do vulgacho, e por meio delles ao seu espirito, mataram-n'a; e como a morte no tem remedio, o protestantismo, crean a de dous dias, mas j sem vigor e esfalfada, encommenda religio das pipas o salvar os malaventurados obreiros, n o do suicidio moral, mas ao menos do physico. Dir-se-ha que o povo no est entre ns n'uma situa o analoga do povo inglez, para o catholicismo ser posto prova? Felizmente isso verdade. Mas j houve tempos quasi semelhantes, posto que ainda inferiores em terribilidade, aos que vo correndo para a gente miuda de Inglaterra. Era quando a peste devastava as nossas cidades e ermava os nossos campos, levando-nos s vezes mais de um tero da popula o. Ahi existem innumeraveis monumentos dessas epochas desastrosas: que appare a um s por onde se prove que o desalento popular buscasse conforto no vinho e aguardente. Pois, c , o remedio no era caro! O que ach mos so as preces, as romarias, as prociss es, as lagrymas, os votos, o sentimento exaltado da confiana e da resigna o na Providencia. Ach mos a pequena differena que vae de um christ o a um bruto. "E os irlandezes?--Oh, bem sabemos que os irlandezes, catholicos como ns, na sua miseria monstruosa t m cahido, se possivel, ainda mais fundo que os inglezes. Mas, em rigor, esses catholicos na inten o e na cren a podem acaso s-lo no culto que aviventa o espirito? Onde lhes deixou o protestantismo os seus templos, os seus sacerdotes, os seus costumes religiosos? O vulgacho irlandez o argumento mais dolorosamente persuasivo da necessidade dessas festas, dessas alegrias, dessas frmas materiaes do culto. Sem ellas, o catholico miseravel embrutece-se como o miseravel protestante; e o seu embrutecimento vem, por outra parte, recordar-nos de que n o possivel achar um nome, que qualifique devidamente o descaro com que o anglicanismo, inquisidor implacavel e tenaz de tres seculos, nos lan a em rosto as trinta mil verdades e as sessenta mil mentiras, que, com justissimo horror, se relatam da Inquisi o. Eis o que ns podemos responder aos insulsos dicterios com que diariamente vilipendiado o catholicismo portuguez: e no dizemos tudo; n o dizemos metade. Quanto aos motejos que nos dirigem como na o pobre, pequena, fraca, isso no passa de uma covardia, que s deshonra a quem a practca. Trabalhemos por levantar-nos da nossa decadencia. Ser essa a mais triumphante resposta. E com estas deambula es de patriotismo religioso saltmos a p s junctos pela historia do padre prior. No capitulo seguinte daremos satisfa o plena ao pio e benigno leitor. * * * * * [1] Bedlam, como a maior parte dos leitores sabem, o mais famoso hospital de doudos em Inglaterra. [2] Buret, De la mis re des classes laborieuses (1842), Liv. 2. cap. 4. VI BARTHOLOMEU DA VENTOSA. A quem no tem succedido nas horas de solid o, no silencio da noite em que no p de dormir, ou no pino de dia calmoso, ao atravessar o bosque cerrado e sombrio, onde s se ouve o zumbir e o ferver dos insectos; a quem n o tem succedido engolfar-se n'uma vaga medita o, e, por assim dizer, tombar de pensamentos em pensamentos, presos por fio to tenue, t o imperceptivel para a consciencia, que, depois dessa especie de devaneio, pretender remontar da ultima primeira id a seria baldado empenho, por falta de transi es naturaes e logicas? E todavia, a alma, que, nessa situa o, como que perde o sentimento da vida externa l achou, no seu incessante cogitar, uma ponte invisivel para transp r os abysmos que a fria, coixa e orgulhosa razo humana supp e existirem, quasi a cada passada, no mundo da intelligencia. Quando o espirito se desata dos corpos; quando a imagina o, depurando o senso intimo, o faz repellir a materia, fechando-se, como a mimosa pudica, ac o grosseira dos sentidos externos, o homem alevanta-se at o viver de alm da morte, a luz dos anjos allumia-lhe as profundezas mais obscuras do universo ideal, e elle sabe quaes os caminhos e valles que unem as suas cumiadas brilhantes, unicos pontos que se podem enxergar da terra. O primeiro que disse "em tudo est tudo" teve uma destas revela es da imagina o pura, revela o completa do ideal, que no mais do que a fuso da variedade absoluta e infinita na infinita e absoluta unidade. Mas estes momentos, em que somos illuminados pelo sol da vida celestial, passam rapidos: o espirito cahe logo dentro dos limites da sua existencia de provana e desterro, e recordando-se confusamente daquellas inspira es passageiras, sorri-se e chama-lhes sonhos, abus es, desvarios. que a pobre e suberba raz o, myope advogada do lodo e do crepusculo, rejeita com horror as cogita es puras e luminosas, que Deus faculta s vezes ao miseravel ente, creado quasi anjo por elle, e a quem o primeiro raciocinio que se fez na terra converteu em insensato e prec to. E a que vem estas metaphysicas aqui? De que utilidade so ellas para a historia do parocho da aldeia, e da festa do orago, ha tanto tempo interrompida, e que at agora no tem passado de divaga es por objectos sem liga o com a vida e costumes do reverendo padre prior?--"Venha o padre prior: venha a festa--dir o alguns--e deixemo-nos dessas metaphysicas modernas, que escorregam por entre os dedos, e no passam de feixe de maravalhas ao p daquellas grandes philosophias dos ideologos, que at um sapateiro era capaz de estudar batendo a sola e apertando o ponto; philosophia de p o po, queijo queijo; philosophia substancial; philosophia d'ouvir, v r, cheirar, gostar, e apalpar, rolia, atoucinhada, confortativa. Se era necessario algum tro o da sciencia do atqui e ergo para atar estes capitulos ou capituladas da chronica aldeian, porque no recorrer ao clarissimo Condillac, ao bis-clarissimo Tracy? Para que parafusar em entes de raz o impalpaveis, em armadilhas que trescalam s parvoices germanicas, quando estava ahi mo a philosophia do senso commum, que o senso patago e russo, tupinamba e sueco, chim e dinamarquez, emfim o senso de todo o mundo?" Ai, leitor, que ahi bate o ponto! Quem me dera isso! Quem me dera poder explicar por um capitulo tantos, paragrapho tantos, daquelle sancto homem de Locke, o que me succedeu ao escrever esta famosa historia, e lan ar na balana da tua inflexivel justi a uma desculpa de obra grossa dos meus rodeios, desvios e viravoltas na ordem e disposi o destes importantes estudos! Por mais que scismasse, por mais que afferisse pelos bons principios ideologicos o meu trabalho, sabia-me tudo torto: era querer levantar uma bla com um gancho, ou firmar a taboa-rasa do philosopho inglez sobre uma das pontas de um dilemma. Como ageitar a minha narra o deambulatoria pelas regras do methodo? Impossivel, impossibilissimo! Fiz ent o como Constantino Magno. No achando escapula nem esperan a na religio da materia em que me crearam, fugi para a religi o dos espiritos, e por uma theoria de abstrac o subjectiva expliquei, como Deus me ajudou, as minhas, alis inexplicaveis, divaga es. Encostado a ella como a uma columna de basalto (de basalto, porque as de marmore e de bronze est o muito safadas do uso quotidiano) rir-me-hei do mais abalisado doutor, que venha perguntar-me qual a ordem logica das minhas id as. A resposta est no que expuz: pontes intellectuaes, invisiveis, inappreciaveis pelas regras ordinarias do methodo; pontes que unem o branco ao preto, o circular ao anguloso, o proximo ao remoto. Fecho-me nisto. A imagina o que assim o fez, porque assim devia ser: est muito bem feito, ao menos no mundo da idealidade pura. Foi l que eu passei de um veneravel parocho d'aldeia, portuguez velho em costumes, em linguagem, em crenas, vulto poetico e sancto, para um inglez impertigado, monosyllabico, iconoclasta, libertador de pretos alheios, escravisador de sax es e irlandezes brancos; n'uma palavra galgei de um a outro plo da humanidade. Foi l , que eu pude tombar, rolar, precipitar-me do catholicismo suave, consolador, festivo, ameigador dos miseraveis, despresador dos poderosos suberbos, symbolisador, no seu culto, da igualdade ante Deus, para o anglicanismo perfumado, espartilhado, casquilho, tezo, aristocratico, nevoento, dizimador, intolerante, enxotador dos mendigos, camaroteiro dos templos; pude tombar, rolar, precipitar-me do vertice brilhante, d'onde derrama a sua eterna claridade o puro espirito do christianismo, no charco onde o mergulhou e affogou a vontade de um tyranno devasso do seculo XVI, e a van presump o de sua filha, a pura, generosa, e sbia Isabel, especie de concilio Niceno de carne e osso para o protestantismo inglez. Dou vinte annos a todos os ideologos para explicarem por outro systema a transi o monstruosa e incomprehensivel, que fiz a semelhante respeito nestes gravissimos estudos. Idealisei um inglez (foi fa anha!), idealisei o meu bom prior, e no mundo da razo pura l achei que havia entre essas existencias, infinitamente oppostas, uma affinidade: qual, no sei eu dizer, porque o esqueci: e ainda que me lembrasse, n o saberia exprimi-lo. Dada esta explica o aos pechosos, vamos s promettidas duas palavras sobre a festa. Era um dia ardente de julho, a 27, cousa certissima para o leitor, em consequencia das minhas profundas investiga es chronologicas. O sol ia alto: a igreja parochial, involta no manto tricolor--branco, amarello, e vermelho--cal, ochre, r xo-terra--parecia rir no seu jubilo. Um moo do Bartholomeu da Ventosa, rapazote de quinze annos, quatro mezes, vinte quatro dias, e vinte tres horas e tres quartos completos (por ter nascido a uma segunda-feira, meia noite menos um quarto, de dous para tres de maro) neste grande dia do orago pilh ra ao moleiro duas graas a um tempo, a de deixar em descan o o seu tonel das Danaides, a implacavel joeira, e a de poder assistir festa e ouvir a missa cantada e o serm o, em vez de ir acabar o pesado somno da madrugada missa das almas. Gabriel, que assim se chamava o rapaz, ou antes Graviel, segundo a mais euphonica pronuncia saloia, vestiu logo pela manhan as suas cal as e jaqueta de bombazina em folha, e o seu colete vermelho, engenhado de um do patro a tr co de dous mezes de soldada, calou as botifarras novas, e enterrou o barrete azul e encarnado na cabe a, derrubando-o para traz, e sem fazer caso do almoo (pois era uma a orda que os anjos a comeriam) desandou, outeiro abaixo, pela volta das sete e trinta e cinco minutos da manhan, caminho da parochia. Via-se que um grande negocio lhe occupava o espirito, por isso que levava os olhos cravados no campanario, e sem fazer caso das trilhas, cortava por entre as restevas, escorregando, aqui, nas pedras soltas, levando-as, acol, diante dos bicos agudos das botifarras. Chegou. O sacrist o, que estava porta da igreja, apenas o lobrigou poz-se a rir, porque logo entendeu o verso. Gabriel era um dos maiores pimp es em repicar sinos que havia entre a rapaziada do logar, mas desde que entrra para casa do tio Bartholomeu, nunca mais puzera p s no campanario. Nos meneios, no gesto, no olhar lhe revia a sde, a ancia, a saudade das harmonias risonhas, doudas, estrugidoras de um repique desenganado. Vinha t o cgo, que s viu Joo Nepomuceno (assim se chamava o sacrist o) quando deu de rosto com elle. Estacou embatucado; tirou o barrete, e comeou a co ar a regio occipital, olhando de revez para o sacrist o, que se encostra hombreira, com as mos cruzadas atraz das costas, assobiando o Veni Creator. " -l Graviel!--disse este por fim com um sorriso.--Voc hoje campou. O patro festeiro; fica o moinho a dormir! Heim? Galdre; n o assim? Mas, cos dianhos! n o sei como no vieste c dormir. Bota os olhos acol para o arraial. V s? Duas bolaxeiras, e a tia Sezila com queijadas; e disse. Ainda nem sequer o Chico appareceu para comear o repique. Pois para isso n o cedo, que a missa da festa s dez em ponto. J o padre Chaparro e frei Jos dos Prazeres est o na sancrestia, e dizem que no tarda ahi frei Narciso, que vem servir de mestre de ceremonias." "Oh s Joo de Permecena!--acudiu o saloio, que torn ra, ao ouvir o nome do Chico, a enterrar o barrete na cabea, mas desta vez banda--com a sua licena, ha-me de perdoar: n o sei o que fez em chamar n'um dia destes aquelle jimento do Chico para tocar os sinos. Aquillo!? Ora, deixa-me rir. Ha-de-a fazer bonita; no tem duvida? Olhe, sempre lhe digo..." "N o digas nada: bem sei. Mas que dianho querias tu com uma cravella de doze que d a menza da irmandade, e nicles? Mesmo o Chicho, deu-me agua pela barba para o resolver. Se aquillo s o uns dianhos d'uns fonas!" "Pois se vocemec quer--interrompeu Gabriel, em cujos olhos se accendia o desejo, o deleite, e a esperan a--eu l vou. Hoje o patr o deu-me licena at s trindades. Salto na torre, e vae tudo raso. Toco at aquella cantiga de Lisboa, que dizem que canta um tal Catragena em S. Calros: ... totro, tro-bal o, re-pim, piri-pim-po." Enthusiasmado, o mo o do moleiro cantarolava, imitando os sons de um sino, ou antes de um tacho, a musica horrendamente aleijada, esfarrapada, assassinada do dueto de Assur e Semiramis: La sorte piu fiera. Se Rossini alli chegasse de subito, ou no a conhecia, ou enganava-se. O sacrist o estava enlevado. "Homem!--disse elle quando Gabriel parou--bom era isso: mas o Chico est ajustado; e j agora....." " que o Chico o seu padagoz: ha-me de dar licena que lho diga, senhor Jo o de Permecena!--interrompeu o moo do moleiro, vendo apagar-se a luz que lhe illumin ra o espirito.--Pois eu tocava ahi a desbancar ainda por menos: bastava que me pagasse um arratel de bolaxas e dous berimbus." "Eu c no tenho padagozes, homem! Cos dianhos!--replicou o sacrist o.--Se elle no estiver aqui s oito, dou-te a chave da torre, e so hoje teus os sinos. Quando quizeres ter s as bolaxas e os berimbus." A proposta de Gabriel penetr ra como um balsamo suave na alma do sacristo: fazia a despeza com seis e meio, e economisava o resto para a igreja, isto , para si, como representante della. Gabriel saltou acima do parapeito do adro e poz-se a olhar para o lado onde morava o Chico. Batia-lhe o cora o com fora. s oito horas devia nascer para elle um dia de gloria e contentamento, ou de desdouro e zanguinha. Deram as oito.--"Viva!--bradou, saltando ao terreiro, e correndo ao sacristo.--Venha!--proseguiu, lan ando mo da chave da torre com tal violencia, que Jo o Nepomuceno por um triz no foi a terra. Ia-lhe quebrando um dedo. "Dianho!... Safa, alimaria! Forte doido!... Oh Graviel! Ouve c , Graviel! Olha que est passada a corda da garrida..." Qual Gabriel, nem meio Gabriel! Tinha desapparecido, semelhante a um foguete. O sacrist o levantou os olhos para o campanario e viu j as cordas a bambearem e a desembara arem-se, como as tranas da nobre dama nas m os subtis de aia geitosa. Gabriel era, sem a menor sombra de duvida, a flor e nata da rapaziada curiosa da aldeia. Uma pancada retumbante e sonora no sino grande, a qual se repetiu lentamente algumas vezes, foi como um mensageiro, despedido por montes e valles, a annunciar um dia de repouso e folgares para o homem do campo, curvado sob o sol ardente nas ceifas e mais trabalhos ruraes do estio, durante os longos dias de trabalho. Era como o romper de uma vasta symphonia. Gradualmente os outros sinos misturaram as suas vozes argentinas com a do primeiro, e a atmosphera esplendida vibrou ondeando em tempestade de notas que se cruzavam, cortavam, interrompiam, luctavam em barbara harmonia. A principio Gabriel, pausado e lento, lanava successivamente uma ou outra m o a esta ou quella corda: pouco a pouco os seus movimentos tornaram-se mais rapidos, e os sons que transudavam por todas as aberturas, pelos minimos poros da torre, come avam a assemelhar-se ao granizo do noroeste, que de instante a instante se torna mais espesso, ao passo que a nuvem corre mais perpendicular. Era, por fim, um remoinho, um delirio, uma furia sonorosa. Gabriel estava tomado de campanomania; mos, ps, dentes, tudo repicava. Ennovelado, como um gatinho que quer agarrar e ao mesmo tempo repellir um dixe que colheu s unhas, o bom do rapaz, com os olhos faiscantes e desvairados, parecia possesso: trepava, bracejava, careteava, tropeava, agachava-se, torcia-se, pulava, volteava, como se estivesse recebendo por todos os lados e a cada instante descargas electricas. Insensivel matinada infernal, que lhe estrepitava nos ouvidos, Gabriel dirigia palavras de amor, d'amea a, de incitamento aos sinos, como se elles podessem ouvi-lo. Queria communicar-lhes o seu ardor e enthusiasmo de dilettante; e como se o entendessem, dir-se-hia que, no contnuo vaivem, elles oscillavam tremulos de prazer, e tentavam desprender da pedra os bra os robustos e voarem, como as aves que tambem soltavam livremente as suas harmonias pela amplido dos ceus. No fim de duas horas de lida a natureza recuperou os seus direitos. Alagado em suor, perdido o alento, esgotados os brios e as for as, Gabriel affrouxra pouco e pouco. A estrepitosa e horrenda caricatura do duetto de Semiramis f ra o canto do cysne. A viveza doudejante do repique converteu-se n'um tocar lento e solemne, que ora imitava o dobre de finados, ora os tres signaes melancholicos que indicam o fim do dia que expira. Tambem era tempo. No seu banco parte dos festeiros, cubertos de fitas e medalhas, esperavam j impacientes que o prior, o padre Chaparro, e frei Jos dos Prazeres saissem da sacristia para comear a missa. No coreto as rebecas chiavam cada vez com odio mais figadal entre si, ao passo que os virtuosos faziam todas as diligencias possiveis para as p r de accordo comsigo mesmas e com os outros instrumentos. A gente, no s da aldeia, mas tambem dos casaes e logares vizinhos, affluindo de contnuo, enchia a igreja, e o apert o, que a a maior, principiava a avariar os chapeus, os schalls e os vestidos das aldeans mais opulentas, que tinham obtido transfigurar-se horrendamente com os trajos das peralvilhas da capital, os quaes harmonisavam t o bem com aquelles corpos mal acepilhados e robustos, com aquelles rostos morenos e rosados, como os instrumentos da revoltosa orchestra se afinavam entre si. Era um escandalo, profundo escandalo, para as beatas da freguezia, para as almas repassadas de patriotismo saloio vr as novidades de vestuarios, que as corruptoras influencias de Lisboa am exercendo nos antigos costumes, viciados por essas escusadas louainhas. A honestidade das raparigas, entendiam aquellas matronas de virtude t o solida como as suas sapatas, tinha ido por ares e ventos involta nos farrapos das humilhadas saias de baeta vermelha, das abandonadas roupinhns de panno azul, e das pyramidaes carapuas. A devassid o, embrulhada nos vestidos de chita, de lan e de seda, e mettida entre o forro dos chapeus de palha, penetrra no seio das familias. Tudo estava perdido, e a moral a cada vez a peior, diziam ellas com a philosophia macissa que o judicioso Horacio j gastava ha dous mil annos, e que a mentira mais trivial, mais velha e mais tola que se conhece no mundo. Nas suas reflexes piedosas as respeitaveis decanas da aldeia esqueciam, ou antes ignoravam, o unico motivo serio que havia para lamentar aquella transforma o. Era que esses trajos tornavam contrafeitas as raparigas aldeians; matavam a poesia campestre; associavam ao idyllio a walsa e o whist, e como que impregnavam a atmosphera, pura, brilhante e livre, dos miasmas repugnantes que povoam o ambiente pesado e abafadi o de tertulia cortesan. Mas, antes de proseguirmos nesta gravissima historia, necessario que trepemos quella encosta que fica defronte do presbyterio, e que vejamos o que feito de um nosso conhecimento antigo, roda indispensavel para o andamento da machina de successos que vamos tecendo. Quem n o v que fal mos do nosso jovial e praguejador Bartholomeu, sancto velho, se no fosse um desalmadissimo avaro? O moleiro, desde que o filho casra, andava-lhe tudo medida dos seus desejos. Era ganhar dinheiro como milho, e o futuro da familia dos Ventosas surgia brilhante no horisonte. O Manuel estava de feito aposentado na azenha do Ignacio Codeo, e com uma labuta o de por ahi al m. As peas do padre prior tinham feito o milagre sonhado por Bartholomeu, e ainda haviam sobejado algumas, que o honradissimo moleiro associ ra s do seu mealheiro para arranjar o casal dos Cani os, de cuja venda j lhe dera palavra seu irm o Barnab, a quem elle, havia dous mezes, n o deixava de dr d'ilharga para que lhe tornasse as suas vinte moedas, que lhe eram indispensaveis, dizia o matreiro saloio, para pagar uma divida contrahida com um usurario de Lisboa por causa do casamento do seu Manuel, que se v ra obrigado a arrumar. E como Barnab, que tambem era saloio e manhoso, lhe objectasse que s vendendo o casal dos Canios lh'as poderia pagar de prompto, e que era uma de seiscentos achar comprador que d sse o que elle valia, Bartholomeu, acceso em amor fraterno, lhe declarou que o maldicto usurario dera a entender, que, se elle Bartholomeu tivesse umas terras que lhe empenhasse, esperaria pelo dinheiro com quaesquer cinco por cento ao mez; que por isso, vendo-se naquelles apertos e afflic es, faria o sacrificio de lhe tomar o casal pelas vinte moedas e mais o que fosse justo, que iria pedir ao mesmo usurario; porque--accrescentava elle, quasi chorando--vo-se os anneis e fiquem os dedos. Que ficaria arrasado, e a bem dizer a pedir esmola; porque, como elle Barnab lhe affirmava todas as vezes que lhe a pedir o seu dinheiro, as excommungadas das terras apenas davam para o fabrico. Emfim, t o despejadas mentiras pregou ao irmo, tanto o atenazou, taes artes teve de lhe converter as s tas em grelhas, que as bichas pegaram, e Barnab deu o sim, a risco de estourar os ossos tia Vicencia, sua respeitavel consorte, minima pegadilha, ou de rebentar de paix o como um satanaz alguma noite na cama, se no desabafasse daquella grande magua com uma boa massada na mulher, consola o que para um verdadeiro saloio nas afflic es o supra-summum dos prs e precal os matrimoniaes. A Providencia temperou as cousas deste mundo de modo que se podem symbolisar todas as felicidades delle n'uma ameixa saragoana. Do uras, succo, belleza externa, sim-senhor; tudo quanto quizerem: mas, no fim de contas, travo e mais travo ao p do caro o. o que explica, p p sancta Justa, a theoria das compensa es d'Azas. Mais um caso, para mostrar as carradas de raz o que Azas tinha na sua grande cenreira a este respeito, o que succedeu ao moleiro, no dia em que Barnab acabou de se resolver sobre o casal dos Cani os. Tinha sido justamente no dia da festa pela manhan, que Barnab f ra com a sua Joanna missa das almas, e viera pelo moinho almo ar com o irmo, que n o lhe mostrou a melhor cara a principio, mas que at mandou fazer uma fritada de meia quarta de lingui a e tres ovos (um botou-se fra, porque estava g ro) quando soube ao que elle vinha. Bartholomeu no cabia em si de contente: obrigou a sobrinha a levar atados no avental obra de dous arrateis de farinha para fazer umas raivas, pondo l o assucar e os ovos, e mandando-lhe metade dellas; e por mais que pae e filha se escusassem de acceitar o seu favor, embirrou, e no houve torc -lo. Estava naquelle dia capaz de lhes dar de presente metade da sua fortuna, e mais era, dizia elle, um pobre de Christo. Logo que se foram, Bartholomeu deitou a correr para casa, fechou-se no seu quarto, abriu, umas aps outras, as vinte gavetas de um contador, mecheu e remecheu em todas ellas, tornou a fechar, e fazendo contas de cabe a, comeou a passear de um para outro lado do aposento, com as m os cruzadas nas costas, e entregue s suas cogita es. Os adornos ou guarni o do quarto consistiam em um leito de casados de pau-sancto de ps torneados e cabeceira redonda, thalamo nupcial, agora enluctado pela sempre chorada morte da tia Genoveva da Ventosa, m e de Manuel da Ventosa, e mulher que fra do honrado Bartholomeu da Ventosa, que, para falar como os poetas, solitaria rolla (ou rollo ou rolho) naquelle ninho silencioso se encouchava triste nas longas noites de inverno, ai, outr'ora t o felizes! O contador ficava defronte, e ao lado um bofete, e sobre o bofete um oratorio forrado de damasco amarello com sanefa encarnada. Sete sanctos povoavam o larario da defuncta moleira: S. Servulo, Sancto Onofre, S. Miguel, S. Sebastio, S. Gregorio, Sancto Antonio, e S. Jo o Baptista; este ultimo no centro e em peanha mais elevada; Sancto Antonio sua direita, com um cord o de ouro lanado ao pesco o e dando multas voltas ao redor do corpo. Como supplemento, por cima da cabeceira da cama, uma lamina da Senhora da Concei o, e dous registos, um de Sancta Barbara, outro de Sancta Rita; no tardoz da porta uma cruz de S. Lazaro pregada com massa. Uma arca da India, com ferrolho de correr e pregaria de grandes cabeas chatas de duas pollegadas de diametro, e quatro cadeiras de costas e assentos de couro lavrado completavam a mobilia do aposento. No canto do bofete, quasi borda, estavam cravados um cruzado-novo e um tosto falsos, memorias dolorosas de um mono que preg ra certo padeiro de Lisboa ao moleiro, na compra de uns saccos de farinha, historia, que, se eu a contasse, havia de fazer arripiar o pello aos leitores mais do que as novellas de Anna Radcliffe. "Dez centos de mil ris! Chumba-lhe!--dizia o velho esfregando as m os, como um botecudo esfrega dous pus de que quer tirar lume, e passeando com passos curtos e rapidos de um para outro lado.-- isso! cem peas, sete centos e meio; quatrocentos pintos, dous centos menos oito; fazem nove centos e meio menos oito: duzentas cravellas de doze, meio cento menos dous: oito e dous dez: dez centos menos dez: oitenta de seis fazem duas moedas: duas moedas dez mil r is menos um cruzado: oito meios tostes quatro tost es: quatro tostes com ... justamente, dez centos. Ah s Barnab, quer setecentos? Heim? Com vinte moedas que j l andam a juro, parece-me....! Quer ou n o quer?"--"Homem, isso muito pouco..."--"Pouco?! E doze moedas foro?"--As terras d o bem para isso: s a Abrunhosa..."--"Pois se d o, homem, paga-me as vinte moedas. Ah, embatucas? Oh, oh, ih, ih, ih!.." E Bartholomeu ria a bom rir daquelle dialogo que phantasiava travar como irmo. De repente, por m, as fei es contrahidas pelo riso se lhe immobilisaram diante de uma ida fatal. Barnab podia dar com a lingua nos dentes cerca do negocio, n'alguma noite em que fosse para a tenda do Agostinho jogar a bisca a vinho, segundo o seu costume, e sair um atravessador a picar-lhe o lan o; o Bento Rabixa, por exemplo, que tinha muito caroo, e que era um dos da tripe a da bisca. Vinham-lhe calafrios com tal pensamento. Uma palavra, uma alluso perderia, talvez, tudo. Era verdadeira agonia a sua. Costumado a implorar o c u nas grandes afflic es, Bartholomeu por uma daquellas subtilezas moraes dos avaros, que sabem conciliar a devo o com o seu vicio hediondo, ajoelhou diante do oratorio, e com lagrymas e fervorosas suplicas comeou a pedir a S. Jo o Baptista fizesse com que Barnab n o tugisse nem mugisse a similhante respeito. Nas suas ora es passou-lhe, talvez, pela cabea a id a de um estupor na lingua de Barnab. Desconfio: n o o affirmo; porque no g sto de cousas dictas no ar. O que certo que procurou dar a entender ao sancto que teria duas vlas accesas e uma esmola para a sua festa, se as cousas lhe saissem a geito, exprimindo-se, todavia, por tal arte que n o ficasse absolutamente preso pela palavra, e podesse roer a corda depois de se pilhar servido. Em quanto o moleiro se debatia nestas tempestades de ambi o, passava-se no presbyterio a scena que j descrevi entre Jo o Nepomuceno e Gabriel. A principio Bartholomeu, embebido nos seus calculos, temores e rogativas, nem sequer ouvra os repiques variados e harmonicos, com que o rapaz do moinho romp ra o seu grande e festivo concerto; mas pouco a pouco o motim dos sinos crescra a ponto, que s os defunctos do cemiterio poderiam ficar indifferentes a to retumbantes bellezas musicaes. Na aldeia j ninguem se entendia no meio dessa procella de sons, que, trepando pelos outeiros ao redor, e precipitando-se para os valles alm, iam levar o ruido da festa e a gloria de S. Pantale o s povoa es vizinhas. Penetrando pelos ouvidos do moleiro, aquellas vibra es desalmadas fizeram-n'o despertar do extasi de sovinaria devota que o arrebatava. Ergueu-se, chegou-se janella, alou a adufa, poz-se a mirar o relogio de sol do campanario, piscando os olhos e fazendo com a m o uma especie de pala para os defender da luz, e depois de se affirmar por um pedao, deixando cahir de golpe a adufa, correu arca, murmurando:--nove horas! J mais de nove horas! Esta s por trezentos milheiros de diabos! E ainda tenho de me vestir! Com seiscentos diabos! D'aqui a nada esto l os outros. Ora o diabo!.." Estas impreca es em razo descendente, que o moleiro tinha sempre na b ca por um mau habito, que todas as prga es e remoques do padre prior n o haviam podido fazer perder quella lingua damnada de Bartholomeu, nasciam de uma circumstancia na verdade s ria. A func o d'igreja devia de comear s dez horas, e elle era um dos festeiros. O padre prior tantas voltas dera que o obrigra a s -lo, e a esportular uma moeda para as despezas. Devemos acreditar que nunca o teria alcanado, se n o fosse o dote de Bernardina, sobre o que o moleiro tremia que o velho clerigo deixasse escapar alguma palavra. Elle aproveitra habilmente o caso para passar por bom pae e generoso, e ao mesmo tempo para se esquivar ao menor acto de beneficencia o resto da sua vida, affirmando que se empenh ra at os olhos para comprar e reparar a azenha do Ignacio Code o e estabelecer l o seu rapaz, quando a verdade era que, comprada e reparada a azenha, posta a casa aos noivos, adquiridos seis machos, paga a soldada de tres mezes a dous mo os, provda a dispensa, e deixadas algumas moedas para as despezas diarias, ainda um certo numero de louras do padre prior tinham ido cahir, como j disse, no escaninho onde jaziam sem ver sol nem lua aquellas que o moleiro acabava de contar. Obrigado por semelhante considera o, e for a de rogativas do parocho e das picuinhas de outros irmos da Irmandade do Sanctissimo, que se tinham mettido no negocio, o moleiro achava-se elevado a uma situa o que estava longe de ambicionar. Perdida a moeda, que elle havia de chorar toda a sua vida, importava-lhe n o perder a considera o e valia na festa, que por to alto e raivado pre o comprra; era o risco que via imminente, ao menos em parte, se n o estivesse a ponto de sar da sacristia para a capella-m r no prestito dos festeiros. O dia come ra bem; mas a-se tornando aziago. Apesar de velho, curto e barrigudo, o moleiro, n o vendo nenhum outro meio de esquivar o contratempo que receiava, apressou-se o mais que pde em se adornar com o aceio e pontualidade que requeria o acto. Do fundo da arca sa u o arsenal completo para os dias de vr a Deus. Era respeitavel pela antiguidade! Monumentos de mais felizes epochas, os arreios esplendidos de Bartholomeu constavam de uns cal es de gorgor o cr de tabaco, de um colete de veludo verde, e de uma casaca azul de abas largas e gola estreita (isto passava ha bem dezoito annos) antipoda da casaca peralvilha dos casquilhos daquelle tempo. As menudencias do trajo diplomatico do moleiro compunham-se de um chap u armado, de um pescocinho com bofes, de umas meias de algodo brancas, e d'uns sapatos de entrada abaixo, ensebados de novo, com fivelas de prata, que batiam quasi na vira de um e outro lado. Assim vestido era um principe. No; que l isso verdade; mettia respeito! Apressado, vermelho, suando com a calma, bufava como um touro encaminhando-se para a igreja. Os mo os dos seus collegas, os de tres padeiros que havia no logar, e os de cinco lavradores a quem costumava comprar os trigos, passando por elle desbarretavam-se at baixo; a outra saloiada, esp cada pelo arraial, fazia men o de cortezia com o barrete: dos mendigos que comeavam a apinhar-se para o lado do presbyterio ao cheiro do bodo, uns, que n o o conheciam por virem de longe, estendiam-lhe a mo e davam-lhe senhorias, tudo em v o; outros, que eram dos arredores, rosnavam e praguejavam-no. Mas dessas rosnaduras e pragas ria-se elle. Na aurola de gloria que o cercava j , que o a cercar ainda ma s brilhante, Bartholomeu estava tanto acima da maledicencia daquelles madraos, como os homens d'estado de qualquer partido costumam estar acima das ferretoadas, sovinadas e lambadas da imprensa periodica do partido contrario, segundo affirmam os da sua parcialidade: vide jornaes de todas as c res e cambiantes, passim. Como os politicos, o moleiro podia dizer, pondo a mo no cora o--a minha consciencia--a minha honra--a opini o publica--os meus servios--a na o--a posteridade:--e depois tossir e escarrar grosso, e seguir vante sem se embaraar com aquelle rosnatorio despeitoso e zangado; porque, como bem disse um poeta de philosophia ancha: /* O premio da virtude a virtude: O castigo do vicio o proprio vicio. */ E foi o que Bartholomeu fez: e com razo. N o eram os respeitos dos moos dos outros moleiros e dos lavradores seus freguezes, e os dos pobres que o avaliavam pelo secio dos trajos, a prova cabal e indestructivel da sua popularidade? Eram. Que caso devia, pois, fazer dos zums-zums de meia duzia de farrapilhas? Nenhum. Eu c , pelo menos, sou de opinio que fez bem proseguindo no seu caminho, tranquillo com o testemunho de uma voz intima, que o certificava de que era um homem de importancia, e digno por todos os titulos de representar o papel de festeiro a que f ra chamado. Mas a nobre altivez do moleiro, e a firmeza que mostrra para n o deslizar um apice do caracter grave e sobranceiro, proprio da sua situa o, tinham de ser postas a mais dura prova. O momento em que chegou ao adro foi aziago. Ahi viu e ouviu cousas que o fizeram sar da gravidade e compostura que at ento guard ra. O que o negocio deu de si v-lo-ha o leitor no proseguimento desta historia, que poder ter mil defeitos, mas que (no por me gabar) tenho levado com toda a pontualidade na chronologia e na averigua o dos mais miudos factos que possam illustra-la. * * * * * VII TANTAENE ANIMIS? Quando Bartholomeu a entrando no adro viu um taful e uma senhora, que, porta da igreja, forcejavam para romper a pinha de povo, que a obstruia. Vistos assim pelas costas, pareciam pessoas de conta. Trajava ella um vestido de seda preta, um grande schall vermelho e um chapu, franzido ingleza, cr de caf : elle cala e casaca preta da moda e chap u fino, posto que j amarrotado pelos apert es da saloiada, que, fingindo quererem abrir caminho ao elegante par, cada vez se uniam mais, olhando uns para os outros com aquelle sorriso de socapa e malevolo, que peculiar aos camponios quando colhem algum individuo, cujo porte e apparencia os humilha, para victima das suas gra as e perrarias um pouco abrutadas. O moleiro tinha nascido naquelles sitios, nunca dormra uma noite f ra do logar, lidava com muita gente em consequencia do seu trafego, a-lhe j a neve pela serra, e por isso conhecia perfeitamente os habitos, propenses e manhas dos seus patricios. Percebeu logo que os saloios estavam de embirra o com as duas personagens cortesans, e desenganou-se de todo vendo vir do lado da igreja um dos moos do Agostinho da tenda, que, fingindo-se bebado e cambaleando, dizia:--cres a o monte, rapazes; cresa o monte! O magnetismo animal um mysterio ainda: a extenso das affinidades magneticas ninguem a p de demarcar. De homem para homem ellas so indubitaveis; mas, porventura, v o mais longe. Ao menos eu creio que os cal es, a casaca e o chapu armado do moleiro actuavam fortemente no seu espirito por influencia occulta. Sentia no cora o uma especie de cocegas aristocraticas; uma vontade de mostrar o que podia e valia aos nobres hospedes da sua terra, que, pretendendo assistir festa, se collocavam naturalmente debaixo da sua protec o como festeiro. Era esta uma ida que n o lhe viria cabe a quando trajava os seus cal es enfarinhados, o seu colete assertoado e a sua jaqueta de saragoa. Mas veio-lhe ent o, mysteriosa, irreflectida, forosa, posto que sem quebra da liberdade de a rejeitar, semelhante, se a compara o fosse licita, graa efficaz. Approximou-se, pois, abrindo passagem por entre a turbamulta. O primeiro individuo com quem topou em cheio foi com Gabriel, que, tendo sa do do campanario, tractava tambem de penetrar na igreja para ajustar contas com o sacristo logo que se lhe offerecesse ensejo. Para aproveitar o tempo, Gabriel, informado do que se passava, a ajudando a augmentar o aperto, que crescia cada vez mais, de modo que a dama do schall e o dandy de preto, entalados juncto do guardavento, nem podiam recuar nem surdir vante. Apesar, porm, da pequenez do seu corpo, Gabriel parecia ter de olho as duas victimas, como receioso de que voltando a cabe a o lobrigassem. Careteava, ria, empurrava com alma; mas, de instante a instante, punha-se nos bicos dos ps, espreitava por cima dos hombros e por entre as cabe as dos vizinhos, agachava-se ao menor movimento que via fazer aos dous, tornava a empurrar, e nesta lida o garoto renovava, incansavel em novo combate, as faanhas que, havia pouco, practic ra no sempre memorando repique. "Mariola!--rosnou colerico o moleiro por entre os dentes cerrados, ao chegar ao aperto e agarrando de subito as orelhas de Gabriel, que, com uma cara onde assomava o ch ro, encolhia a cabea entre os hombros, mal comparado, como um caracol quando lhe puxam os tentaculos. N o tanto pela voz, como pelo contacto das mos, assaz conhecidas daquellas pobres orelhas, Gabriel sent ra o patro. Era, todavia, j tarde. "Mariola!--repetiu Bartholomeu com o mesmo grito mal sopeado de colera. E ouviu-se o tinir duvidoso de uma fivela acompanhado de um som bao, como quem dissera o do bico de um sapato grosso batendo sobre uma pouca de bombazina estofada de certa por o convexa de carne humana. Gabriel descreveu com o corpo um arco, mas no sentido inverso ao de quem faz cortezia profunda. E come ou a soluar. "Mariola!--accrescentou ainda outra vez o moleiro, com aquelle fatal rugido, que significava o seu profundo despeito. Ao dicto seguiu-se rapidamente o feito. Largou as orelhas do rapaz: recuou o bra o, cerrou o punho, e desfechou-lhe tal murro no toutio, que Gabriel foi ao ch o. A principio, uma certa contempla o com a idade, com o caracter, e mais que tudo com a fama de ricao de que Bartholomeu gosava, conteve os murmurios dos poucos, a quem as diligencias communs para penetrar na igreja haviam consentido attender ao duro castigo que convert ra Gabriel n'um como bode emissario dos peccados de muitos. Quando, porm, o mesquinho rapaz cahiu em terra, a indigna o dos seus co-r us rebentou. O moo do Agostinho, posto que a medo, alevantou a antiphona. "Tambem bater bruta! Agora, a prove crean a fez-lhe algum mal?! V bater assim no diabo. Olha n o matasse aquelles milordens!..." "Entre, s doutor!--atalhou Bartholomeu, atirando umas escorralhas de pontap , que ainda lhe titilavam nos tendes da perna direita, ao limite inferior das vertebras de Gabriel, j que n o podia sem risco applica-las ao orador. Essa fra, todavia, a sua primeira inspira o. "Ai, para isso que uma me cria um filho! Coitadinho, j no tens pae! N o fras tu orfo e prove. Mas cal-te, b ca. A gente sempre v coisas!" Ouvindo estas palavras, proferidas por uma voz feminina conhecida, o velho moleiro voltou-se. Era a senhora Perpetua Rosa, que, em companhia da ama do prior, tinha chegado naquelle instante a mata-cavallo, por se hav rem ambas entretido a examinar umas meadas, que a tia Jeronyma dera a curar lavadeira, e que esta, vindo para a festa, de caminho lhe f ra entregar. Posto que ligados at certo ponto pelo casamento de seus filhos, a mutua m vontade da lavadeira e do moleiro, alimentada por largo tempo, tinha sido como o escalracho: cada anno profundara mais um palmo de raizes. S havia uma differen a, e era que Perpetua Rosa, protegida pelo genro, perdra pouco a pouco o medo que tom ra a Bartholomeu desde aquella historia das saccas, e j se engrifava para elle sem cerimonia. Encontrando-se s vezes na azenha, nem uma s deixavam de se travar de raz es por qualquer palha podre. De resto, tractavam-se com apparente cordialidade. Era como a alliana e sympathia actual entre a Fran a e a Inglaterra. "Pois no, sua lambisgoia!"--acudiu o moleiro fazendo-se vermelho.--"Acha voc muito bonito que meia duzia de patifes estejam judiando com as pessoas que querem entrar na igreja? Com um quarteiro de diabos! Quem d o po d o ensino; e este, pelo menos, hei-de eu ensina-lo!... Rosna p'ra ahi, pedao de bruxa velha:"--accrescentou elle, vendo que Perpetua Rosa continuava a resmonear, j com acompanhamento de--"tem razo, tia Perpetua!" --"olha o maluco!"--"se queres v r o villo mette-lhe a vara na m o!"--" agora o senhor assaluto!"--Era uma tempestade eminente: era a revolta eterna do pobre contra o abastado, que resfolga pelo minimo respiradouro. E o sussurro crescia, e Bartholomeu, suffocado pela raiva, batia o p , e debalde tentava cuspir por cima daquella quasi algazarra as pragas, as injurias, as ameaas, que lhe faziam maior entupimento na garganta do que p o de cevada faria em goellas de peralvilho dengoso. Vingava-se, verdade, em servir de couces e cacha es o misero Gabriel, que se lhe reboleava aos p s; mas isto no era mais que botar lenha ao forno, e augmentar cada vez mais o tumulto. A hirta m de saloios ao p do guardavento tornava-se mais flexivel, ondeava, alargava-se, dissolvia-se, e vinha agglomerar-se de novo em volta de Bartholomeu, curiosos de indagarem o motivo daquella assuada. Falavam todos a um tempo; j no meio do borborinho ninguem se entendia; e, apesar da colera e da sua habitual firmeza, o moleiro comeava a titubear. Na furia em que estava incendido contra Perpetua Rosa, contra a ama do prior, que tambem tinha desembainhado a lingua em defesa de Gabriel, e contra outras duas velhas do logar, que ajudavam a atenaza-lo, Bartholomeu n o reparou que o taful, por cuja causa se mettra naquella nora, forcejava por chegar ao p delle. Por fim, foi a propria Perpetua Rosa que o fez attentar por isso. "Venha, Manuel, venha c: olhe a figura que est fazendo seu pae. Forte toiro! Abrenuncio!" A isto o moleiro al ou os olhos para aquella parte, e viu... Quem havia elle de vr? O seu Manuel, que, com effeito, rompia por entre a turba approximando-se, seguido de Bernardina, que l de longe fazia esgares e visagens senhora Perpetua Rosa e tia Jeronyma para que se calassem. Os dous tafues, os dous milordens, os dous fidalgos, por quem Bartholomeu affrontava as iras populares, eram nem mais nem menos que seu filho e sua nora. Ficou parvo. O luxo dos noivos fez-lhe esquecer Gabriel, as velhas, as injurias, tudo. Como o corpo electrisado pelo contacto da resina, que repellido chegando-o de novo a ella, e desemb sta para o vidro se lh'o approximam, a sanhuda indigna o do moleiro nordesteou para as novas victimas. Cingiu involuntariamente as algibeiras com as mos; porque cada uma dellas se lhe figurou convertida n'um repuxo de cruzados novos, que, descrevendo uma curva parabolica, am cahir nos balces dos arruamentos de Lisboa. Depois, fincando os punhos cerrados nos vazios, e meneando a cabe a de um para o outro lado, poder-se-hia comparar ao oceano nos momentos que precedem a tempestade, quando as vagas, profundamente revoltas, ainda se no encrespam em carneiradas, mas banzam como somnolentas e espertando-se para o combate. Passa a Fran a pela terra classica da galanteria: parece que o bello-sexo tem alli o seu throno. Nesse ponto cedem a palma aos francezes os outros povos. Dizem-no todos; mas eu digo que no. Vence-os esta namorada terra de Portugal. Os nossos affectos ser o menos ruidosos, menos rendidos; so, por m, mais ardentes e duradouros. Se as phrases d'uma lingua podem muitas vezes servir para revelar o caracter, os costumes e at a historia da na o que a fala, a nossa lingua e a franceza nos offerecem argumento da existencia dessa superioridade do cora o, pela qual eu ponho, n o digo a cabea, mas quasi. E sen o, respondam-me. Que incendio seria maior; aquelle que precisasse de um anno para amortecer e extinguir-se, ou o que durasse apenas um mez? Indubitavelmente o primeiro. Bellamente. Venhamos agora hypothese. O matrimonio de sua natureza resfriativo: a paixo mais violenta acalma, entibia-se, entisica, e morre com o tracto domestico; e feliz se p de chamar a unio em que a amizade e a estima vem substituir os sonhos e os delirios de um amor j saciado. Ha, todavia, um periodo em que, apesar de satisfeito, elle resiste ainda: durante o lento desabar das illus es, que vo cahindo pe a a pea. Nesse periodo ainda aos casados cabe o nome poetico de amantes: depois que se chamam a cousa mais prosaica e positiva que se conhece no mundo; chamam-se marido e mulher. Esta epocha transitoria tem a sua formula diversa segundo as diversas linguas. Exprime-a em francez a phrase lua de mel: o portuguez diz anno de noivos. claro que em Portugal resiste o amor ao matrimonio doze vezes mais que em Fran a. L um mez; c um anno. Fiquem as raparigas de aviso: nada de amores com estrangeiros. Se em Frana n'um mez colhem todo o fructo da victoria, que ser por essas terras de Christo mais geladas e nevoentas? Eu, por mim, faam l o que quizerem. Lavo d'ahi minhas mos. Bernardina, essa que a dera em cheio casando com o Manuel da Ventosa. Aos quatro mezes de noivo era ainda um baboso por ella. No principio de julho ajustra contas com os freguezes da azenha, e receb ra algumas moedas: a festa da aldeia estava proxima: Bernardina morria por tafularia; o moo moleiro tambem n o lhe era avesso. Tinham o vicio instinctivo da gente moa, vicio legitimo, se em vicios se p de dar legitimidade. Duas foras arrastavam, pois, o pobre Manuel da Ventosa: o amor, e a propria inclina o. D. Thomazia, irman do mestre eschola da aldeia (se Deus me der vida e saude, ainda talvez um dia conte a historia do digno professor) viv ra na crte muitos annos com o sabio mano. Nisto de modas falava que nem um livro. Quando a por acaso a Lisboa, nunca deixava de visitar duas ou tres modistas suas conhecidas, de maneira que, por assim dizer, andava sempre ao par da sciencia. Foi n'um aposento interior, no sancta sanctorum da residencia magistral, que se traou, discutiu, e resolveu a conspira o, que devia baralhar os calculos de Bartholomeu sobre as maquias da azenha naquelle semestre. Seis moedas foram ali barbaramente espatifadas. Foi um or amento perfeito: talhou-se por cima da risca do necessario, e gastou-se: gastou-se d'ahi a poucos dias at o ultimo real, j se sabe, com severissimas economias, ficando-se devendo apenas uns tres mil e seiscentos a D. Margarida, famosa modista daquelle tempo. A campanha fez-se do modo seguinte: Manuel da Ventosa acompanhou D. Thomazia a Lisboa, para umas compras de certos arranjos domesticos, de que ella dizia muito carecer. Os arranjos eram os da fatal conspira o contra o velho Bartholomeu. Os trances d'esperana e de receio do bom ou mau desempenho de D. Thomazia, por que passou Bernardina em quanto os dous n o voltaram, no cabe no possivel narra-los. Apesar d'isso, a elegancia com que se imaginava trajada e o seu homem, namorava-a de si mesma, e dobradamente delle. Chegava a ter ciumes das olhaduras que deitariam ao Manuel as outras raparigas, sem que por isso deixasse de admittir com certa complacencia innocente a id a do quanto a haviam de achar attractiva os rapazes da aldeia. Emfim, aqui o caso de dizer com o poeta, cerca do que se passava no cora o da moleira, /* "Melhor exp'rimenta-lo que julga-lo; Mas julgue-o quem n o pde exp'rimenta-lo." */ Voltaram os dous s trindades. O escholar valdo do mestre, que aviava os recados de casa, tinha-os acompanhado. N'um grande sacco de damasco amarello, herdado por D. Thomazia de sua av materna, e em duas grandes caixas de papelo trazia o rapaz os almejados adornos. Quem diria que o monumental sacco era a boceta de Pandora!? Pois era. Bernardina saltou de contente ao desenfardelar aquella feira: estava vestida moda dos ps at cabe a, posto que o seu Manuel houvesse cortado para si uma posta de leo. Digo isto, porque, apesar de toda a farandulagem feminina, que a boa da irm do professor escolhra com fino tacto, quatro moedas tinham ficado no Adri o, n'um chapelleiro do Rocio e n'um sapateiro ahi proximo, no me lembra em que rua, porque isto j la vae ha muito tempo, e a historia est sujeita a estas deploraveis lacunas. O caso que elle pela sua parte, envergada aquella fatiota, poderia sem grande favor passar por um fidalgo de provincia chegado de tres dias c rte. Fugia-lhe tudo um s n o s do corpo, e tolhia-o, verdade; mas ficava um moceto teso; um milordem, como dizia o mo o do Agostinho da tenda. Segredo, segredo profundissimo (semelhante ao da nossa to celebre conspira o de 1640 contra os castelhanos, da qual s talvez sabia o primeiro ministro de Castella) se guardou na azenha, olim de Ignacio Codeo, cerca de todas aquellas tafularias. Quantas vezes no se vestiram a casaca e o vestido de seda! Quantas se n o pozeram o chapu de castor e o franzido! Que viravoltas se n o deram, que visagens se no fizeram diante de um espelho de espinheiro com suas cortinas de panninho, que adornava a casa de f ra sobre uma commoda de vinhatico oleado, cujas puxadeiras de metal amarello luziam que nem ouro! Que disputas no houve sobre o abotoar e o desabotoar, o atacar e o desatacar, o p r o chapu assim, e o p r o chapu assado! E D. Thomazia, que presidia quellas concluses, da alteza da sciencia punha termo questo com o seu parecer decisivo, magistral, oracular. No grande dia da festa a vaidade daquellas duas crean olas, satisfeita com a admira o popular, no valeria, n o podia valer, o deleite que a antevista gloria desse dia lhes dava em imagina o. Ai, assim so todas as ambi es e esperan as humanas! O goso sempre o desengano mais ou menos ensosso das fascina es do desejo. Mas havia uma nuvem negra que entenebrecia o brilho de t o completa felicidade. Era a lembrana do genio de Bartholomeu. s vezes, no meio dos mais festivos commentarios sobre a grande vista que haviam de fazer com as inopinadas secias, a figura do moleiro surgia terrivel, enrugada a testa pela severidade, os olhos-ervilhacas faiscantes de colera, a bca borbulhando pragas. Bartholomeu cortava com o seu vulto amea ador aquella linda pagina dos sonhos da vida, bem como o pingo de amarellado simonte (perdoe-se o enxovalhado do simile em favor da exac o) que, rolando insensivel pelo estendido beio do velho sapateiro, vae cahir sobre o Carlos Magno, aberto em cima dos joelhos, e espalmando-se arredondado sobre as linhas mais interessantes do livro immortal, embacia e mata as chispas de Altaclara no momento em que ella rompe o arnez de Ferrabraz. E o mestre p ra, e assoa-se; mas a interrup o fatal desvanece as illuses dos officiaes ouvintes, e descerrando-lhes os dentes, lhes quebra os brios com que puxavam a encerolada linha, ou cravavam os pinos no alteroso tac o. Uma ida, todavia, asserenava logo a alma de Manuel da Ventosa: o furac o paterno estava certo; mas devia ser passageiro. Elle no havia de p r-se a ralhar nenhuns vinte annos. Era um dia ou dous; e aquellas louainhas ficavam para toda a vida. E esta dilatava-se-lhe por horisontes t o illimitados! O bom do rapaz ainda no dobrara o melancholico padr o dos trinta annos, d'onde s se come a a medir bem com os olhos o curto caminho de ferro entre o bero e a cova, pelo qual vae correndo esta especie de locomotiva chamada existencia humana. Aqui tem, pois, o leitor que gostar da historia lardeada de todas as investiga es, exhibi es e minudencias gravissimas, de que ella se costuma temperar, com tanto juizo e talento, nesta nossa terra, as causas e items mais remotos e reconditos da difficultosa situa o em que achamos Bartholomeu vista da descommunal tafularia do filho e da nora, cuja defesa tomra sem os conhecer, como verdadeiro paladino, e que dava de todo o cora o ao demo desde que v ra assim arder sem remedio o seu remedio, como diriam o elegante auctor dos Cristaes da Alma, ou os poetas da Phenix-renascida. Banzou por alguns momentos o velho. A transi o era demasiado violenta e rapida, e a revolu o que se operava na sua alma vinha gravida de uma apoplexia. Indicavam-no as veias da fronte que engrossavam, a vermelhido do rosto que a tirando a rxo. Semelhante ao hesitar da grimpa no topo do campanario, quando em trovoada eminente luctam dous ventos contrarios, Bartholomeu n o sabia se repellisse as insolencias de Perpetua Rosa, que tivera a ousadia de chamar-lhe toiro, se descarregasse a colera que o asphyxiava sobre os dous barbaros delapidadores da quasi sua fazenda; quasi sua, digo, porque o moleiro bem sabia que a azenha comprada com o dote de Bernardina era em rigor delles, e por consequencia delles o seu rendimento, que por paternal precau o se encarreg ra de administrar e poupar. Mas a avareza, superior ao orgulho no animo do velho, fez desembstar para o lado dos noivos o vento da colera. Abandonando o arranhado e mo do Gabriel, rompeu para os novos criminosos, que assim de subito ousavam apresentar-se no seu inexoravel tribunal. Andando, as mos contrahiam-se-lhe por espasmo nervoso, como as garras aduncas do girifalte, e ao chegar ao p delles lanou uma gola da casaca do Manuel e outra ao brao de Bernardina. Eram duas tenazes de ferro. "Que patifaria esta, s tratante?--disse, dirigindo-se ao filho em voz baixa, rouca, e de vez em quando apipiada pela indigna o que lh'a tolhia.--Voc no sabe que o dinheiro custa a ganhar? Para que essa trapagem toda? Com qu j a sua jaqueta azul tem bichos? E c a grandessissima tola n o podia passar sem sedas! No se lembra do tempo em que andava de sapatas atr s das vaccas da Josefa Enguia? Diga, senhora mosca morta?... Olha a sonsa, que parece no quebra um prato! Anda-se um homem a matar para lhes fazer casa, e vocemec s, senhores badamecos, a botar o suor da gente pela porta fra. E eu sem saber nada d'isto! Com trezentas carradas de diabos! Pena tenho eu que essa mariolada os n o pozesse n'um frangalho. No t m vergonha de se fazerem alvo do povo, e de se arruinarem e arruinarem-me a mim, que toda a vida tenho labutado para viver com a minha cara descoberta?... Oh desalmado--proseguiu depois de um instante de silencio--que contas me has-de tu dar do dinheiro que extravaganciaste, e que preciso para me acabar de desempenhar da compra da azenha?..." Neste momento o discurso de Bartholomeu, que se a encaminhando ao pathetico, foi interrompido por um rir esganiado e tremulo, que lhe chiou ao p dos ouvidos. Era o caso, que Perpetua Rosa o segura sem que elle reparasse em tal, e se pozera attentamente a escuta-lo. A ultima phrase que a boa da velha ouv ra tinha produzido nella to subita alacridade. "E ri-se voc , sua atrevida?!--exclamou o moleiro voltando-se para Perpetua Rosa.-- natural que fosse intr pece nesta alhada..." "Pois vocec nan quer que eu ria a arrebentar ouvindo-lhe essas l rias da compra da azenha? Calo-me eu, bem sei porque. Mas sempre lhe digo, que est paga e repaga. Meu dinheiro, teu dinheiro!... Entende-me, senhor Bertolameu! Minha filha n o veio descala..." "Oh diabo de bruxa!--exclamou o moleiro f ra de si.--Do-me inguina es de t'esganar! Olha a piolhosa, a estraga albardas, que me deu cabo de seis saccas, as melhores que eu tinha, por desmazelada..." "J lh'o disse, seu mirra-mofina, seu manita de carneiro assado, seu sovina-mr! N o me faa falar. Olhe que eu n o tenho papas na lingua..." "Um estupor tivesses tu nella, que te pozesse a bca banda, aldrabista de centopeia, basculho de chamin, carra a do inferno! Falta agora que a senhora diga que a lesma da filha trouxe para o casal mundos e fundos!" "Anto, como meche nessa borbulha,--acudiu Perpetua Rosa, agarrando o moleiro por uma das largas abas da veneranda casaca, e sacudindo-o com for a,-- preciso que n o faa da gente tola. Assim o quiz, assim o tenha. Saibam vocec s--isto dizia-o voltando-se para cinco ou seis velhas, que faziam roda e segredavam umas com outras.--Saibam vocecs que o senhor Bertolameu da Ventosa recebeu mais de cinco centos de mil r izes de dote..." "Eu deito-me a perder com este diabo!--interrompeu o moleiro fazendo-se fulo, e soltando as mos do bra o de Bernardina e da gola do seu Manuel, para as lanar ao gasnate de Perpetua Rosa.--Oh lingua perversa! Quaes quinhentos mil r izes?!..." "Os que meu amo tinha ajunctado gro a gr o, como se l diz, custa do suor do seu rosto, com muito gloria in incelsis muito bem cantado, e muito enterro feito, e muitas btegas d'agua nos ossos, e muito serm o prgado, e muito arranjo e poupan a desta sua criada, senhor Bertolameu. Senhor Bertolameu, tenha perposito! que quem no diz, n o ouve; que l resa o dictado: manha do a ougue, e com villo vill o e meio. Foram setenta caras; salvo seja! Vi-as contar com estes olhos, que ha-de comer a terra. E quem as arrecebeu? Nanja eu. Assim compra-se muita coisa, e arrotam-se postas de pescada. Diz bem, senhora Perpetua Rosa; diz bem! Quem perdeu perdeu; mas no queiram metter os dedos pelos olhos gente. Nunca vi creatura assim: t'arrenego!" Este brilhante discurso, at certo ponto, e debaixo de certos aspectos, quasi parlamentar, fez volver o catavento de raiva do moleiro para a oradora, que n o era ninguem menos que a tia Jeronyma, a qual abicra ao p delle na alheta de Perpetua Rosa. Bartholomeu andava-lhe j a cabe a roda, e fugia-lhe o lume dos olhos. Largou os gorgomilos da sua estimavel consogra, e come ou a menear os braos por tal geito, que faziam lembrar as v las do moinho da Ventosa. Os olhos saam-lhe das orbitas, e a escuma dos cantos da b ca: quasi no podia falar. Entretanto Perpetua Rosa, solta do feroz amplexo, exclamava: "Pouca vergonha! p r as mos na cara de uma mulher velha, este gaiato!" palavra gaiato, homens, rapazes, mulheres, que de instante a instante augmentavam a roda, ninguem se pde conter, pelo contraste monstruoso entre semelhante epitheto e o vulto de capit o hollandez, rhomboidal, vermelho, rugoso, quadrangular, irritado do moleiro. Foi uma cachinnada, um palmear, um ah ah ah ... ih ih ih ... um assobiar de garotos, que fazia tremer as carnes. Debalde Bartholomeu tentava fazer ouvir as suas explica es: o estrepito opposicionista embaraava a atrapalhada voz do ministro, que pretendia desemaranhar aquella inextricavel quest o de oramento. Ninguem se entendia: era completamente parlamentar. Neste momento, porta de um corredor que dava para a sacristia, appareceu de subito, j meio revestido, o padre prior. O motim do adro tinha ecchoado l dentro. vista daquelle aspecto veneravel e venerado fez-se prompto e profundo silencio. "Que estrupida esta?--perguntou o velho parocho com aspecto carregado e voz severa.-- na vizinhan a da casa de Deus, na hora em que vo celebrar-se os divinos mysterios, que os meus honrados parochianos vem tecer disputas e travar-se de raz es, em vez de guardarem a compostura e devo o com que devem preparar-se para o tremendo sacrificio do altar? Rixas e apupadas no dia do bem-aventurado S. Pantaleo?! N o o soffro. Vamos, expliquem-me a causa de tal barulho. Que foi isto?" "So estas descaradas....--gritou Bartholomeu. "Saiba vossenhoria....--acudiu ao mesmo tempo a tia Jeronyma. " este insolente..."--interrompeu Perpetua Rosa. "No nada, padre prior; no nada:"--diziam conjuntamente o Manuel e a Bernardina, mais com a mo, fazendo um gesto negativo, que com as palavras, enredadas inintelligivelmente com as do moleiro, da ama, e da lavadeira. "Fale um!"--gritou o prior.--"Assim fico jejuando." "Foi....."--disseram todos ao mesmo tempo. "Peior!"--acudiu o parocho.--"Cada um por sua vez. Vamos." "Saiba vossenhoria..."--vociferou o moleiro, ganiu Perpetua Rosa, flautou a ama, murmurou o Manuel, pipitou Bernardina, clamaram os circumstantes. "Visto isso, impossivel saber de que se tracta?"--interrompeu de novo o prior.--"Est bom... N o importa! Depois da festa averiguaremos o caso. Tudo para dentro j! V tomar o seu logar, Bartholomeu. Esto os mesarios espera, e voc entretido aqui com estas toleironas! Vamos. Nem mais uma palavra." E dizendo e fazendo, recolhia-se para a sacristia. No relogio de sol o gnomon estendia exactamente a sua sombra sobre o ponto de intersec o marcado pelo X. As rebecas soltaram a sua chiadeira quasi harmonica, e o grupo, desfazendo-se, escoou-se pelo portal tricentrico, cujas pedras a broxa vandalica havia amarellado; e dentro de poucos instantes o adro ficou silencioso e deserto. Os instrumentos tambem fizeram silencio passados alguns minutos, e sussurrou l dentro uma voz humana, cansada e debil, que entoava com suave melopea: "Introibo ad altare Dei." * * * * * VIII GLORIA AO PADRE PRIOR. Estamos porta da igreja. A saloiada mettemo-la dentro. O padre mestre Prazeres, o padre Chaparro, e o padre prior n o sei se d'aqui os vm na capella-m r. Fr. Narciso gyra, mira, vira, revira tudo, na credencia, no altar, na banqueta. O ceremonial romano um mundo de id as, que elle dispoz nos diversos repartimentos cerebraes, com uma comprehenso, um tino, uma logica de por ahi al m. Fr. Narciso tem d'olho o padre Chaparro, que foi toda a vida um tonto em liturgia, e assim ha-de morrer. General naquelle conflicto, Fr. Narciso est lerta; nem seiscentos Chaparros seriam capazes de lhe entortarem uma ou mil missas cantadas. Em semelhantes occasies o veterano mestre de ceremonias contempla impassivel da altura da sciencia as evolu es dos seus subordinados: tudo abrange, tudo prev , tudo dirige tranquillo. E no solta uma voz unica: n o reprehende, no incita, n o ameaa. Uns bei os estendidos e inclinados esquerda fazem parar o missal, que a a ser extemporaneamente arrebatado da banda da epistola para a do evangelho; uns olhos trasbordando pelas palpebras, acompanhados de um oscillar de cabea rapido, horisontal e fugitivo, inteiri am os joelhos que vo a vergar em genuflex o deslocada. Emfim, para que estarmo-nos a matar? Como o nome de Fr. Timotheo na parenetica, o de Fr. Narciso na liturgia ser o nome que a historia transportar s mais remotas eras, emquanto as glorias da familia arrabida durarem na posteridade. O introibo entoou-se: o negocio est agora em mos de mestre: podemos ficar descan ados com a festividade. Como o calor da igreja muito, venhamos, eu e o leitor, conversar um pouco fresca sombra dos pltanos do adro. Tenho explica es indispensaveis que lhe fazer; d por onde der, embora ouamos a missa descabe ada. Sou homem de bofes lavados, como diziam os nossos velhos, e no g sto de que me estejam a morder na pelle por causa de lacunas, mysterios, ou contradic es nas minhas narrativas. Menos isso. A historia a historia, e n o se ho-de deixar por aqui e por alli obscuridades e incertezas, que fa am suar o topete s academias futuras: muito mais que ha ahi uns quidams, cujo officio esmiuar, anatomisar e criticar os escriptos alheios, e que lhes fazem os mais crueis e desalmados processos verbaes, que possivel imaginar, no lhes escapando periodo nem linha, ponto nem virgula. Critica rosnada pelos cantos a destes, semelhante ao bisbilhotar da cozinheira com a creada da vizinha, janella do sagu o, sobre os talhos que a ama deu ao presunto, ou sobre o mais ou menos acogulado da medida dos feijes fradinhos. por isso que a taes criticas chamo eu verbaes; verbaes, porque seus auctores d'ahi no podem passar. Coitados! escreveriam vinte heresias se copiassem o padre-nosso. S o os alcaiotes dos lapsus lingu, os mexeriqueiros dos actos de memoria. No vento e com vento comp em: vivem de epigrammas agudos como tranca: morrem sem deixar vestigio. Litteratos a barbas enxutas, eruditos lendo ainda por baixo, passam nas trevas como a coruja; mas bem como a coruja roando as azas, que salpicou na alampada, pela alva toalha do altar a deixa ennodoada, assim a pagina pura, affagada de tanto amor do artista, estudada com t o sincera consciencia, l recebe, na tertulia de parvos, a dedada torpe e sebenta de um chapadissimo tolo. N o sou dos mais queixosos; todavia guardo acatamento profundo a essas caricaturas de adibe, que, falta de dentes para devorarem carni a, contentam-se de fazer empolas e brotoeja na pelle do proximo. Respeito-os a todos, altissimos e baixissimos; que os ha de todas as riscas da craveira social, no civil, no militar e no ecclesiastico. Estou, por isso, sempre com o credo na bca quando escrevo uma linha, e antes quero que se queixem da frequencia dos prologos do que me condemnem sem me ouvirem. Disse j que tinha de fazer uma explica o ao leitor. Tenho; e indispensavel. Estou ouvindo um melenas arguir assim:--Como soube a tia Jeronyma que as pe as do padre prior se haviam esgueirado, com tanta magua sua, s para dotar Bernardina? Como o souberam os noivos, e Perpetua Rosa? N o se passou tudo particularmente entre o prior e o moleiro, ambos interessados no segredo do negocio, um por virtude, outro por avareza? Foi um duende que veio revel-lo? Mas isso fazer como Eugenio Sue, que logo desde o principio das suas novellas arranja um homem humanamente impossivel, e at uma entidade immortal, para nos casos difficultosos se desembrulhar das aperturas da situa o. Isso empalmar; isso no vale. Queremos saber por onde transpirou a generosa ac o do velho parocho; mas por meios naturaes. N o admittimos tergiversa o, nem milagres." T, t ! Nem eu, falando de telhas abaixo. E era para explicar este mysterio naturalissimamente, que chamava agora o leitor para a fresca sombra dos pltanos do presbyterio. O caso foi este: Quando o prior, dominado pela id a de remediar a todo o custo a rapaziada que fizera o Manuel da Ventosa, deu comsigo ao romper da manhan no moinho de Bartholomeu, lembrados estaro de que o velho, accedendo aos desejos manifestados pelo seu parocho de ficar a ss com elle, pozera f ra da porta os moos com o grito de rua! Se o homem fizesse como Polyphemo, quando tinha Ulysses e os seus camaradas encapoeirados no antro com os carneiros e como carneiros, o qual, falta do unico olho que possuia e que lhe haviam vasado, a apalpando e contando os que sa am, segundo mais largamente narra Homero, no succederia o que succedeu, e j as embrulhadas, picuinhas, dicterios e descomposturas ad faciem ecclesi, de que antecedentemente dei conta, n o teriam sobrevindo, com escandalo das pessoas graves e tementes a Deus. Era, como no logar competente deixei especificado, grande o trfego no moinho chegada do prior: duas rcuas de machos a enquerir porta; moos para dentro e mo os para fra; saccos de farinha a rolarem e a empoeirarem a atmosphera; bulha, encontr es, sapateada, arres, xs, pragas, diabos; um pandemonio, emfim, em miniatura. A chegada do prior foi t o inesperada e subita, que Bartholomeu, azoinado, no reparou nos que sa am sua voz de commando. D'aqui o damno. Uma testemunha ficava ahi, sem que Bartholomeu d sse por tal. Esta testemunha era Gabriel. O pobre rapaz tinha andado, at meia noite, do moinho para a fonte e da fonte para o moinho, com um macho e dous barris, a carrear agua. Depois, estirou-se a dormir atrs de uma pilha de saccos de trigo, com aquelle valente somno da primeira juventude, a que se n o resiste nem n'um campo de batalha. Dormiu, dormiu, dormiu. Rompia a alva e ainda elle era pedra em poo. O grito de Bartholomeu despertou-o, na verdade; mas n o teve animo de erguer-se: bocejou, bufou, espriguiou-se, estendeu os bra os para diante com os punhos cerrados, virou-se de barriga para o cho, metteu o nariz debaixo do sovaco, e proseguiu na interrompida tarefa. Felizmente para o pobre do mo o, que se fosse presentido pelo moleiro teria de acordar de todo com o despertador infallivel de dous pontaps, Gabriel n o resonava, ainda no mais profundo somno. Crendo estarem ss, os dous travaram a larga conversa o que no principio desta famosa historia ficou fielmente trasladada. N o fao eu t o fraca ida de mim ou do leitor, que supponha ass s falta de interesse a minha narrativa, ou o tenha a elle por um tal cabea de vento, que se esquecesse da estrondosa gargalhada que desandou o padre prior ao manhoso saloio, quando este lhe propoz d sse o dote a sua sobrinha Joanna, falta de outra mais digna. A descommunal risada que o somno de Gabriel, se no partido inteiramente, ao menos j estalado pelo grito de Bartholomeu, no p de resistir. O rapaz fez uma viravolta, abriu os olhos, deu uma guinada ao corpo, ficou assentado, com as pernas estendidas, e a cabea inclinada sobre o peito, meditabundo por alguns momentos, e immovel como um daquelles sant es de que resa Ferno Mendes Pinto. Depois, levando as m os cabe a, comeou a co ar rapido d'alto a baixo por cima das orelhas. Pouco durou, todavia, essa primeira furia. Como o som da harpa d'Ossian, alongando-se e esmorecendo por entre a nebrina das serras, aquelle coar d'alma affrouxou e desvaneceu-se gradualmente; as m os, confrangidas em frma de garra, espalmaram-se flexiveis, os bra os hirtos e erguidos despenharam-se mortaes ao longo do tronco, e a cabea somnolenta balou ou direita, depois esquerda, depois pendeu de chofre para diante, e resaltou quasi ao bater sobre os joelhos, semelhante ao judeu martyrisado pela sancta inquisi o, quando ao descer pendurado da pol, a corda, atada mais curta que o espa o mdio entre o ch o e a roldana, o desconjunctava, retendo-o subitamente alguns palmos acima do pavimento. Assim se desconjunctou aquella machina de somno, e Gabriel abriu seis vezes a bca, engradou-a com outras tantas cruzes, esfregou os olhos com a parte anterior do canh o da jaqueta, mirou por entre os saccos os dous velhos, embasbacou de vr alli o prior, e, sem tugir nem mugir, poz-se a escutar o dialogo, que se travra entre ambos. Qual este foi e o seu desfecho sabe-o o leitor t o bem como eu. Apenas o prior se despediu, encaminhando-se pela encosta abaixo, Bartholomeu recolhendo as setenta peas, que elle deix ra sobre a arca das maquias, poz logo tudo em movimento; e Gabriel, por cuja falta naquelle primeiro impeto o moleiro no dera, teve arte de se confundir com os outros mo os, que entravam e saam, sem que o amo nem por sombras suspeitasse que havia uma terceira pessoa sabedora do importante negocio que se acabava de comp r, e sobre o qual, no meio do seu mandar, e ralhar, e lidar, j a ambi o lhe ia alevantando na phantasia muitos castellos de vento. Segredo em b ca de rapaz, outros dizem de mulher (eu, por decencia e pelos meus principios, sustento a mo o relativa aos rapazes) manteiga em nariz de c o. Elle, na verdade, contou-o com variantes para mais e para menos, mas contou-o, que o caso. E a quem o havia de ir metter no bico? pessoa que mais interessada suppunha na historia; senhora Perpetua Rosa, mas pedindo-lhe pela alma das suas obriga es e pela fortuna da sua Bernardina que n o dissesse nada, porque o patro, se tal soubesse, era capaz de esgan -lo. Prometteu-lh'o Perpetua Rosa; jurou-o e tresjurou-o. Pulava a boa da velha de contente, e a primeira vez que levou roupa cidade fez das fraquezas for as, e trouxe de mimo a Gabriel um pio novo, uma gaiola de grilos cousa d'espavento, e uma ab da de castanhas do Maranho e de figos passados, com que o bom do rapaz se regalou de p r a bca n'uma lastima. E o mais que teve palavra. Apenas contou o caso a duas ou tres freguezas antigas de Lisboa, e tia Jeronyma, com quem desde a mestra, podia-se dizer, era unha com carne. Aqui que foram as ancias. Pelos domingos tiram-se os dias-sanctos. A ama do prior fez-se fula quando tal ouviu. A lanceta que sangrra a meia do forro da escada apparecia finalmente; e a tia Jeronyma, sem lhe importar o ver a mortifica o da pobre Perpetua Rosa, desabafou sua vontade; mas passado o primeiro estouro da dor, levou de seu brio nunca mais tornar a bulir nesta desagradavel materia. Eis a verdade nua e crua de como se aventou o segredo. A alhada da porta da igreja, nascida daquellas tafularias tolas do Manuel da Ventosa e da sua companheira, acabou de divulgar o negocio, sem que n'isto andasse o fradinho de mo furada, nem os jesuitas, gente de poder mysterioso e terrivel, nem, finalmente, o judeu errante, que tantas maravilhas obra actualmente na terra. Mas se n'isto n o entraram os irmos do quinto voto, nem o caminheiro Ahasvero, com as suas sapatas tauxiadas de pregos em cruz e com os seus alforges de cholera morbus, entrou, a meu v r, a Providencia, mas uma Providencia natural e simples nos seus meios, como ella o sempre, sem milagres nem bruxarias. Cuidava o prior que a sua nobre e evangelica generosidade ficasse occulta; cuidava Bartholomeu que tr vas perpetuas cobrissem a torpe cubia e a s rdida avareza com que se houvera neste negocio. Vae, que faz Deus? Serve-se de um pobre rapaz, que ninguem tinha em conta de nada, e pe tudo ao olho do sol. E fique desde aqui dicto que essa a moralidade da minha historia: a virtude exaltada, e o vicio punido. Nem mais nem menos, como o desfeixo daquellas grandes comedias, que, ha vinte ou trinta annos, eram as delicias de nossos paes, e a gloria dos nossos dramaturgos das tres unidades, que Deus haja... As tres unidades, entenda-se bem; porque os dramaturgos, esses o Senhor no-los conserve, emquanto podr ser, para nosso regalo e consola o. Quem disse l que as velhotas, testemunhas dos items do moleiro com as personagens que mais conjunctas lhe eram, entraram para a igreja e se pozeram a ouvir o cantar dos padres, e a musica do coreto, e o esbravejar do prgador? Por um oculo! sombra da sua victima, que fra e que a seu; sombra de Bartholomeu, a quem todos abriam caminho para o deixarem approximar-se do banco dos festeiros, ellas atravessaram a m dos homens, unidos como sardinha em tigela dos estrados para baixo at o guardavento, e chegaram ao meio do mulherio. Haja o aperto que houver, ainda n o consta que saloia deixasse de fazer praa para si na igreja. Verdade que a tia Jeronyma a em frente com a cara de arremetter que Deus lhe dera, e que mais rebarbativa se torn ra com a anterior refrega. Quem deixaria de dar campo ama do prior, e, sobre tudo, quella carranca? Seguiam-na os noivos, encolhidos e vergonhosos do escandalo que tinham causado, tornadas em fel e absintho as to risonhas esperan as que, pouco havia, punham no seu garbo e bizarria; que n'isto vem a acabar muitas vezes as vanglorias do mundo. (Mais moralidade). Aps elles vinha Perpetua Rosa, e ap s a lavadeira vinha a Veronica do Tiago, padeira gorda, vermelha e reverendaa, a Engracia Ripa, mulher do fogueteiro da aldeia, magra, alta, c r de enxofre, a Eufrasia Tasquinha, tia do Gabriel, e varias outras, mais anchas ou mais esguias, mais esgrouviadas ou mais repolhudas, que no sou eu nenhum Homero para estar, nem antes nem depois da batalha, a tecer catalogos de guerreiros.--"D licena!..."--"Ai, que me pisou!..."--"Perdoe!..."--"N o v?..."--Eis o que se ouviu murmurar por alguns instantes. E no meio daquelle mar de cabe as adornadas de lenos de c r, listrados, e brancos, avultava a pinha das recem-vindas, que tentavam ajoelhar; pinha semelhante embarca o rota a ponto de submergir-se, que balou a vacillante, e se atufa lentamente nas aguas. Manuel da Ventosa, que ficra em p no topo inferior do estrado, sentia apertar-se-lhe o cora o vendo a sua Bernardina no meio daquelle cahos de capotes e roupinhas, como uma avesinha do cu no meio de ninhada de sapos. As sedas, o chap u, as flores, a romeira rangiam, achatavam-se, engorovinhavam-se entaladas entre aquellas baetas, pannos, cameles e durantes, do mesmo modo que sobre o cadaver da virgem se achatam e quebram as alvas roupas da innocencia e a cor a de rosas, debaixo da terra aspera, pesada, immunda, que o coveiro atira brutalmente sobre os restos do que foi bello, delicado e puro.--"Mas que remedio?--pensou Manuel. As cousas assim ho-de ser sempre, porque assim foram desde o principio do mundo."--Elle, de feito, cria que desde esse tempo existiam missas cantadas, saloias e apert es. Mas emfim ajoelharam, persignaram-se, e a festa principiou. No a descreverei eu. Quem n o sabe o que uma festividade de orago, e o que a missa solemne celebrada n'um templo catholico? Ha ahi alguem, crente ou no-crente na f que seus paes lhe ensinaram, que no tenha bem vivos na memoria esses dias festivos da sua meninice; esse culto, que sabe elevar o espirito para o c u com as pompas de espectaculo sensual, que parece deveriam faze-lo descer para a terra? Quem se no lembra daquelles bons dias sanctos dos doze annos, em que o sol era mais formoso que nos dias de trabalho, sem exceptuar a folgada quinta-feira do sueto escholastico? Quem se n o lembra da epocha, em que o nosso parocho era para ns um ente quasi divino; porque, pobres crean as, ainda ignoravamos os caminhos por onde esses homens, chamados a uma existencia de sancta e sublime poesia, sabem vir despenhar-se no charco das miserias e torpezas humanas, e revolver-se ahi com aquelles de que deviam ser esperana, salva o e exemplo? Quem n o se recorda com saudade do tempo em que o altar s lhe apparecia a certa distancia, com o seu frontal broslado e a sua toalha alvissima, assoberbado pela catadupa de lumes de um throno, perfumado pelas jarras de flores, involto no ambiente turvo pelos rolos de fumo raro e pallido do incenso, symbolo do mysterio? A quem n o murmura ainda nos ouvidos o rythmo monotono e severo do psalmear sacerdotal, mais accorde com as doces tristezas do cora o, que toda a musica sentida e dolorosa dos espectaculos scenicos, e que estes, na impotencia de o vencer, tm ido humildemente imitar nas crea es dos modernos artistas (porque Meyerbeer, para ser o rei das harmonias, foi invadir o templo)? Quem, finalmente, n o refugiu uma vez, cansado de scepticismo, para as memorias infantis das commo es geradas pela religio dos primeiros annos, religi o toda de affectos, de inspira es, sem sciencia nem raciocinio, os quaes, semelhantes ao sal espalhado sobre a terra, podem fertilisar algum cora o, mas esterilisam os mais delles? As impresses indestructiveis das festas religiosas guardam-nas os que cr m, como consola o do passado, e como esperana de regosijo futuro; e os que n o crm tambem as guardam, no longo crepusculo da sua alma, como guardamos no inverno as plantas odoriferas j murchas, que, debaixo de cu pardo e frio, ao p da veiga nua e da arvore desfolhada, nos recordam o halito suave dos campos ao pr do sol de um dia sereno do estio. Eis-ahi porque n o descrevo a festa. Era especular descaradamente com os leitores: era como se ao Bartholomeu se lhe mettesse em cabea ir ensinar o ceremonial romano ao incomparavel Fr. Narciso. E que ter Fr. Narciso, que j escarrou duas vezes, j se assoou quatro, j bufou seis, j arregalou os olhos para o corpo da igreja oito? que as atten es est o distrahidas. Fortes brutos! Uma perfei o de ceremonias, que nem na capella sixtina no dia da ben o urbi et orbi!--"Olha o que l vae! o que l vae!--rosnava elle cheio de indigna o.--Aquellas endiabradas... Quem vos decepra as linguas, tarameleiras! At aqui! Louvado seja Deus! de mais. Psiuhhhh!" Tinha raz o. Era um zum zum na igreja, que quasi galgava por cima das rebecas; e mais chiavam e desafinavam com alma. O arrastado psiuhhhh de Fr. Narciso restabeleceu, porm, a ordem, que nem n'um motim popular uma carga de cavallaria. Mas para se restabelecer a ordem necessario haver desordem. Quero vr se tambem dizem os parvos que esta proposi o uma das minhas esquisitices, ou excentricidades, para lhes falar na sua algaravia. A cousa tinha sado do logar onde estavam a tia Jeronyma, Perpetua Rosa e a Bernardina. Qual cousa? Isso o que no diz a historia. O que certo que era um bis bis que partia do centro para a circumferencia, como os circulos concentricos que encrespam a superficie do lago ao meio do qual se atirou uma pedra, e era ao mesmo tempo um balou ar de pontas de lenos sobre os cabe es dos capotes, um rir abafado, um sussurro, uma agita o entre o mulher o, tal, que attrahira a atten o e logo a colera de Fr. Narciso. O mais que se pde perceber foram alguns fragmentos de dialogo entre a tia Jeronyma e a Engracia do Estanislau fogueteiro. "Padre nosso que estaes nos c us:--dizia Engracia Ripa, deixando correr um dos bugalhos de umas contas da terra sancta que tinha nas mos.--Ora essa!--Sanctificado seja o vosso nome.--Forte tractante!--Venha a n s o vosso reino.--E uma pessoa com a sua quella de que era um home como se quer!--Seja feita a vossa vontade.--Safa!--Assim na terra como nos c us.--Com que ento setenta?" "Entregadinhas!--Ave Maria, gracia plena:--respondeu a tia Jeronyma, que latinisava furiosamente fora de viver com o prior.--Como lh'o hei-de dizer?--Domisteco.--Foi o demo que o tentou.--Benedit s tu..." Neste ponto a interessante conversa o das duas matronas foi interrompida pelo psiu! raivoso de Fr. Narciso. No podemos dizer sobre que ella versava, nem aonde iria dar comsigo: e quando n'uma chronica profunda e grave, como esta, faltam fundamentos plausiveis, dever do chronista ser sobrio, ou antes abster-se de conjecturas. Direi s que ao sa r a gente da festa, no havia c o nem gato que no soubesse tim-tim por tim-tim a historia do Manuel da Ventosa e da Bernardina. Mais moralidade:-- o que elles tiraram das suas tolas tafularias. Quando o prior sa u da igreja os rapazes desbarretavam-se, ainda com mais signaes de cortezia e respeito do que era costume; as raparigas affagavam-n'o com um sorrir e volver d'olhos affectuoso, que fazia scismar o bom do parocho. Todos olhavam para elle e falavam em voz baixa. O prior estava zangadissimo. Mas qual foi o seu pasmo ao vr chegarem-se a elle muitos velhos de cabe a branca (eram varios lavradores seus freguezes, hourados paes de familia) e beijarem-lhe a mo com os olhos arrasados de agua! Estava fumando. Uma onda se lhe a outra se lhe vinha de destampar com tudo aquillo, e pregar uma descompostura solemne e por atacado nos velhos, nos rapazes, e nas raparigas. E para isso no lhe faltava metralha. Mas lembrou-se de que era o dia do orago da aldeia, e teve m o em si. S l perguntava aos seus botes qual seria a causa deste destempero e doudice. Como havia elle de atinar, se tinha o costume de esquecer-se do bem que fazia, porque, sendo fraco de memoria, reservava-a toda para o bem que recebia? A historia do casamento feito pelo velho parocho, segundo depois me contaram (era eu pequeno, e lembra-me como se fosse hoje), chegou aos ouvidos do prelado diocesano, o qual disse ao famulo do famulo do seu secretario, um dia em que se levantou de dormir a s sta com vontade de galhofar, que na primeira visita que fizesse diocese havia de elogiar publicamente aquelle digno pastor. Nunca, por m, houve occasio para a primeira visita, porque esta costumeira velha tinha passado j de moda. Eram pieguices s boas para os Bartholomeus dos Martyres e para os Caetanos Brand es; pobres homens, a quem Deus fale na alma, se que valiam a pena d'isso. Ajuda--novembro de 1844. DE JERSEY A GRANVILLE. (1831) Abandonavamos, emfim, o solo d'Inglaterra. Ser a pela volta do meio dia quando saltmos no chasse-mar e que devia conduzir-nos de Jersey a Saint-Mal, atravessando aquella estreita por o do canal que nos separava da Fran a. Sentimentos encontrados eram nesse momento os meus. O sol resplandecia brilhante, e o ar estava puro e sereno: era um dia d'outono, to bello como o que mais o fosse em Portugal. De um lado alteava-se a ilha com os seus outeiros e valles, solo anfractuoso semelhante ao nosso, e a povoa o com os seus edificios cobertos de telha, que nos faziam esquecer aquelles horriveis tectos inglezes de lousa negra, especie de tabuletas do spleen, penduradas pelos bret es sobre as suas cidades, e em que parece ler-se a inscrip o de Dante: /* Per me si va nella citt dolente. */ Do outro lado estendia-se o mar, ch o e espelhado, que se interpunha entre ns e a Fran a; entre ns e esse paiz, que para a mocidade das na es occidentaes da Europa como uma segunda patria; porque l est o centro das idas que hoje agitam os espiritos, tanto no que respeita s questes sociaes, como no que interessa sciencia e litteratura; porque l vivem os escriptores que melhor conhecemos; que, at, am mos como se foram nossos: paiz, a cujos habitos, tradi es, successos e glorias nos tm associado os seus livros, sem o sentirmos, sem, talvez, o querermos. Ao approximarmo-nos da Fran a o cora o no bate violento, nem se derramam lagrymas, como ao avistar a terra em que nascemos; mas o animo desaffoga-se, e abre-se esperana; vamos tractar homens, que nunca vimos, mas com quem de largo tempo vivemos pelas intimas rela es dos affectos e da intelligencia. Eramos seis portuguezes a bordo do chasse-mar e, alm de dous marinheiros francezes e um grumete, entidades analogas aos nossos antigos desembargadores; porque cada um delles cumulava seis ou sete cargos daquella vacillante e pequena republica, cargos disparatados, que, todavia, as tres personagens desempenhavam perfeitamente, destruindo assim, em parte, a analogia radical, que tinham com esses magistrados de pedante e pesada memoria, que no desempenhavam bem nenhum. Um c o e tres inglezes completavam a collec o dos animaes inclusos entre as quatro taboas da fragil embarca o. O chasse-mare um transporte maritimo, que, na minha profunda ignorancia das cousas navaes, me parece semelhante ao hiate portuguez, ao menos na immundicie e na carencia absoluta de tudo o que seja commodidade. N'isto, entre parenthesis, no sou eu ignorante; porque tenho experimentado uns e outros, e posso asseverar que ser a mui difficultoso de resolver qual dos dous generos de navios tem parentesco mais proximo com as rudes e acanhadas gals, em que, ha sete seculos, Guilherme o conquistador transportou, atrav s daquelle mesmo canal, da Normandia para Inglaterra os ascendentes da actual aristocracia britannica. Commoda ou incommoda, era necessario aproveitar aquella detestavel jangada para passarmos a Frana, e isto por duas raz es urgentissimas; a primeira, porque nenhuma outra embarca o havia no porto de Saint-Hlier com destino immediato para a costa fronteira: a segunda, porque o pre o da passagem era apenas uma libra esterlina, e uma libra esterlina era o folego maior que podia sar da b ca das nossas bolsas, cuja phtysica pulmonar ia j no ultimo periodo. Tendo-nos, portanto, ajustado com o marinheiro que capitaneava o outro marinheiro, e havendo mettido a bordo os nossos bahus, que, pelo leve e desempedido, podiam servir-nos de botes de salva o em caso de naufragio, sa mos da caldeira de Saint-Hlier com uma brisa forte da terra, que brevemente nos arremessou para o largo. Era muito depois do meio dia. Algumas nuvens brancas do lado do poente recortavam as suas franjas irregulares sobre o ch o do cu, que a luz do sol tornava de um azul desbotado. Raras e diaphanas, aquellas nuvenzinhas balou avam-se no ar, ao que parecia, mais voluptuariamente do que ns, que sentiamos arfar, pinchando d'entre as vagas crespas, o nosso pequeno baixel. Pouco a pouco esses vapores accumulados, cujos contornos occidentaes barravam orlas de ouro, engrossaram, tomando f rmas determinadas. Depois, correndo gradualmente mais rapidas, e interpondo-se entre os raios do sol j inclinados e o vulto rugoso das aguas, lhes remendavam o dorso semelhante pelle mosqueada do tigre. Este jogo da luz dava ao mar um aspecto verdadeiramente accorde com a sua natureza. Que elle, de feito, sen o a mais terrivel das bestas-feras? E o vento refrescava de instante a instante, e os mastros do chasse-mare principiavam a soltar de quando em quando um gemido doloroso, curvando-se para as v las quadrangulares retesadas diante delles. O grumete a ao leme: o marinheiro, que representava e resumia a companha, de bru os e com os joelhos sob o ventre, no ademan de um gato que se apresta a saltar sobre o murganho immovel de terror, parecia examinar os novellos de nuvens tenebrosas, que se rolavam no horisonte e cresciam para ns, como uma visualidade de camara obscura. A barlavento o arraes ou capit o (capitaine lhe chamavamos ns pelo menos) que representava e resumia a officialidade do navio, com o corpo torcido, e encostado amurada, firmando a barba nos braos cruzados em cima da borda, tambem parecia esquadrinhar o c u e o mar. Dir-se-hia que o encapellar das ondas se regulava e media pelas rugas que successivamente augmentavam em numero e profundeza na fronte tostada do antigo marujo. Um susto vago e inexplicavel como que pairava no meio de ns. Era que a postura e o gesto daquelles dous homens tinham um n o sei que sinistro e mysterioso, semelhante ao bofar morno do vento que precede e annuncia a procella. Ns os passageiros, assentados n'uma especie de canap mal affeioado, que circumdava a coberta ppa, tinhamos insensivelmente cahido em completo silencio; ou, para falar com mais exac o, n s os portuguezes eramos os que nos haviamos calado; porque nem o co, nem os tres inglezes tinham proferido, aquelle um s ladro, estes um s grasnido desde o momento em que saltaram a bordo, na abra de Saint-Hlier. O unico ru do que sussurrava era o ranger do baixel, e o sibilo de vento embatendo em ns, e abysmando-se nos nossos ouvidos, o que nos fazia escutar um som semelhante ao do pinhal que se estorce e v rga ao redemoinharem-lhe por entre as ramas os mil braos da tempestade nocturna. Dos tres inglezes um velho de cabe a inteiramente branca e rosto inteiramente vermelho dava certido, nas cans, de que a agua do baptismo pass ra por alli havia muitos annos, na cr da tez dava-a de que tambem n o havia poucos que elle, levado de um sancto respeito pela materia do principal sacramento, abjurra de cora o o tocar-lhe com os labios, contentando-se de humedece-los com os tres liquidos fundamentaes de todos os contentamentos possiveis entre os netos dos kimhris e saxonios--o rhum, o vinho e a cerveja. Dos outros dous, um mostrava ser inglez de cincoenta annos, outro de quarenta; o primeiro, magro, da altura de cinco para seis p s craveiros, faces encovadas, nariz meridional, ou antes judaico, isto , prominente e adunco, tez n o tanto morena como macilenta: o segundo, typo saxonico, isto , rosto largo e achatado, olhos azues, guedelhas louras, b ca profundamente vincada nas extremidades do beio inferior, de aspecto aborrido e orgulhoso, como se todo o fumo de carv o de pedra britannico o cercasse com a sua aurola de gloria nacional. De resto n o havia que duvidar-lhes da patria: indicava-a o cheiro dos seus vestidos, suavemente impregnados do fartum sebaceo de carneiro, e aromatisados com os effluvios nauseantes da infuso do ch preto, os quaes constituem a formula odorifera da sociedade politica chamada os tres reinos unidos. Pois tambem ha cheiros nacionaes?--dir o leitor.--Que duvida! Cada na o tem a sua cren a, a sua lingua, e o seu cheiro. O credo inglez representado n o sei ao certo por quantos centenares de seitas, que se mandam reciprocamente para o inferno, desde a igreja anglicana, em que os bispos e arcebispos (poetas, amphytries, millionarios e politicos) bradam anathema contra as vaidades, luxo e cubi a de Roma, at os methodistas, que v o para os seus templos caar as inspira es de cima, inspira es que muitas vezes s o papadas por velha fanatica e tonta, e ouvidas pelos seus irmos com uma compun o que daria vinte comedias a Gil Vicente se hoje vivesse, e viajasse pelo Might Empire do vapor e da cerveja. A brisa, que ao sa rmos de Jersey era em ppa, rodou successivamente para noroeste, e antes do p r do sol soprava j violenta do lado do oeste. N s seguiamos, pouco mais ou menos, o rumo do sul, e a mudana do vento, posto que amea adora, tinha sido momentaneamente uma vantagem de commodidade: o chasse-mare corria bolina, e por isso o seu arfar se tornra mais suave. No horisonte, quasi pela p pa, divisavamos ainda o promontorio de Noirmont, e pela nossa esquerda prolongavam-se quasi imperceptivelmente as costas de Frana, como uma linha negra lan ada ao travs dos mares. O silencio que reinava a bordo dava certa melancolia solemne ao quadro do c u nublado, das vagas revoltas, e da terra que parecia quasi desvanecer-se na orla das solides do oceano. O inglez velho, que a justamente assentado minha direita, a pouco mais de meia milha de Saint-H lier comeou a empallidecer. O ar marinho inimigo figadal do fastio, e por isso, teriamos apenas navegado duas horas, quando come mos a experimentar, ns os portuguezes pelo menos, a immutabilidade inflexivel desse axioma dietetico. Tir mos algumas das nossas provises, e pozemo-nos a despachar os requerimentos do estomago. Offereci ao velho que tomasse parte naquella refei o; mas elle recusou, declarando-se sea-sick (enjoado); todavia para n o perder, como verdadeiro inglez, os prs da minha boa vontade, entendeu que podia trocar uma obra de misericordia por outra, e, deixando-se escorregar do banco ao convez, fincou-me sobre os joelhos a cabea entontecida, e cerrou os olhos. Recommendei ent o a Deus os meus pobres ossos cruraes, ameaados de chegarem a Fran a em estado de para nada prestarem, visto ser a cabea do velho uma verdadeira cabe a ingleza; dura, pesada, e macissa, como o governo da Companhia na Asia. Porque no repellia eu a familiaridade ominosa do bom do inglez; de um homem cuja na o, como portuguez, tenho a obriga o moral de desamar? Era porque em contrario havia duas considera es igualmente moraes. Uma cabe a branca sempre respeitavel, ainda que assente sobre o tronco ermo de cora o de um filho da Gran-Bretanha. Al m d'isso, o cesto de verga em que am as nossas provis es estava alli como um espectro, que me embargava sacudir a fronte do ancio para o travesseiro macio do convez gordurento. O porque desta ac o sympathica do cesto sobre o meu espirito di-lo-hei em breves palavras: uma historia como qualquer outra. Miss Parker de Plymouth era uma donzella de sessenta annos; excellente creatura, que nos hospedra por dous mezes naquella cidade, mediante a bagatella de tres shellings semanaes por cabe a. A Inglaterra, como todos sabem, o paiz da franca e sincera hospitalidade. Eramos ahi nove portuguezes, em seis camas e tres aposentos, o que dava certo ar pythagorico e mysterioso familia, que, dirigida por Miss Parker, podia servir de modelo s outras ninhadas de emigrados que ainda viviam em Plymouth. Ninguem tinha uma patroa como n s, e os seus lodgings eram a perola das albergarias de Plymouth. A principio havia-se encarregado de nos preparar a comida; mas poucos dias podmos resistir aos abominaveis temperos do paiz. precisa uma raa de estomagos que ainda fosse antropophaga no meado do quinto seculo da era christan para luctar vantajosamente com a cosinha d'Inglaterra, e estes estomagos s os inglezes os possuem, segundo o testemunho do seu historiador Gibbon. Os nossos cederam a to dura prova, e vimo-nos obrigados a dispensar Miss Parker do mister de nos envenenar. Quanto ao mais eramos verdadeiramente seus filhos em espirito, em espirito, digo, porque, af ra muitas reflexes pias de que se dignava fazer-nos, a n s pobres idolatras do catholicismo, obrigava-nos a respeitar o domingo no pleno rigor da igreja anglicana; isto , a morrer de tedio e tristeza, prohibindo em sua casa todo o genero de divertimento, ainda o mais innocente, desde pela manhan at sol posto, momento em que naquelle abenoado paiz Deus cede ao diabo o resto do dia dominical, e em que a devassid o e a embriaguez, tripudiando nos prostibulos e nas tabernas, se vingam das dez ou doze horas de sermes impertinentes dos clergymen, e de psalmos desafinados pelas vozes roufenhas e prosaicas da turbamulta, debaixo das abobadas sanctas, poeticas e venerandas das antigas igrejas catholicas, repartidas hoje em camarotes de theatro pela pureza aristocratica e beata do protestantismo inglez. Miss Parker foi o unico folego vivo da Gran-Bretanha, a quem, na minha estada em Inglaterra, devi um beneficio: quando partimos para Jersey deu-nos um cabazinho em que levassemos a nossa matalotagem, e derramou algumas lagrymas ao despedir-se de n s. Aquelle cabazinho era o que estava ante mim, e me sustinha em cima dos joelhos a cabea do velho. Sobre as vagas procellosas do canal da Mancha eu soldava assim as minhas contas com a Inglaterra. O vento continuava a rodar para sudoeste, e os nossos dous marinheiros colheram parte do panno e mudaram algum tanto de rumo: depois tornaram a assentar-se na mesma postura em que estavam, e tudo voltou ao anterior silencio, que s era interrompido pelo marulho das ondas espalmando-se no costado do chasse-mare. Mas um flagicio, mais abominavel ainda que os condimentos ferozes da cozinha ingleza, veio cortar atrozmente este silencio triste, que representava no meio de ns a previs o de imminente procella. O inglez alto, de gesto esguio, e nariz hebraisante, tinha-se assentado ao p do outro inglez affei oado pelo typo saxonico, no topo esquerdo da banqueta corrida p pa. Duas ou tres vezes, desde que levmos ferro, elle dirigiu ao companheiro uma rosnadura, a que este respondeu com o estirado monossyllabo Yes. quarta vez, aquella resposta laconica foi proferida com certa melopa de resigna o, que cortava os fios da alma, e acompanhada de um volver d'olhos azues, em que se pintava uma supplica de piedade. Mas o inglez agu ado carregou o sobr'olho, e, mettendo a mo ao seio, poz-se a procurar o que quer que era na algibeira interior de uma das quatro sobrecasacas que tinha vestidas. Eu observava esta scena; sabia o que p de o spleen, e o receio de algum anglicidio passou-me pela mente, ao contemplar o aspecto torvo de um e o gesto confrangido e timido de outro. O vento sibilava violento, as aguas comeavam a tingir-se de negro, e o c u estava completamente toldado; era meio poema britannico. Um tiro de pistola e um cadaver baldeando no mar completariam uma epopa. Nas fei es do inglez esgrouviado parecia-me ler duas palavras--Spleen e Poeta--e por isso os meus temores n o eram to infundados, como, no primeiro momento, talvez os tenha julgado o leitor. E o mais era que eu acert ra farejando em Mr. Graham Senior (eram os dous inglezes irmos, segundo depois soubemos) um fazedor das regrinhas, que na lingua ingleza correspondem ao que nas linguas do meio-dia e se chama versos. O honrado Mr. Graham no procurava na algibeira o amago e substancia da idealidade e poesia britannicas, a pistola suicida. N o! Era cousa mais atrozmente assassina; era um quaderno grosso de letra microscopica, em que provavelmente se continham as suas inspira es ineditas! Estava explicada a longa taciturnidade dos dous. O perverso meditava aquelle fratricidio intellectual desde a partida de Saint-Hlier, e os quatro grunhidos abafados que lhe ouviramos tinham sido quatro tentativas para predispor a victima. De feito, quando elle sacou o alentado canhenho, Mr. Graham Junior parecia inteiramente resignado. Aquelle atenazador das orelhas do proximo come ou a sua leitura pela primeira pagina. Era um algoz de consciencia, e j se podia prever que tinha a boa ten o de atormentar-nos emquanto durasse o dia, que felizmente se inclinava a seu termo. Como me foi possivel, percebi aos trinta ou quarenta versos que era um poeta da eschola de Pope, ou como quem o dissesse entre n s, um poeta da Arcadia. C teria falado em Jove, Marte e Neptuno, nas musas, nos zagaes, nas nymphas, na tuba de Calliope, ou na sanfona n o sei de que deusa: l, nas inspira es de Mr. Graham, eram as paix es, os vicios, os affectos personalisados quem fazia o servio dos seus poemas: aqui a esperan a, alli o desalento; ora a temperana, logo a desenvoltura. Aquella poesia frigidissima fazia-me lembrar do Olympo, do Pindo e da Castalia dos nossos arcades, e de algum modo me consolava das miserias domesticas, ao v r que a poesia cadaverica das frmas e conven es n o vivia unicamente entre ns, mas ainda ousava no canal da Mancha misturar as suas semsaborias academicas com o bramido terrivel do vento, e com o ferver estrepitoso das vagas, que entoavam accordes a sublime invoca o da procella. O poeta esguio declamava as suas regrinhas lentamente e com todos os requebros da melopea ingleza, genero de canto semelhante ao gemer rabugento de uma crean a na primeira denti o. O pobre diabo, posto que provavelmente acreditasse que nenhum de ns o entendia, pensava por certo que, nova especie de Orpheu, bastavam os sons das suas palavras harmoniosas para nos arrebatarem e extasiarem, a n s selvagens da Europa, como com tanta graa e verdade denominam os escrevinhadores de John Bull os habitantes da Peninsula! Pensava assim, de certo; porque de quando em quando volvia para ns os olhos com aquelle sorriso de complacencia estupida, que peculiar na cara de um inglez vaidoso e contente de si. Um dos exemplos mais lamentaveis da cegueira do espirito humano a persuas o em que os escriptores de Inglaterra esto de que possuem uma lingua litteraria falada; isto , que os sons quasi inarticulados do seu chilrear e grunhir correspondem sufficientemente aos grupos de caractres alphabeticos, de que elles se servem para representarem os proprios pensamentos. Todavia a lingua escripta de Inglaterra nada tem que ver com a linguagem em que a na o se exprime: s o dous typos diversissimos, que do f rma sensivel ao pensamento. Abri um livro escripto em qualquer outro idioma da Europa, e fazei ler por elle um estrangeiro completamente ignorante desse idioma: o natural do respectivo paiz, aquelle que o falou desde a infancia entender tudo ou quasi tudo, se escutar essa leitura. Fazei a mesma experiencia com um livro inglez: o natural de Inglaterra n o entender provavelmente uma unica palavra. que na realidade entre este povo, em tudo singular, os signaes chamados letras no tem um valor constante e determinado, e por isso n o podem corresponder rigorosamente a um som. A Inglaterra ha visto nascer no seu gremio grandes poetas. Shakspeare e Byron bastariam para lhe dar uma celebridade immensa. Mas a sua poesia reside toda no pensamento, na essencia da arte. As frmas externas s o rudes, barbaras, ou fluctuantes. Shakspeare e Byron foram dous selvagens, um porque estava alm da civilisa o, outro porque estava quem della; mas foram talvez as duas almas mais sublimemente poeticas da Europa. Porque, pois, no souberam ajunctar a melodia material s harmonias intimas das suas ideas? Foi porque no podiam converter em palavras humanas o intoleravel grasnido dos seus compatriotas. Uma cousa que sempre me acontece em ouvindo falar um inglez notar as mysteriosas analogias que ha constantemente entre a lingua de qualquer povo e os seus habitos de moralidade. Considerae por exemplo a lingua alleman: um idioma perfeitamente accentuado; os vocabulos escriptos correspondem rigorosamente aos falados: n o ha ahi luxo inutil de letras: todas se proferem; todas representam um som ou uma articula o. Os caractres do alphabeto nunca serviram para enganar o estrangeiro. N o achaes n'isto uma expresso do animo leal, franco e singelo daquelle povo? A Deutsche Treue, a f germanica, no se reflecte como em um espelho da lingua desse paiz? Agora escutae um inglez: dous ter os de cada palavra, como a representam os signaes alphabeticos, no se proferem: devora-os o leitor: s o uma armadilha para obrigar os labios peregrinos a darem syllabadas: o inglez pronuncia com os dentes cerrados, como se temesse que essas palavras-ourios lhe fizessem, ao perpassarem, os labios em sangue. N o achaes n'isto um typo de cubia e avareza? Um pensamento enganoso? O algod o tecido sorrelfa com a lan? N o descubris l o pensamento do tractado de Methuen, ou do desembarque de Quiberon? N o se revela no coaxar das rans de Wordsworth e dos poetas dos lameiros o British Interest? Taes eram as reflexes em que eu estava embebido emquanto o poeta mastareu acreditava ter-nos enleiados a todos com as mellifluas toadas do seu poetico lavor. A noite, entretanto, tombando de castello em castello de nuvens, lan ava sobre o dorso do mar revolto o seu manto de obscuridade. O sectario de Pope cedeu ento s trvas: fechou o canhenho, e resguardou-o outra vez dos olhos profanos debaixo da meia fabrica de Leeds, que fora absorvida na mole immensa dos seus quatro casac es. Mr. Graham Junior, apenas seu respeitavel irmo cessou de ler, volveu para elle o rosto melancholico, e murmurou, depois de um suspiro: "Aye!--Very good!" Com os tres Yes precedentes fazia a conta de seis palavras, ou grasnos, que despend ra naquelle dia Mr. Graham Junior. Dous inglezes ridiculos so incontestavelmente as duas cousas mais ridiculas deste mundo. O temporal que se prepar ra durante a tarde desfechou em cima de ns com o cerrar da noite. O vento salt ra inteiramente ao sul, de modo que nos ficava ponteiro. As vagas accumulavam-se em serras, que, alando-se e topando em cheio, se enla avam e confundiam como dous luctadores furiosos. Depois a mais possante, sumindo debaixo de si o grande vulto da sua contraria, erguia o topo esguio, que vacillava um instante, e cahia desfeita em catadupas de escuma nos valles profundos cavados momentaneamente em volta della. A lucta daquelles vagalhes gigantes, em p sobre o abysmo das aguas, estreitando-se e despedaando-se como as hyenas e tigres n'um circo romano, vista assim ao lusco-fusco sob um ceu achatado e cinzento, era uma sublime peleja! Todos os espectaculos da terra--dos homens ou da natureza--que s o, ou que valem, comparados com a colera da procella que passa no oceano? Menos que fara semsabor de titeres comparada com o Hamlet ou com o Othelo representados por Betterton ou por Garrick. O mysterio dos mares de todas as obras da crea o aquella em que mais profundamente o Senhor estampou o seu verbo; a inscrip o indelevel e indubitavel, que narrar perpetuamente ao genero humano o seu infinito poder. O chasse-mar e havia-se posto capa. O vento n o consentia j que surdissemos avante, e o arraes, depois de uma breve conferencia pra com o seu companheiro, veio declarar-nos que seria impossivel seguir o rumo de Saint-Mal ; que era necessario pr a pr a nas costas da Normandia, e dirigirmo-nos a Granville; e finalmente, que s ahi poderiamos tocar em terra na manhan seguinte. Recebemos esta desagradavel nova com mais heroica resigna o, se possivel, que a de Mr. Graham Junior ao levar a sova poetica das inspira es fraternas. E que no nos resignassemos! A immutabilidade do nosso destino proclamavam-n'a os silvos do vento, e, o que mais era, a declara o do arraes. Um capit o de qualquer baixel o absolutismo incarnado: as suas decis es equivalem fatalidade moslemica. Em muitos serm es politicos, que a esp cie mais impertinente do genero litterario--sermo--tenho lido compara es fulminantes contra os tyrannos, buscadas no despotismo asiatico. Se eu cahisse na miseria de fazer eloquencia politica, n o a t o longe busca-las. Saltava no primeiro hiate, chasse-mare, ou sloop, e travando do arraes dizia ao mundo: ecce homo; eis-aqui a fl r, a maravilha, o ideal de todos os despotismos possiveis. Os que andam incommodando Attila, Kulikan, ou Timur, para afferir por elles os tyrannetes quasi-ridiculos da Europa moderna, so dissertadores d'agua-doce, que (para me servir de uma phrase do auctor de Micer Harold) nunca pozeram a m o sobre a juba crespa do oceano. Tyrannia e arraes so synonimos: digam o que quizerem os extirpadores implacaveis das synonimias. Maitre Jean Legris era um verdadeiro arraes normando: duro, carrancudo, e inexoravel como os piratas do seculo duodecimo seus antepassados, de que t o pavorosas memorias restam nas costas de Portugal e de Galliza. Ouvimo-lo com magoa, mas com respeito, porque no havia replicar. O chasse-mar e obedecia ao leme, o leme ao marinheiro, o marinheiro ao capito, e o capit o, pactuando com o vento, resolvra empalmar-nos Saint-Mal e a Bretanha, para nos dar em troco Granville e a Normandia. Por isso, antes de nos communicar as suas inten es, mestre Joo tinha dado a p pa tempestade e tomado o rumo de leste. Contava d'antem o com a obediencia, que no lhe podiamos refusar. Emfim anoitecera: a unica luz que viamos nas campinas do ceu e das aguas era aquella especie de branquejar phantastico e transitorio da escuma, que para o luar o que um retrato de morte-cr para um vulto original--menos que frouxissima claridade, e mais que o crepusculo esbranqui ado e indeciso de um corpo alvo e que mal se divisa no meio das trevas. O chasse-mare, galgando por cima das ondas, no meio do refluxo dellas, devia parecer, visto de longe, um baixel mysterioso e infernal, perseguido por espectros que surgiam successivamente dos abysmos, e que em roda delle dan avam danas maldictas, involtos em seus alvos sudarios. Bem importavam a Mr. Graham, o fratricida psychologico, aquellas solemnes tristezas de uma noite procellosa! Tirou um frasquinho de aguardente que trazia a tiracollo, bebeu um largo trago, e alevantou-se, dirigindo-se escotilha da especie de camara que nos ficava de baixo do tombadilho. Era um pinheiro! Quando o vi em p receei que o sul o partisse; mas nem sequer rangeu. Se me n o mente um calculo rapido, Mr. Graham era, ao menos physicamente, um poeta da fora de oitenta cavallos, medida britannica: era um poeta de alta press o: era um poeta warranted, para me exprimir como os laconicos letreiros de todas as peas de fazendas inglezas falsificadas. Mr. Graham Junior seguiu Mr. Graham Senior, non passibus aequis, como mais curto que era. Ouvimos l embaixo ainda dous ou tres regougos; depois tudo cahiu de novo em silencio. O velho, que se me encostra sobre os joelhos, apenas viu os seus compatriotas buscarem acolheita para a noite, ergueu-se, e cambaleando chegou ingreme escada que conduzia estreita camara. Poz um p no primeiro degrau, poz o outro no segundo, tornou a pr aquelle no ar, e disse com o corpo no fundo--pan! Era o som d'um cask de cerveja cahindo de vinte p s d'altura. Ouviu-se-lhe um grito rouco e mais dous grunhidos dos seus respeitaveis patricios. Tinha arrebentado o saxonio, ou espalmado o poeta? Talvez ambas as cousas. Corremos a acudir-lhes levados pelo primeiro impulso de humanidade. Os primeiros impulsos, nestes casos, no prestam nem para Deus, nem para o diabo, porque s o estupidamente involuntarios. Seja isto dicto, com paz do leitor, como desculpa da nossa caridade, e como descargo de consciencia nacional. Para clareza desta importante narra o de saber, que apenas viraramos de rumo, o marinheiro substitu ra o grumete no governo do leme, como ministro responsavel de mestre Joo, e o grumete f ra assentar-se proa no logar que deix ra o seu successor, exactamente como um ministro demittido, que vae tomar assento nos bancos da opposi o. D'alli olhava para o tombadilho, fazendo a segunda, com um assobiar monotono, ao bramido do vento. Chegmos dous ou tres escotilha onde sora o baque do velho. Iamos a descer, a risco de nos despenharmos tambem, quando a cabe a de Mr. Graham Senior comeou a surgir como uma vis o de Manfredo: /* What dost thou see?-- I see a dusk and awful figure rise. */ luz da bitacula, que enviava um raio frouxo ao rosto do grumete, o poeta acenou-lhe que se approximasse, sem se dignar sequer de olhar para n s humildes creaturas, que haviamos parado em roda de sua grandeza. O rapaz chegou-se a Mr. Graham. "Brandy![1]"--rosnou este, com o aspecto temerosamente carrancudo e imperativo de um Nelson dando a ordem de accommetter na batalha de Trafalgar. Dizendo e fazendo, mostrava o seu frasco de aguardente virado de boca para baixo. O rapaz poz-se de novo a assobiar. Ns ent o ousmos perguntar a sua extens o se por ventura succedra algum fracasso aos seus compatricios. Elle lan ou-nos um olhar obliquo, e em voz mais alta bradou ao grumete: "Rhum!" "No ha:--respondeu o rapaz entre dous assobios. "Bring rhum, boy!--insistiu o cantor da temperan a, j colerico, e fazendo-se desentendido. "Chien d'anglais, n o percebes?..."--exclamou o grumete na sua lingua nativa, com um gesto de impaciencia; e accrescentou voltando-se para ns: "Que diz este diabo?" "Que lhe ponhas para alli cacha a:"--ia eu a dizer, paraphraseando em francez os trez monosyllabos britannicos, quando fui interrompido por um mugido, subito, incisivo, retumbante, que sobrelevou o rugir da tempestade. Soltara-o Mr. Graham, que, cerrando os punhos, com todos os ademanes de um professor de scco, crescia j para o pobre grumete, o qual avalira erradamente a linguistica do poeta. Elle perceb ra s mil maravilhas as duas personalidades de c o e diabo, que ousra dirigir-lhe o imberbe e enfarruscado normando. Felizmente para este, uma onda galgando exactamente nesse momento a p pa, veio lavar o tombadilho, e em forte balano, fazendo perder o equilibrio ao filho da Gran-Bretanha, o estendeu ao comprido na agua que passava em demanda da pr a, com grave perigo do precioso manuscripto do casaco. Estirado sobre a tilh do chasse-mare, e colleando e bufando para se alevantar, Mr. Graham representava soffrivelmente o papel de um congro tirado naquelle instante do mar. Quando elle, emfim, p de concluir o plagiato que fizera ao tombo do seu velho compatriota, o grumete tinha-se j retirado ao anterior posto, sobre os escovens, e continuava o seu acompanhamento de assobio ao estrepitar do vento. Mr. Graham meditou um momento. Parece que o abalo da qu da e a frescura da agua lhe modificaram poderosamente o orgo da combatividade; porque, sem dizer palavra, desceu outra vez para a limitada camara da fragil embarca o. Este incidente, que pass ra com grande rapidez, podia ter dado motivo a uma sria desaven a entre o arraes e o poeta, porque mestre Joo mostrava-se demasiado cioso da propria auctoridade, para n o consentir que um dos seus subditos fosse punido por haver recusado uma cousa que talvez no houvesse realmente a bordo, e por ter dicto duas verdades duras a um conterraneo dos nevoeiros e dos beef-steaks. Mas porque n o se exprimiu Mr. Graham de modo que o grumete o entendesse? Como imaginou elle que o pobre rapaz podesse perceber os seus tres monosyllabicos grunhidos? que o orgulho e o patriotismo britannico andam aninhados em tudo. O que nos outros paizes se olha como um primor d'educa o, em Inglaterra uma indecencia. Um inglez parece envergonhar-se de saber algum idioma estranho, e muito mais o francez, que nos paizes continentaes no permittido ignorar a qualquer individuo medianamente instruido. A lingua franceza, pela sua simplicidade, regular sintaxe, determinada prosodia, e mais circumstancias que a tornam facil para os estrangeiros, tem obtido uma certa universalidade, que a vae convertendo, por assim dizer, em lingua geral, principalmente na Europa. Este predominio da lingua franceza deve ter talvez n'um remoto futuro graves consequencias politicas. por essa raz o, que aos inglezes doe excessivamente tal predominio. Primeira na o do mundo como potencia material; representando nos tempos modernos uma imagem da antiga Roma, a Inglaterra soffre de mau-grado o ser intellectualmente inferior Allemanha e Frana. A influencia moral que pelos seus livros esta ultima exercita na Europa, nomeadamente nos paizes occidentaes, tende a augmentar ahi a sua influencia social, na raz o directa do progresso de civilisa o desses paizes. A Frana actua pelas id as, em quanto a Inglaterra o faz pelas esquadras: mas a ac o das idas cria a semelhan a de crenas, de costumes e de affectos, em quanto o temor das esquadras, o apparato do poder, as insolencias do forte contra o fraco s geram odios fundos, que se vo legando de paes a filhos: que se v o accumulando no thesouro commum das gera es que vem surgindo. Estes odios so um incendio que lavra, e que p de abrasar a Inglaterra n'um desses dias aziagos, que amanhecem para as na es como para as familias. Uma crise basta para perder o Reino-Unido, e esta crise facil n'um corpo moral cuja physiologia monstruosa e antinomica. A Gran-Bretanha deve saber que os ecchos do continente repetem de contnuo a grande voz do povo, que, em mais de um paiz, murmura aquelle terrivel verso do poeta italiano: /* Siam'servi, si:--ma servi ognor frementi! */ Ninguem como os inglezes tem o instincto da vida politica. N'uns este instincto ajudado pelo raciocinio, n'outros pelo orgulho nacional. A Inglaterra desej ra tirar Fran a as influencias intellectuaes: para isso fra necessario generalisar a propria lingua. Ahi que bate o impossivel. Entretanto o inglez vae falando inglez na terra e nos mares, quer o entendam, quer no, e s em casos desesperados recorre a algum idioma estranho, no sem o torcer, estafar e mutilar, com toda a barbaridade de um verdadeiro Kimhri. uma teima perpetua entre a Europa e a Gran-Bretanha: /* "O mundo a porfiar que os bretes grunhem; E os bret es a teimar que o mundo mente" */ Aquelle caso de Mr. Graham fra mais um capitulo desta polemica eterna. N s os portuguezes pensmos ent o em buscar uma guarida para passarmos a noite, porque algumas pingas grossas de chuva nos annunciavam um aguaceiro imminente. Dirigimo-nos a mestre Joo, que nos declarou categoricamente ser impossivel dar-nos entrada na t ca miseravel, a que elle tivera a ousadia de pr o nome de camara; e isto pela raz o composta de que os tres inglezes a occupavam inteiramente, e no podiam ser d'alli expulsos, tendo pago trinta shellings por cabe a, em quanto ns pag ramos s vinte. O argumento era de uma solidez irreprehensivel. Pedimos-lhe todavia humildemente nos declarasse em que sitio nos poderiamos resguardar da agua do mar e do ceu; porque se houvessemos pretendido passar a nado de Jersey para Fran a, escusramos ter-lhe pago a mal-aventurada capita o d'uma libra esterlina, que nos fazia descer na escada social dez shellings, ou dez furos, abaixo dos tres inglezes. Os selvagens t em mais que os homens civilisados a eloquencia do gesto, e o bom do normando, foroso confessa-lo, dava todos os indicios de verdadeiro botecudo. Tomando a postura sublime de um seekoenig, o rei do mar dos antigos sagas da Islandia, e com um--l!--que podia fazer ainda mui decente papel ao lado do--qu'il mourut--de Corneille, o arraes, especie de Buonaparte juncto s Pyramides, nos apontava para a escotilha d'avante, a escotilha da boca do poro, e parecia dizer-nos no seu gesto mudo:--"Ahi quarenta dores rheumaticas vos esperam!"--Melhor era isso, comtudo, que amanhecer inteiri ados sobre a tolda; e assim, dando-nos por avisados, arremettemos com o abysmo. Escada no a havia; e as trevas interiores n o eram menos densas que as trevas exteriores, de que resa a Biblia, onde ha o chro e o ranger de dentes. A altura, por m, no devia ser grande. Como os cavalleiros do Palmeirim d'lnglaterra, cada um de n s se encommendou dama dos seus pensamentos, e do modo que p de desceu quella especie de bolgia dantesca. O chasse-mar e, destinado a transportar gado de Frana para as ilhas do Canal, a em lastro, e o lastro era d'areia. Se no fossem os terriveis balan os da embarca o, a pocilga em que nos achavamos poderia passar ao tacto, unico sentido de utilidade naquella situa o, por uma praia deserta. Depois de apalparmos por largo tempo em volta de ns, ach mos por fim uma vla e alguns cabos, lan ados para uma extremidade do areal fluctuante. Ao menos tinhamos um leito, se no mais macio, ao menos mais enxuto que esse com que j contavamos. Uma pouca d'areia humida por pavimento, algumas braas de lona por leito, e por agasalho e cobertura a tolda d'um miseravel barco eram, com as trevas que nos rodeavam nesse momento, toda a nossa consola o e abrigo. Se esta recorda o escripta, humilde e obscura, como seu auctor, passar ante os olhos do major C***[2] elle ha-de por certo lembrar-se de que essa noite foi uma das bem dolorosas e tristes da sua larga vida de soffrimento e abnega o; da sua vida de honesto e valente soldado. Padecimentos antigos haviam crescido com os trabalhos e estreitezas do desterro, e posto que o seu animo de ferro lhe n o consentisse o soltar um s queixume, o incendio lavrava l dentro, e a dr, que n o podia subjugar-lhe o espirito, s vezes se lhe revelava no gesto confrangido. O seu estado gerava em n s, que sinceramente o amavamos, serios receios. Mas como o padecer se no traduzia em gemidos, no meio da escurid o, e entretidos com a scena ridicula do poeta da temperana e da aguardente, haviamo-nos persuadido de que esse padecimento diminuira consideravelmente. Deitados em cima da v la convertida em colcho, os meus companheiros breve adormeceram. Quando a consciencia est tranquilla a mocidade encontra facilmente o repouso ainda no mais duro leito. S eu velei; porque lhes levava uma vantagem, talvez antes desvantagem, uma imagina o mais ardente. O major C*** tambem parecia dormir. Achava-me finalmente s ! Havia muito que para mim no existia a vida ntima seno no silencio da noite. O dia, esse passava-o como embriagado na agita o tumultuosa de peregrino, vendo fugir diante dos olhos, na terra e nos mares, os quadros e as scenas de uma natureza e de uma sociedade diversas daquellas que me tinham cercado na infancia e na primeira juventude. Era de noite que a imagem da patria, terribilissima de saudades, se me assentava como um pesadelo sobre o cora o, e me expremia delle bem amargas lagrymas! Aos vinte annos a nossa alma, vi osa e virgem, tem affectos para derramar com mo larga por tudo o que nasceu e cresceu juncto de n s; por todos aquelles que nos ensinaram a balbuciar as primeiras palavras, e nos guiaram os primeiros passos no caminho da vida. Para achar deleite em vaguear fra do nosso ninho paterno, preciso haver passado a idade das esperanas; preciso ter j calcado aos p s, inteiramente sugado, o pomo das illuses, e assistir ao drama da existencia, n o como actor possuido do seu papel, mas como espectador indifferente, que sabe ser esse drama um embuste, algumas vezes attractivo, mas semsabor as mais dellas; preciso ser homem; e eu tinha ent o vinte annos. Por isso este errar entre estranhos teria para mim demasiado tedio e tristeza, quando se lhe no ajunctassem outras maguas e priva es de muitos generos. O desterro uma das mais profundas miserias humanas; mas a pobreza no desterrado o tormento mais intoleravel do espirito, porque um composto monstruoso de saudade, de humilha o, de abandono, de desesperana, que vos lembra cada dia, cada hora, cada instante, a vossa situa o desgra ada; que vos recorda sem cessar que sois uma especie de Ahasvero, de judeu errante, que a maldic o de Deus guia, em meio do desprezo dos homens, dos vituperios, dos trabalhos, por uma peregrina o sem termo e sem horisonte. Tendes de experimentar a affronta e calar, os maus tractos e soffrer, a fome e a nudez e no ousar pedir uma esmola, porque o pobre estrangeiro um ente mdio entre o homem e o animal, a sua linguagem inintelligivel e ridicula, a sua d r e o seu sentimento quasi um impossivel, o nome do seu paiz a fabula e o escarneo das gentes, sobre tudo se esse paiz fraco, limitado e obscuro. Ent o vem o comparar tudo isso com os commodos e gasalhado do lar domestico, com o amor e amizade, que vos cercavam de suavidade o viver de outro tempo, e a compara o vos converte em fel e lagrymas o sangue mais puro das veias. Tombastes de pedra em pedra no fundo de um abysmo: l acharam os vossos membros pisados e feridos um leito de aras; e d'ahi med s de contnuo a altura da qu da, porque vos luz l em cima o c u da patria, e a saudade vos mede palmo a palmo a distancia que vae do despenhado a essa imagem querida. Que todos aquelles que nunca saram de sob o tecto da sua infancia; que nunca buscaram debalde o sol esplendido da terra occidental para o saudar na manhan de primavera; que nos remansos do seu rio natal n o imaginam o ennovelar-se e bramir das vagas do oceano; que nunca viram o cu chato do norte pesar sobre a campina, estendida como um cadaver, e coberta do seu sudario de neve; que esses alguma vez se recordem e compadeam do pobre foragido, a quem as intolerancias insensatas e ferinas de paix es politicas arremessaram para estranhas regies. Seja qual f r a vossa crena, a vossa parcialidade, doei-vos d'elle; porque as doutrinas podem ser erros mas n o so crimes. E de mais, quem vos diz que essa opini o, que vos parece verdadeira e sancta, vos no parecer com o tempo absurda e m, se de sincero cora o a segu s? Engolfado nestas idas, posto que bem desperto, conservava-me calado no meio dos meus companheiros, os quaes dormiam placidamente ao murmurar da agua no costado do chasse-mar e, que rompia pelas vagas agitadas. De vez em quando os mastros rangiam com os turbilhes de vento, e sentia-se um golpe soturno e emba ado sobre a tolda. Era alguma onda que salvava por cima do baixel, como a que viera acalmar a colera do esgrouviado Mr. Graham. Depois ouvia-se a voz do arraes, que proferia algumas palavras inintelligiveis: depois outra vez s o silvar da procella. O major C*** revolvia-se entretanto perto de mim, ao que parecia grandemente inquieto. A persuas o, talvez, de que ninguem o escutava, e a intensidade da dr arrancaram-lhe, emfim, um gemido. A sua energia moral succumb ra. O veterano, depois de largo combate de muitas horas, declarou-se vencido. Falei-lhe em voz baixa: na tristeza da noite o padecimento physico parece achar consolo no som da voz humana. Era o unico soccorro que na situa o em que nos achavamos lhe podia ministrar. A nossa conversa o durou por algum tempo; nesta conversa o havia para mim o refrigerio do espirito, porque nos recordavamos da patria; elle buscava assim um allivio para dous generos de angustias, as do espirito e as do corpo. Era mais infeliz do que eu! Por este modo passou grande parte da noite. A tempestade crescia progressivamente, e o balano do chasse-mar e era j intoleravel. Come mos ent o a sentir por cima das cabeas os passos apressados dos marinheiros, e um som estranho, como de mar quebrando ao longe em agra penedia. Este som, semelhante ao disparar de artilharia por sotavento, approximava-se gradualmente. D'ahi a pouco ouvimos correr rapidamente a amarra pelos escovens. Era incrivel que tivessemos chegado t o depressa ao termo da nossa viagem. As seguintes palavras de mestre Joo, precedidas de uma praga, n o nos deram vagar de fazer sobre isso largas conjecturas: "Ventre-Saint-Gris ... a amarra ... vamos a pique![3]" Foi o que pudmos perceber. E era sobejo. O major C*** ficou immovel. Quanto a mim, o primeiro pensamento que me scintillou no espirito foi o de despertar os nossos companheiros. Mas porque n o haviam de morrer tranquillos? Deixei-os. O brado do arraes fra seguido de um momento de tremendo silencio: depois senti que o chasse-mar e fazia um singular movimento, como galgando pelo dorso de enorme vaga; aps isto pareceu-me que subitamente par ra, e ouvi de novo falar na tolda. Era a voz de Mr. Graham, o poeta agoureiro e esguio. Este momento de incerteza foi horrivel. Ento conheci bem a verdade de uma phrase de Milton "a escurid o visivel." Nas trevas profundissimas em que estava via o reluzir do mar ao redor da vla branca em que jaziamos; e os olhos da minha imagina o enxergavam atrav s da agua os rochedos de sorvedouros submarinhos, onde os nossos cadaveres deviam dentro em pouco achar uma sepultura desconhecida. No sei o como, mas a verdade que, no meio do terror de morte afflictiva e demorada, me veio cabe a uma ida ridiculamente consoladora. Foi esta a imagem de Mr. Graham sumindo-se nas goelas de um tubar o com a sua fabrica inteira de versos, e a meia fabrica de Leeds, que trazia distribuida pelos seus quatro casaces incommensuraveis. Passou um minuto: passaram dous: passou terceiro; e a nossa v la enxuta, e o baixel perfeitamente tranquillo. A morte, se tinha de vir, era to lenta e derreada como a melop a da declama o ingleza. Porventura haviamos encalhado n'algum banco de areia, porque o chasse-mare evidentemente n o abrra; ali s o mar devia ter-nos j sorvido. Lembrei-me de subir tolda. Mas como? O logar em que nos achavamos representava uma verdadeira masmorra de castello feudal. O escotilho por onde desceramos era mais alto do que um homem: al m d'isso o estrado da bca tinha sido ahi collocado, como a campa sobre um tumulo, e em cima do estrado sent ramos lanar uma lona breada para impedir a invas o das ondas que galgavam pelo tombadilho. Esperei, pois, que amanhecesse, e que ento obtivessemos a luz e a liberdade da munificencia de Micer Jean Legris. Entretanto o major parecia mais tranquillo: a quieta o do chasse-mar e, e a somnolencia da ante-manhan eram apparentemente a causa d'isto. A alvorada assomou, emfim, no oriente: alevantou-se o estrado, e a luz branda do romper do dia veio allumiar o nosso calabouo marinho com uma claridade frouxa e suave. N o esperra debalde em mestre Jo o: o seekoenig concedia-nos o favor de aspirarmos um ambiente puro e livre. Subi tolda. O sol surgia como um grande orbe vermelho fluctuante sobre as ondas levemente crespas. No sudoeste uma nuvem negra e ampla parecia firmar-se em p no horisonte, prolongando os cimos dentados pelas alturas do ceu: era a procella, que fugia varrida pelo nordeste. A superficie enrugada do oceano tinha no sei que semelhante a um gesto humano que sorri. Eu contemplava uma dessas raras alvoradas do navegante, em que no aspecto do mar se l o nome de Deus, e no sussurro da brisa se escuta o hymno da crea o. Onde estavamos ns? No recife de um ilheu, vizinho das costas de Normandia, cujo nome se me varreu da memoria. A caldeira em que nos achavamos teria tres vezes o comprimento do chasse-mar e e ainda menor largura. Olhei para a entrada, e os cabellos eriaram-se-me ao v -la. Custava a perceber como o nosso baixel a atravessra sem se fazer em peda os: era um labyrintho de rochedos agudos quasi indelineavel. Mestre Joo Legris, n o sei por qual razo nautica, pretend ra fundear junto aos penedos que defendem a bca daquella abra, at que chegasse a manhan. Ao lanar ancora a amarra se part ra roando pelas rochas. Este successo desastrado arranc ra da bca do arraes a energica exclama o, que t o terrivel fra ferir-me os ouvidos no meio das minhas dolorosas cogita es. Felizmente uma vaga monstruosa, erguendo o chasse-mar e sobre o dorso, o arrojou por entre os parceis, talvez por cima delles, e nos salvou da morte, que alis ser a inevitavel. A sada do recife deu mais trabalho aos nossos marinheiros do que lhes dera a entrada. O sol a j mui alto quando abrimos todas as v las ao vento. Este era de fei o; e dentro em poucas horas aportmos a Granville. [1] Aguardente. [2] Actualmente (1843) brigadeiro Celestino Soares. [3] Textual. FIM DO TOMO II. INDICE. A DAMA P -DE-CABRA (SECULO XI) Trova primeira Trova segunda Trova terceira O BISPO NEGRO (1130) A MORTE DO LIDADOR (1170) O PAROCHO DA ALDEIA (1825) Prologo I A Aldeia e o Presbyterio II Noitadas parochiaes III Uma escorregadela IV Alhos e Bugalhos V Excurso patriotico VI Bartholomeu da Ventosa VII Tantaene animis? VIII Gloria ao padre prior DE JERSEY A GRANVILLE (1831)